Nos dias que correm, a condição de empobrecidos e miseráveis que açoita os Homens do “País da Marrabenta” é, como se deu na época colonial, condicionada pelas algemas com que se prendem as palavras. Por isso, relançar o Silêncio Escancarado, obra poética do célebre escritor moçambicano Rui Nogar, pode ser um convite para se operarem algumas transformações sociais necessárias. Vejamos se reunimos coragem suficiente para o efeito.
Em 2012, se fosse vivo, Rui Nogar completaria 80 anos. A sua obra, Silêncio Escancarado – de que nós iremos falar a seguir – menos 50 na idade da sua vida. O livro foi editado em 1982 pelo Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD).
No entanto, perto de 19 anos depois de encontrar a morte, a 11 de Março de 1993, em Lisboa, os pensamentos de Nogar mantêm-se imutáveis. Eis que, de certa forma, o autor “regressa” (através do seu livro, Silêncio Escancarado) para estimular os moçambicanos a ganhar coragem para travar a batalha da liberdade rumo ao progresso.
E atenção que para Nogar, coragem não tem outra defi nição do que o expresso em textos como Da Metamorfose Quotidiana: “…coragem agora/ é não ser negro/ é não ser branco/ é ser um homem/ apenas um homem/ um homem pleno/ aqui em África/ Aqui em Moçambique”.
De qualquer modo, porque mesmo nos dias actuais – em que muitas batalhas, revoluções sociais já se operam – para muita gente coragem não difere de “essa coisa doutros tempos”. Provavelmente, será por essa razão que Nogar receia: actualmente, “não há muito por sinal”.
Nós, que redigimos esta crónica, não o conhecemos em vida. Mas ouvimos, recorrentes vezes, falar sobre as suas histórias, a sua personalidade, o modo como viveu e encarou os temperamentos do sistema colonial e perverso. Isso encantou-nos. Nogar era um artista – não apenas um poeta, estatuto de que não fazia questão.
“Não me interessa que seja ou não considerado poeta”, confidenciara em certa ocasião ao director da editora Marimbique, Nelson Saúte, que no contexto da colecção O Brado Africano chancelou a publicação do livro Silêncio Escancarado.
Na mesma conversa (que na verdade foi uma entrevista) com Saúte, Nogar disse mais: “O que me interessa é que eu seja homem que se preocupa com os outros homens da sua época”. Isso encantou-nos. Sobretudo porque a solidariedade – que é um valor moral – para com o outro escasseia hoje.
Aliás, tivemos a oportunidade de assistir ao “Nove Hora” – uma obra teatral adaptada, do texto com o mesmo nome de sua autoria, pelo Teatro Mutumbela Gogo. A peça foi uma surpresa para o público. Muitas histórias sobre a mesma haviam sido contadas.
E, por tudo isso, lemos este Silêncio Escancarado. Mas particularmente pela necessidade de conhecer até que ponto a referida obra – desenhada num contexto peculiar, o colonial – pode responder aos desafios da vida contemporânea.
Uma noção de actualidade
A outra impressão com que se fica perante a mensagem contida no livro de Rui Nogar é uma noção de algo actual, sempre contemporâneo e com um valor intemporal. Afinal, durante o período em que vigorou o colonialismo, o maior desafio dos moçambicanos (entre outros) era o de combater o sistema colonial.
No entanto, ao que tudo indica, o silêncio – muitas vezes inoportuno – que vezes sem conta lhes amputava as palavras e, consequentemente, a acção é o mesmo mal que nos dias actuais nos amputa a iniciativa.
“…ah o silêncio o silêncio/ maldito silêncio imperial/ sepultando-nos um a um/ sobre os escombros de Portugal”, lê-se no texto Da Fruição do Silêncio escrito em 1967. Mas que se percebe sobre o silêncio em Do Silêncio Às Palavras, escrito três anos depois é que “… era este e muito mais/ o universo da subversão/ que do silêncio às palavras/ nos revelava claramente/ o caminho da revolução”. Nesta época, faltavam cinco anos para o advento da independência.
Nenhuma dúvida prevalecia no entendimento de Rui Nogar sobre o custo que a escravidão laboral significava aos moçambicanos. “(…) eu sei bem o preço/ de cada tijolo:/ três minutos de sua vida”.
É nessas circunstâncias que – em jeito de apelo à necessidade de se transformar a sociedade – o autor escreve: “não haverá fome por esta noite/ e cristo apesar de cristo e milagreiro/ passará fome como um simples mortal/ como um desses milhões de famintos/ que dão de comer a quem não tem fome”.
No entanto, ainda que prevaleça, esta realidade pode ser algo passageiro. De qualquer modo, a mudança, a transformação social depende de cada um de nós, os moçambicanos. Sobretudo “porque nós dizendo não/ alimentaremos a revolução”.
O desabafo
Na época da colonização do continente africano, a intensidade com que a Europa explorava os recursos locais intrigava o autor de Nove Hora. O problema é que os referidos exploradores faziam-no como se eles fossem os detentores do segredo, da solução para o desenvolvimento de África. Exploraram tudo. A partir do ouro, do marfim, da canela, do escravo, do algodão até o café.
Foi por isso que Rui Nogar – em clara compreensão de que a solução para os problemas de África não estava noutro lugar senão na própria África – recomendou para que se diga “merda para todos aqueles que buscam ainda/ as soluções europeias de Jacques Soustelle/ um “pied noir” muito notório”.
Aliás, é muito “notório e finório/ demasiado europeu para uma África/ com pé alento e orgulho africano”.
Pela justiça social
Como se disse, além da sua destreza poética, Rui Nogar tornou-se uma referência incontornável na cena da literatura moçambicana pela dedicação que possuía em relação às causas sociais. Foi inclusive por essa razão que no seu prefácio, Lembrança Para Rui Nogar, cravado na nova edição do referido livro, Nelson Saúte conta:
“Como poeta, o Rui era um homem apaixonado por causas sociais, pelos homens do seu tempo, pela condição humana, ou o que isso possa significar”.
Foi na dimensão de homem apaixonado pelos homens da sua época que – segundo se conta – avultaria a poesia de Rui Nogar. Uma “poesia de indignação, poesia de revolta, poesia de combate, no mais alto sentido deste termo. Porque o Rui foi um homem de combate toda a vida. Os textos escritos na cadeia saíam clandestinamente nos artefactos que levavam a comida, e eram entregues a Rui Baltazar”.
Na verdade, a impressão com que se fica quando se lê o Silêncio Escancarado, obra poética do poeta da palavra em riste, é de que Rui Nogar foi um combatente pela igualdade e pelo bem-estar social dos seus contemporâneos.
É por essa razão inclusive que facilmente se compreende o depoimento segundo o qual “a sua vida, os episódios do quotidiano, as injustiças sociais que abominava, que estavam na origem da sua luta, as desigualdades sociais, irão povoar a sua escrita, também, ou sobretudo marcada, pela sua passagem pela cadeia, de que este Silêncio Escancarado (…) faz plena justiça”.
Crença na juventude
Dentre tantos dizeres, a figura de Rui Nogar ficou sublimada pela máxima “Os jovens vão surpreender!”. Alguns jovens, seus contemporâneos, que ao longo da década de 1980 liam os seus escritos, visitavam a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) se sentiram muito estimulados a apostar na literatura.
Foi no mesmo contexto que o jornalista Tomás Vieira Mário teve a sorte de – em jeito de entrevista – registar a referida frase “Os jovens vão surpreender!” em 1984, um pouco depois da criação da revista Charrua.
Aliás, Tomás Vieira Mário recorda-se de que nos anos de 1980 “líamos os textos que pessoas como Rui Nogar, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Knopfli escreviam; víamos a forma como viviam e, consequentemente, tínhamos algum anseio em levar uma vida similar a deles. A isso, nós chamávamos auto-estima”.
Noutro desenvolvimento, Tomás Vieira Mário acrescentou que “isso nos dava alguma auto-estima, no sentido de que tínhamos orgulho próprio a partir das referências (de artistas e escritores) que davam sentido à nossa vida”.
Tomás Vieira Mário – o homem das revistas Tempo e da Charrua – diz que “naquela altura para nós, os jovens, ouvir os discursos de Rui Nogar nos dava alento. Sobretudo porque – já naquela época conturbada – alguém nos dava algum reconhecimento.
O Rui Nogar fazia discursos épicos em que dizia estes jovens vão surpreender o mundo; vão trazer inovações. E nós, os jovens, questionávamos: Será que ele se está a referir a nós? E se realmente estiver a referir-se, até que ponto éramos capazes de tudo o que ele dizia sobre nós?”.
Daí que “descobrimos que a sua meta – o seu mérito – era encorajar-nos. Nogar abriu as portas para a nova geração de escritores moçambicanos. Acolheu-a de forma simples e, de certa forma, disse – referindo-se à AEMO – que esta casa é vossa, tomem-na”.
Na Estação Central dos Caminhos-de-Ferro, em Maputo, onde se realizou a cerimónia da publicação da obra Silêncio Escancarado, ficámos com a impressão de que actualmente a auto-estima que se propala é pobre de valores morais.
Aliás, o comentário que Tomás Vieira Mário indicia isso. Senão leiamos:
“Nos dias actuais fala-me muito de auto-estima e, por vezes, a palavra de ser tanto usada perde o seu sentido. Torna-se um cliché”. De qualquer modo, “eu aprendi que a auto-estima que tínhamos, quando éramos jovens, devia-se às referências que possuíamos nas pessoas da nossa época, os artistas em particular”.
Foi por isso que depois de muito tempo de receio em visitar a AEMO, onde acabou por fundar (na companhia de escritores como Juvenal Bucuane, Pedro Chissano, Ungulane Baka Khosa, entre outros) a revista Charrua, Tomás Vieira Mário se recorda da sensação que teve ao ser recebido pelo secretário-geral da instituição.
“Com uma atitude descontraída, acolhedora, como se a AEMO fosse a sua casa pessoal, Nogar recebia as pessoas que visitavam a instituição. Isso foi muito importante de tal sorte que eu – igualmente às pessoas que tinham medo de visitar a AEMO – comecei a perder o receio. Afinal, havia-me apercebido de que na AEMO não era uma instituição de pessoas complicadas como pensava”.
Por isso, para Vieira, a publicação da obra Silêncio Escancarado “é um evento importante porque nos traz à memória os precursores da literatura moçambicana”.
Nove Hora
Nove Hora é outro texto prodigioso criado por Rui Nogar. Em volta dele várias e míticas histórias tornam-se fecundas. Até porque o estimado leitor, caso adquira a nova edição do livro Silêncio Escancarado, terá a oportunidade de ler. Há mais de 20 anos, a directora do Teatro Avenida, Manuela Soeiro, respondendo ao apelo do autor encenou a história.
Os que naquela época assistiram à peça teatral ficaram admirados. Aliás trata-se de um espanto, de qualquer coisa que não difere de nostalgia que se repercute hoje para quem vê a nova adaptação cénica da mesma obra feita por Lucrécia Paco.
Há quem diga que em Nove Hora, o enredo gira em torno de Rosalina, uma figura em que a opressão colonial, o racismo, as diferenças sociais, a revolta e, porque não?, a exploração sexual se misturavam. Isso é verdade.
De qualquer modo, parece que não deixa de ser verdadeira a versão que Tomás Vieira Mário nos conta sobre o referido texto.
No tempo colonial, “a cidade de Lourenço Marques fi cava sempre limpa. Na época, havia dois grupos que nela habitavam. O grupo dos que a sujavam e dos que a limpavam. O aspecto intrigante nisso é que tais grupos nunca se viam”.
O primeiro grupo sujava-a e ia dormir à meia-noite. Os que a limpavam vinham às 3.00h de manhã quase às escondidas, com medo de serem vistos. Limpavam a urbe e fugiam, antes que o primeiro grupo acordasse”.
Por estas e outras razões, a publicação da obra Silêncio Escancarado, o que aconteceu a dois de Fevereiro em curso, assim como o ano de 2012, são eventos ímpares para a literatura moçambicana. Basta considerar-se que em Fevereiro assinalou-se a 80ª data natalícia de Rui Nogar; em Agosto, a mesma idade do nascimento de Rui Knopfli; em Maio, será a vez da celebração do nonagenário do nascimento de José Craveirinha.
Isto, para Nelson Saúte, equivale a dizer que se a empresa Moçambique Celular (mcel) – que se responsabilizou pelo mecenato da publicação do livro referido – tiver bastante fôlego para financiar a cultura moçambicana, em 2012, teremos muito que conversar sobre a nossa literatura.
Trata-se de um apelo necessário e, ao que tudo indica, bem acolhido pelo representante da mcel. Até porque para si, a promoção da cultura moçambicana, a literatura em particular “é um evento marcante porque a figuras como Rui Nogar são rodeadas de passagens históricas que vale a pena conhecer”. Por isso, “faremos todos os esforços para que a cultura de mecenato que a Moçambique Celular possui prevaleça por muitos anos”.
De qualquer modo, se as mudanças que ocorreram no passado – fruto da inspiração e dos ideias de pessoas como Rui Nogar, Rui Knopfli, Noémia de Sousa, Malangatana, entre outros, ao nível das artes – foram graças à cultura de escancarar o silêncio, nada nos impede de afi rmar que a nossa sociedade pode ser transformada para um estágio, cada vez, melhor. A condição é assumir a mesma postura. Deixar o silêncio escancarado.