Há quem diga que só depois da morte é que se conhece o paraíso e/ou o inferno, mas a vida mostra-nos a outra face da realidade. O que o destino quis foi que Francisco Mabecuane, de 23 anos de idade, conhecesse o inferno ainda em vida, talvez para mostrar até que ponto as diferenças sociais tendem a aumentar no país.
São 15 horas. O jovem Francisco, estatelado ao lado de um contentor de lixo (diga-se, esperando pelo que os outros vão deitar para servir de sua alimentação), vai provando as amarguras que a madrasta vida lhe impõe.
De tantos contentores de lixo que existem na cidade de Maputo, ele preferiu o localizado em frente ao parque de automóveis da Nissan, entre a Assembleia da República e a paragem do mercado Fajardo.
Era preciso despir-se de alguns preconceitos para se aproximar do jovem catador de lixo. Ele estava rodeado de uma série de resíduos sólidos, desde loiças partidas, até restos de comida que se apresentam num elevado estado de podridão e com um cheiro nauseabundo.
Porque “o que não mata engorda”, Francisco sobrevive daquilo que para alguns já não é consumível. Na verdade, se aquelas comidas se apresentassem em boas condições, acredite-se, este jovem estaria à altura de ter uma boa dieta alimentar.
Como tudo começou
Que o diga, diferentemente de tantos outros jovens arrastados da miséria aos contentores de lixo, Francisco vive um calvário que não cabe no seu subconsciente, aliás, engana-se quem pensar ou disser que ele é um doente mental. Para o provar, Francisco faz uma radiografia da sua mísera vida sem papas na língua.
“Eu não estudei, por isso mal falo a língua portuguesa, se quiseres ouvir a minha história, falemos em língua local, o changana, aí vou dizer-te tudo mais alguma coisa sobre a minha vida”, conta, para depois ajuntar que a grande tristeza que teve na sua vida foi quando o seu pai, João Mabecuane, abandonou a família para fixar residência na vizinha África do Sul, onde durante anos a fio esteve a trabalhar e teria regressado a Moçambique porque o contrato de trabalho na empresa onde trabalhava tinha terminado.
Segundo nos revela, o seu progenitor regressou a Moçambique em 2001, onde já viria a ter um permanente contacto com a família.
“Ele veio engrossar as fileiras dos desempregados. O mais agravante é que, sempre que fizesse algum biscate (trabalho informal), ele consumia bebidas tradicionais, ao invés de comprar comida para a família”, acrescenta.
O modus vivendi que o pai de Francisco levava fez com que as relações dentro da família se azedassem. Pai, mãe e filhos ralhavam entre si. Aliás, já diz o ditado popular que “numa casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.
As discussões que a família travava resvalavam, não raras vezes, em violência física, onde só funcionava a lei de Darwin, onde os mais fortes é que resistem e suplantam os fraquinhos. “Todos os dias levávamos porrada em casa, a minha mãe era a principal vítima, nós éramos molestados quando tentássemos socorrê-la.
Ela era uma indefesa e não tinha as mínimas forças para lutar com o meu pai”, conta visivelmente agastado. Foi por isso que, em 2005, cansada de sofrer, Aldina Macula, mãe de Francisco, decidiu deixar o lar e voltar para casa dos seus pais em Manjacaze, província de Gaza.
Nessa altura, Francisco, com apenas 16 anos, não quis seguir o mesmo destino que a mãe. Preferiu ficar em casa na companhia do seu irmão mais novo, Bento Mabecuane, que teve de abdicar da escola na 4ª classe devido à falta de condições.
No entanto, em 2006, um familiar pediu que o menino Bento fosse viver com ele algures na cidade da Matola. Este regressou aos bancos da escola e actualmente frequenta a 10ª Classe. O mesmo pedido foi extensivo a Francisco que, por orgulho, não aceitou.
“Não gosto de pedir nada a ninguém”
Francisco Mabecuane conta que para não pedir esmola a ninguém, e sobretudo por falta de emprego, decidiu fazer a sua vida na rua, preferencialmente junto aos contentores que povoam a capital do país, uma cidade onde o fosso entre ricos e pobres tende a aumentar.
“Aqui eu não peço nada a ninguém, apenas me alimento do que os outros deitam na lixeira. Nunca gostei de andar nas casas e pedir comida, senão poderia ter começado a fazê-lo logo que os meus pais me abandonaram, ou ia à casa dos meus familiares, ou arranjava um outro sítio para viver”, desabafa.
Questionado sobre como é que têm sido as suas noites, a resposta não foi de esperar: “Eu durmo ao relento, à luz da lua, e sinto-me bem”. Quando chove, arranja uma “esquina” e esconde-se, mas sempre a escassos metros do seu “buffet”, os contentores.
Diz que prefere dormir ao lado dos contentores porque nas primeiras horas do dia regista-se uma disputa renhida entre eles (os catadores de lixo ou comida), ou seja, quem estiver longe corre o risco de não apanhar quase nada porque os outros já o terão feito.
Um sono que nunca chega
No local onde Francisco passa as suas noites, não é possível conciliar o sono enquanto uma variedade de carros estiverem a circular de um lado para o outro.
O barulho ensurdecedor provocado pelo roncar dos motores, associado à poluição sonora, sobretudo durante os fins-de-semana, são factores constrangedores para aquele que não só clama por alimentação, como também pelo abrigo humanamente aceitável para se alojar.
“Eu quase que durmo de olhos abertos, é difícil dormir nestas condições em que me encontro. Mas prefiro este lugar, apesar de todas as dificuldades que enfrento. Estou aqui desde o ano passado e nunca tive problemas com ninguém, muito menos com os moradores da zona”, conta.
Devido ao seu comportamento, Francisco tem sido chamado por alguns moradores para fazer a limpeza nas suas casas. “Há quem me oferece peças de roupa, dinheiro e até cobertores e lençóis para minimizar as consequências de dormir no chão”. Curiosamente, este jovem cuja vida é feita nos passeios e contentores da cidade de Maputo diz que nunca gostou de fazer trabalho a troco de comida.
“Eu como o que os outros jogam fora e por isso não pago nada, se eu fizer trabalho para alguém, aceito que a troco disso me dê roupas para eu vestir ou dinheiro e não comida”, assegura. Entretanto, Francisco não foi claro quando o questionámos sobre o destino que dava ao dinheiro que ganha dos trabalhos que tem feito.
A dado momento, disse que estava a juntar dinheiro para realizar um sonho antigo: comprar uma bicicleta, ao mesmo tempo que mostrava uma lata de refresco com algumas moedas no interior. Não revelou o total do dinheiro coleccionado até agora, muito menos permitiu que a nossa equipa de reportagem o contasse.
“Nas festas comi bem”
Durante a última quadra festiva, enquanto algumas famílias choravam por não ter o que comer durante as festas, houve quem se socorria do que sobrava com a fartura dos outros. É o caso do Francisco. “Eu passei bem as festas, pois ainda antes do Natal este contentor que eu frequento andava sempre cheio de comidas de tal maneira que se espalhava pelo chão.
Não me importava se estava podre ou não, mas sim o facto de poder enganar o meu estômago. Não me preocupo em saber se a comida está ou não em condições de ser consumida, se a comida podre matasse eu já não faria parte do mundo dos vivos. Nunca fiquei doente, sei que hei-de morrer quando chegar a hora e não por consumir comida podre”.
Um país em que a Acção Social não funciona
À semelhança deste jovem, existem muitos moçambicanos, desde crianças, adolescentes, jovens, adultos até idosos que vivem o seu dia-a-dia como se de uma encomenda do Diabo se tratasse.
Na cidade de Maputo, até os cidadãos mais incautos e desatentos podem observar nas principais avenidas desta urbe, junto aos contentores de lixo, conglomerados de pessoas, que humildemente vão esperando pelo que os outros vão depositar.
Por vezes, funcionários do Conselho Municipal de Maputo encarregues de recolher o lixo entram em desavenças com os catadores de lixo que se sentem mais felizes quando vêem os contentores repletos de resíduos sólidos. É como se lhes estivessem a retirar o pão de cada dia, mesmo que amassado pelo Diabo.
Recentemente, o Ministério da Mulher e Acção Social veio a público afirmar que estava a ser desenvolvida uma campanha de recolha dos meninos de/na rua para os centros de acolhimento espalhados pela cidade.
Pouco importa se efectivamente a tal campanha chegou a ser implementada, mas a verdade é que uma enorme fileira de moçambicanos de quase todas as idades continuam a provar a amargura que esta vida impõe, ante o olhar impávido e sereno das entidades que deviam fazer algo para evitar que continuem a aumentar os casos de pessoas que vivem ao deus-dará.