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Os desamparados

Os desamparados

Desamparados pelo Governo e familiares, os pacientes com transtornos mentais travam uma luta lancinante todos os dias. A maioria, pelas circunstâncias, não sente a experiência mais solitária da existência – a dor – a que é votada e acaba por perder a vida, quais indigentes.

A falta de assistência adequada a pacientes com transtornos mentais por parte do Estado e das próprias famílias é um problema em Moçambique. Aliás, só quem convive com o drama de ter alguém em casa que precisa de cuidados exclusivos pode dizer o quão é difícil lidar com a situação. Contudo, às vezes, são os próprios familiares que votam ao abandono seres que, pelas circunstâncias, não se podem queixar. Esse é o drama enfrentado por milhares de doentes que vivem à margem da sociedade e das famílias.

As histórias que nos chegam são chocantes e vêm, em parte, de famílias com altos níveis de instrução. Histórias de doentes mentais que morreram sem nunca terem visto a porta da rua. Sem nunca terem cruzado o olhar com outros rostos que não os de seus familiares. O que as pessoas não sabem é que os problemas mentais podem afectar qualquer um.

Bernardo Manuel, 39 anos de idade, é disso um exemplo. Sempre foi uma pessoa comedida. Ninguém lhe apontava excessos de qualquer ordem. Falava com fluência inglês e francês. Os que o conhecem gabam-lhe a inteligência e o facto de ter sido uma pessoa laboriosa. Quando fez o nível médio as pessoas auguravam-lhe sucesso e uma carreira promissora.

Vivia maritalmente com uma mulher. Dessa união resultou um filho que conta com 12 anos. Porém, o destino, sempre ele, traçou-lhe outro futuro. Bernardo, sem que ninguém desse conta, começou a ser acossado por distúrbios mentais há pouco mais de seis anos.

Quando tudo começou, Bernardo partilhava o mesmo teto com irmãos do primeiro casamento do seu progenitor. Porém, quando os problemas tornaram-se mais frequentes teve de ir morar com a mãe.

“Quando cheguei na casa onde ele morava, o meu filho apresentava um comportamento muito estranho. Falava em voz alta e agia como se estivesse a conversar com alguém que nós não víamos”, disse com um ar triste.

Devido ao seu estado, Bernardo foi levado pela mãe ao hospital Central, tendo sido transferido para o Hospital Psiquiátrico do Infulene, onde ficou internado por algum tempo. Após voltar ao seu estado normal teve alta e voltou para a casa da mãe.

Para a senhora Alice deixou-lhe aliviada. “ Quando saiu do hospital estava bem. Até já não andava sujo, estava bem mesmo”, frisou.

Já em melhor estado e com a ajuda de um parente, Bernardo fez um curso para poder trabalhar numa empresa ligada ao ramo das telecomunicações. Porém, esse ensejo não foi concretizado porque Bernardo voltou a apresentar distúrbios.

Coincidência ou não, algo intriga e aperta-lhe o coração: Bernardo voltou a ter crises depois de ter visitado os irmãos. Ou seja, para Alice a doença do filho tem de ter uma explicação para além da medicina. “Ele foi para lá, dizem que até foi bem recebido, mas quando chegou cá em casa, começou a falar sozinho e em voz alta toda à noite”, refere.

“O pai dele tinha muitos bens incluindo dois camiões. Antes de morrer deixou-os em nome do meu filho, mas quando ele saiu de lá não lhe ofereceram nem um par de sapatos”, acrescenta.

Segundo internamento

Bernardo voltou ao Hospital Psiquiátrico do Infulene, mas fugiu e interrompeu o tratamento. Depois de abandonar o hospital, o jovem nunca mais voltou a tratar-se. Actualmente, vive com a mãe distante da mulher e do filho agora com 12 anos. Enquanto isso, a mãe tem esperança de que o filho melhore e afirma: “o que perturba o meu filho é uma “coisinha” de nada. Ele não é aquele maluco agressivo que bate nas pessoas. Ele ajuda aqui em casa e há dias que ele cozinha. Se ele procurasse ajuda numa igreja seria curado….”, conclui.

O que acontece nos hospitais psiquiátricos

Devido às suas origens e características, são raros os casos em que doenças mentais resultam em óbitos nas unidades sanitárias. Contudo, é frequente os doentes internados abandonarem o hospital. Trata-se de uma situação inevitável, uma vez que o regime de internamento é aberto.

Nenhum doente é internado contra a sua vontade ou colocado num local privado, salvo em casos que colocam em risco a sua vida e a dos outros pacientes. Mas depois de ser compensado ou seja voltar a um estado de equilíbrio pode partilhar o mesmo ambiente que os outros.

Os hospitais psiquiátricos apresentam um aspecto diferente em termos de moldura humana. Para o caso particular do Hospital Psiquiátrico do Infulene, em Maputo, em pleno horário de expediente é normal ver os corredores e assentos da unidade sanitária completamente vazios, por falta de pacientes doentes, uma situação que não se verifica nos outros hospitais gerais. Estes, muitas vezes, registam um número elevado de pacientes que chegam a lotar a unidade sanitária.

Maria morreu dentro de casa

Quando Jacinta engravidou, Carlos Guambe pensou que fosse um rapaz. A vida do casal mudou completamente quando Jacinta deu a luz a um bebé com as pernas e braços atrofiados. Carlos afastou-se da esposa. Os dias iam passando e ele estava cada vez mais frio e distante. Para ele, hoje arrependido, o problema era dos familiares da mulher. “Não nos queriam ver felizes e deram-nos uma filha inválida”.

“Na minha família não havia um histórico de pessoas com deficiências físicas e muito menos mentais. A nossa filha era um mistura das duas coisas”. Os olhos ficam molhados de lágrimas quando Carlos conta que disse à Jacinta para não mostrar a filha a ninguém. “Acabámos com as visitas e a criança não podia sair. Nem para ir ao hospital”.

Maria foi crescendo, num berço no fundo do quarto. As pessoas entravam e saíam, mas ela permanecia ali sem poder mexer-se, qual objecto de adorno. Ninguém se lembrava dos aniversários e até o animal de estimação de Carlos recebia mais afecto.

O casal separou-se, Maria já tinha cinco anos. Se é que sentia alguma coisa não podia manifestar. A natureza não lhe concedeu o dom da fala. Emitia apenas alguns sons e abria a boca para comer apenas. Quando tinha oito perdeu a vida. Maria viveu sem conhecer outro lugar que não fosse o quarto. Aliás, quando não estava no quarto deixavam-lhe na varanda.

Carlos nem foi ao enterro. A morte da filha de quem nunca foi pai tirou-lhe um peso das costas. “Fiquei feliz”. Porém, o destino tece sempre os seus caminhos e deu a Carlos um filho homem, mas com uma deficiência física e mental. Para Carlos, “castigo de Deus”.

Hoje, Carlos é um pai melhor e Alex é um rapaz com limitações, mas muito alegre. Tem o apoio total da família e ninguém procura as causas da sua condição junto de terceiros. Ainda assim, Carlos sabe que não pode apagar o passado. “Não foi a doença que matou a minha filha, foi a minha indiferença. Eu contagiei a mãe e o resto da família. Se não fosse a minha ignorância, Maria poderia ter um fim melhor”.

Causas das consultas nos hospitais psiquiátricos em Moçambique

Em 2010 um total de 28 399 pessoas padecendo de doenças mentais dirigiram- se às unidades sanitárias em todo o país. Deste número 1.521 pessoas ficaram internadas, segundo dados revelados pelo Ministério da Saúde. Todavia, as autoridades da saúde admitem que o número não representa o total de doentes mentais existentes no país, havendo muitos que optam pelo tratamento tradicional, em vez do convencional.

Dos doentes mentais que procuraram tratamento médico nas unidades sanitárias, a maioria apresentava esquizofrenia, doença cujos sintomas caracterizam- se por alterações de pensamento, alucinações visuais e auditivas, bem como distúrbios no contacto com a realidade. A esquizofrenia, geralmente, afecta homens e mulheres com idade compreendida entre 15 e 25 anos.

As neuroses também foram a principal causa de consultas relacionadas à doenças mentais, tendo sido diagnosticados, pouco mais de 2500 casos em todo o país. Esta doença mental é consequência de situações externas da vida do indivíduo que acabam causando distúrbios mentais, físicos e até na personalidade do mesmo.

Os transtornos afectivos que manifestam-se através de uma alteração de humor ou de afecto causando uma depressão aliada a ansiedade ou arrogância foram responsáveis por 1499 consultas em todo país.

Os transtornos orgânicos caracterizado por uma alteração do comportamento habitual do indivíduo antes do surgimento da doença que consiste na expressão das emoções e impulsos registaram 780 consultas.

Já o uso de substâncias como álcool e drogas, geraram 640 consultas.

De referir que em Moçambique, casos de epilepsia são atendidos nos hospitais psiquiátricos embora trata-se de um doença de tipo neurológico. Só no ano passado 18848 pessoas com sintomas da doença procuraram atendimento, nos hospitais do país.

Número de doentes mentais no país

Não existem dados específicos relativos ao número de pessoas com doenças mentais em Moçambique. Contudo estima-se que 6% da população moçambicana possui qualquer tipo de deficiência. É nesta estatística que estão incluídos os doentes mentais.

Sector com parcos recursos

Talvez pelo número reduzido de doentes mentais, o sector da saúde enfrenta uma série de dificuldades nesse ramo da medicina. A começar pelos medicamentos, falta de recursos humanos e infra-estruturas. Por outro lado, a cobertura ao longo do país é ineficiente e deficitária. Ou seja, em todo o país existem apenas duas unidades sanitárias especializadas, designadamente Centro de Saúde Mental de Nampula, na zona norte e o Hospital Psiquiátrico do Infulene, na capital do país.

Em Moçambique somente estas duas unidades sanitárias dispõem de pessoal médico suficiente, o qual é composto por uma equipa multidisciplinar da qual fazem parte psicólogos, psiquiatras, técnicos de psiquiatria, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e médicos generalistas.

Contudo, segundo autoridades da saúde, em cada um dos 83 centros de saúde espalhados pelo país existe um técnico médio especializado em saúde mental.

A falta de recursos humanos para a área de saúde mental é tão gritante em Moçambique, que a taxa de cobertura é de apenas 5% da população. O rácio profissional de saúde mental/ população é muito reduzido atingindo, 0,9 profissionais por cada 1000 000 habitantes, o que significa menos de um profissional para um milhão de moçambicanos.

No país não existem clínicas privadas para o tratamento de doenças mentais, cabendo aos moçambicanos recorrerem apenas ao serviço público.

Conflito entre a medicina tradicional e convencional

A área da saúde mental tem registado conflitos entre a medicina tradicional e a convencional. Em muitos casos as doenças mentais têm sido aliadas à feitiçaria e devido à factores culturais não são poucas as vezes que o doente é submetido ao tratamento tradicional.

Mas as autoridades da saúde recomendam que o doente mental seja encaminhado a uma unidade sanitária para que obtenha o tratamento adequado, de forma a evitar que este sofra maus tratos bem como o agravamento do seu estado clínico.

Uma das saídas encontradas para este conflito é o estabelecimento de uma cooperação entre as duas medicinas. Para o efeito são realizadas acções de prevenção primária das doenças mentais, nas comunidades. Profissionais da saúde tem se dirigido as localidades para realizar palestras, trabalhando directamente com as autoridades locais, incluindo a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique, a AMETRAMO.

Nesses encontros com as comunidades os membros da comunidade são sensibilizados a levarem os doentes mentais aos hospitais convencionais.

A exclusão é feita no âmbito estrutural e pessoal

Para o docente e director do curso de Sociologia, na Universidade Eduardo Mondlane, Baltazar Muianga, os doentes mentais tendem a ser excluídos da sociedade. Muianga defende que a exclusão é feita em dois âmbitos, nomeadamente o estrutural e o pessoal.

Explica que, na dimensão estrutural, os doentes mentais, bem como os deficientes físicos estão fora daquilo que é a realidade arquitectónica do país. “As escolas e repartições públicas não estão preparadas para receber pessoas com estes tipos de problemas”.

Ainda na mesma dimensão (estrutural), os doentes mentais são tidos como anormais. “Devido a essa consciência socialmente construída, aos doentes mentais é-lhes vedada a educação”.

No tocante as escolas especializadas, Muianga vê nestas duas situações, dado que num primeiro plano esta é uma forma de garantir que eles também tenham acesso ao ensino mas, ao mesmo tempo, esta é uma forma de exclui-los, porque ficam fora do ambiente, dito normal, de convivência. “Nas escolas especializadas, os doentes mentais ou deficientes físicos, ficam confinados entre si, ou seja criam o seu próprio mundo”.

Com este procedimento, os doentes mentais povoam aquilo que a sociologia chama de ilhas sociais. Estas ilhas são, segundo Baltazar, muito perigosas porque criam subculturas, e acima de tudo estigmatização a pessoas portadora de deficiência.

Na dimensão micro ou pessoal, o doente mental enfrenta relações pessoais desequilibradas, desencadeadas pelos preconceitos que são criados em relação a pessoa do deficiente. É na dimensão pessoal em que o próprio deficiente vive, muitas vezes, em situação de auto-descriminação.

Muianga aconselha que se trate o deficiente mental ou físico da mesma maneira que se trata um indivíduo dito normal, porque quando este se apercebe da desigualdade no tratamento, começa a sentir-se inferiorizado.

“Terapia familiar é indispensável”

A ideia da discriminação da pessoa portadora de doença mental, é secundada pelo Psicólogo e Psicoterapeuta da UEM, Elias Sande. Para Sande, os deficientes mentais são descriminados na família, na comunidade e, ao mais alto nível, pelo estado.

Segundo Sande, a descriminação gera um sentimento de culpa na pessoa que a sofre. É este sentimento que consequentemente gera o sentimento de inferioridade. Por sua vez, vivendo num sentimento de inferioridade, a pessoas sofre atrofiamento mental.

A família sendo a célula da sociedade, tem um papel preponderante no acompanhamento do doente mental.

O doente mental deve ser colocado em posição de igualdade face aos outros que estejam inseridos no mesmo ambiente. “Essa é a fórmula eficaz par manter o seu equilíbrio e até mesmo reabilitá-lo”.

No tocante a reabilitação do doente mental, Sande disse ao @Verdade que para este exercício é preciso ter em conta os níveis da própria doença, que podem ser as psicoses leves e moderadas, que são tratadas na psicologia, por intermédio doe um psicoterapeuta. Por outro lado existem as psicoses graves. Que requerem a intervenção da psiquiatria.

Há também um outro nível da doença mental, que é muita das vezes ignorado, o das neuroses. As neuroses, segundo Elias Sande manifestam-se em forma de medo, depressão e vitimização.

Há que ressaltar que a doença mental é transversal, as quatro dimensões do ser humano, isto é, afecta directamente as quatro dimensões do Homem, daí que se considera uma doença “Biopsicosocioespiritual”. Esta distinção deve-se ao facto da doença afectar o corpo (bio), a mente (psico), a relação com os outros (sócio) e a alma (espiritual).

“É uma questão de falta de opção”

As doenças mentais podem ter origens biológicas, genéticas e natas. Algumas pessoas podem nascer com este problema, sem que para isso haja um antecedente, nem de carácter biológico, nem genético, quando é assim está-se diante de um problema nato. Entretanto, as doenças mentais podem ser transmitidas de um parente para o outro, através das informações genéticas. Casos há em que o problema pode acontecer no processo de gestação, sem que nisso concorram questões de âmbito genético, ou seja, sem que haja passagem de informação genética propiciadora da doença. Também pode-se dar o caso em que a configuração física da pessoa gere anomalias psíquicas e consequentemente a doença. Nisto estamos a falar de causas biológicas da doença mental.

Por seu turno, a Antropologia, vai mais para a dimensão espiritual da doença. Sansão Nhantumbo, estudante finalista do curso de Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane, é da opinião que esta doença é encarada, em África, no geral, e em Moçambique, em particular, sob ponto de vista das crenças, ou seja, espiritual. “Acredita- -se que o doente mental sofre da doença porque teve ou tem pacto com alguns espíritos”.

As acusações de uso de um filho como meio de sacrifício para se alcançar uma posição estável na vida, são vistas por Nhantumbo como típicas de uma sociedade baseada em crenças mágicas. “Quando se crê numa força metafísica e superior ao Homem, todas as situações são interpretadas com base neste pressuposto. Nhantumbo acredita que o alto nível de analfabetismo no país, cria condições para que o povo veja as coisas por um único ponto de vista. “As pessoas não têm instrução científica, elas estão confinadas a crença no sobrenatural. É uma questão de falta de opções”.

 

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