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Pandza: Badjia

Dona Zubaida não disfarçou a surpresa, quando me viu na sua porta, muitos anos depois. O rosto desabrochou num sorriso sereno, seguro, realçando as feições orientais. Eu, já não era aquele menino que na infância traquinava pelo bairro aos futebóis e chinguerenguere, senti-lhe os olhos a confirmarem, com um scan rápido, de baixo para cima:

– Estás crescido – disse-me com a mesma voz meiga e maternal. O reparo soou-me a elogio. Escondi-me no recolhimento ingénuo de um sorriso tímido.

Disse-lhe ao que vinha: comprar badjia. Afastou-se para me deixar entrar e percebi nos cabelos mesti ços, por baixo do lenço, pêlos grisalhos. O tempo desenhou-lhe rugas no rosto e serenou-lhe os gestos, avolumou-lhe os contornos do corpo, mas não lhe roubou os encantos da juventude, pelo contrário, embebeu-lhe naquela beleza místi ca que envolta as coisas anti gas e as torna valiosas.

O corpo, com muita história, assentava com perfeição na bacia larga, e a capulana garrida, que já fazia parte da anatomia, encaixava perfeitamente no quadril arredondado. Hoje, no esplendor da madureza, continuava a mesma Dona Zubaida que eu idolatrava nas fantasias da meninice.

Fomos até ao cómodo onde ela prepara os seus cozinhados. Autêntica oficina aquela cozinha, com ferramentas de culinária para gostos e feitios. Serviu-me uma cadeira enquanto se movimentava numa coreografia doméstica de incrível cumplicidade com as panelas.

Com gestos delicados seleccionava os ingredientes para o preparo das badjias: feijão nhemba, alho, piripiri e um etcetera de temperos secretos que tornam ímpar a sua cozinha.

– Tens que esperar um pouco. Aqui, as badjias são feitas na hora, saem quenti nhas – gabou-se.

Conversamos. Lembrei-lhe dos rissóis e das chamussas do tempo em que nos interrompia os futebóis, chamava a criançada do quarteirão e servia-nos sobras do fim-de-semana, comida de festa, salgados, doces e outros elementos do serviço de catering que prestava.

Nesse tempo a casa da Dona Zubaida perfumava a rua com cheiros de caris temperados, numa mistela de segredos orientais e macuas. Contou-me que parou de cozinhar para fora por ser pouco rentável para os tempos de hoje:

– A vida está difícil, agora só vendo badjia. Mas não sou de vender na rua. Vendo em casa. É mais higiénico.

– E o coração? A Dona Zubaida parece-me muito só… – cutuquei, ignorando o melindre da questão.

Suspirou, parou de pilar os temperos e olhou para o tecto como se o passado esti vesse lá, antes de me responder.

– O coração já teve os seus dias – parecia racionalizar as palavras. Percebia-se que o coração estava muito marcado, era um general que passava para a reserva depois de muitas guerras.

– Plantei espinhosas a volta do coração, não há acesso – desabafou.

Misturou o molho de alho, piripiri e outros temperos ao feijão pilado. Um aroma provocante espicaçou-me as narinas. Sentou-se segurando o alguidar com as coxas carnudas Começou a girar o pau de moer delicadamente.

Um silêncio místico envoltava os seus gestos. O corpo, sereno, acompanhava o embalo da moída, as carnes maduras abanavam. Os olhos intermitenes luziam. A capulana, devagarinho cedeu, e o joelho farto espreitou.

– Dona Zubaida é muito bonita – derreteu-se com o elogio. Derrotada nas forcas parou de moer. O rosto denso ameninou-se num sorriso encabulado. Endireitou a capulana, cobriu o joelho, marcando distância sensata entre o corpo e o mundo.

– Tenho idade para ser tua mãe – defendeu-se, sorrindo e olhando para mim, com os cabelos grisalhos a espreitarem do lenço colorido.

– Não pare de moer – pousei as minhas mãos sobre as dela, aveludadas a dobrar massa de chamussas, e ajudei-a a moer. Ela dava delicadeza e eu dava profundidade à moída. O alguidar gemia. Aos poucos o feijão empapava-se.

– Dona Zubaida – sussurrei.

Respondeu-me com um silêncio indecifrável. De suor, uma gota escorreu-lhe pelo rosto. A frigideira já aquecia o óleo pronto a fritar. A capulana cedeu. Com afecto, Dona Zubaida serviu-me, quente, oleosa e salgada, a badjia.

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