Substituir, em grande escala, a agricultura dos comestíveis pela agricultura dos combustíveis foi um disparate. E pode ter contribuído para o surto de contaminações bacterianas mortais.
Há alguns meses já tinha havido, na Alemanha, uma crise alimentar grave. Na altura o alarme não tinha a ver com mortes causadas por uma estirpe virulenta de E. coli mas sim com o aparecimento de produtos químicos tóxicos (dioxinas) nalgumas quintas.
Aventou-se contaminação de rações por subprodutos dos biocombustíveis. Do ponto de vista nutritivo, os resíduos do processamento do milho ou da soja para o fabrico de etanol (álcool usado nos motores) são semelhantes às farinhas dos cereais. Conhecidos como “grãos húmidos de destilaria”, são um ingrediente barato das rações da pecuária industrial.
Ao passar em revista a informação sobre o assunto, comecei por ver o documentário Food, Inc. (2008). Um investigador veterinário explica, com as mãos dentro do rúmen (primeiro compartimento do estômago) de uma vaca, que uma alimentação feita, sobretudo, à base de grão (em vez de pastos e forragens, como comeriam no seu estado natural) favorece a presença de estirpes da bactéria E.coli nos estômagos dos animais e, portanto, nos seus excrementos.
A mesma Escherichia coli que alarmou a Alemanha, cujas autoridades acusaram precipitadamente os pepinos andaluzes, para depois passarem a apontar o dedo aos rebentos de soja, apesar de, para já, não se poder confi rmar esta hipótese.
Averiguámos, em segundo lugar, que desde 2007, alguns cientistas do Serviço de Investigação Agrícola dos EUA têm estudado o que acontece aos animais alimentados com os “grãos húmidos” que os automóveis e a indústria rejeitam.
Numa experiência que envolveu 608 bovinos, os cientistas do laboratório Roman L. Hruska de Investigação de Animais para Abate, em Clay Center, no Nebrasca, concluíram que os animais alimentados com estes subprodutos apresentam, nos excrementos, níveis signifi cativamente mais elevados de E.coli O157:H7. Ou seja, níveis mais altos de uma das variantes perigosas da bactéria, pertencente à mesma família que foi detectada na Alemanha.
Porque correr tantos riscos?
Quando as vacas das explorações industriais, que vivem em péssimas condições, em cima dos próprios excrementos, chegam aos matadouros com as patas e a pele sujos, a passagem da bactéria para a carne é possível. O resultado é carne picada que pode estar contaminada, como aconteceu em 1982, nos EUA.
Desde então, estima-se que se tenham verificado nesse país cerca de 73 000 casos de infecção e 61 mortes anuais, provocados pela variante em causa da bactéria E.coli.
Também se registaram casos de contaminação por esta bactéria em garrafas de sumo de maçã, na água ou em espinafres. Está, ainda, em aberto a hipótese de contaminação de vegetais em alguma das etapas da cadeia alimentar. Tendo em conta que as infecções e mortes que fizeram primeira página dos jornais derivam de uma nova estirpe, há algumas perguntas fundamentais a fazer.
Desde logo, precisamos de correr estes riscos? Deverão todos os alimentos ter passaporte para poderem correr o mundo? Existem alternativas à pecuária industrial e ao consumo excessivo de carne? Os biocombustíveis são uma boa ideia?
Já ficou claro que a substituição de colheitas comestíveis por colheitas para combustíveis em muitas terras é um dos elementos que, juntamente com a especulação com os cereais, explicam o aumento do preço das matérias-primas alimentares que tanta fome está a provocar. Não parece tudo isto um disparate? Quem quer um modelo agro-pecuário que causa a fome nos países empobrecidos do Sul e sustos epidémicos nos países industrializados (dioxinas, gripe A, vacas loucas…)?
Na minha qualidade de investigador de hipóteses, ouso apresentar várias recomendações a quem de direito:
? Reapreciação do “factor hambúrguer” pelas autoridades de saúde e higiene competentes. Ou seja, que estas inspeccionem as explorações industriais e os aquíferos das proximidades, para localizar o foco de contágio. Pelo sim pelo não.
? Que as autoridades agro-alimentares competentes revejam o modelo actual de pecuária industrial, que, dia sim, dia não, nos prega sustos e que tem por única finalidade produzir pseudo-alimentos aparentemente baratos.
? Que as autoridades políticas competentes revejam o actual modelo mundial de alimentação, que guarda os melhores manjares para os automóveis e dá os resíduos a comer ao nosso gado – e, portanto, também aos seres humanos.
? Que seja, também, revisto o modelo que dedica 50% das terras férteis da Argentina à produção de soja ou 30% das dos EUA à produção de milho, sempre em detrimento da alimentação humana e dos camponeses, que, dantes, colhiam o seu bem-estar directamente dessas terras. Hoje deslocados para as periferias pobres das cidades, os seus parcos rendimentos só lhes permitem comer no McDonald’s de serviço.
Para terminar, dois provérbios. Um da minha amiga Marta: “A melhor garantia de segurança alimentar são as políticas a favor da soberania alimentar”. E o que é a soberania alimentar? A explicação é dada pelo segundo provérbio, um ditado africano que me permiti alterar ligeiramente: “Muita gente pequena, em muitos lugares pequenos, cultivará pequenas hortas… que alimentarão o mundo”.