Sem pressa, deslizando sobre o orvalho, o caracol hesitou lentamente o corpo. É um bicho dócil e muito tí mido. O corpo mole e viscoso rebolou, indeciso, tacteando o relento. Quando me viu, assustou-se e recolheu para dentro de casa.
Tem uma casa muito exóti ca, de arquitectura invulgar, em espiral. Estranhamente carrega sempre a casa às costas, se calhar para fugir mais rapidamente lá para dentro. É de uma timidez doentia. É um fulano esquisito.
Estávamos num descampado, atrás de uma extensa fila de barracas viradas para a rua. Um lugar sombrio para uns, paradisíaco para outros. À noite, ali era a casa de banho para bêbados aflitos, era motel para amantes em urgência, era também ali que os cães e os salteadores lambiam as suas feridas.
O capim à meia altura, crespo, parecia não se agitar mesmo quando o vento andasse por perto. As espigas eriçadas e trémulas, verdes pêlos púbicos, encobriam as vergonhas da cidade.
Ali, quando amanhece e o horizonte começa a espreguiçar, o escuro da noite não se esvai por completo. Disfarça-se de diurno, esconde-se nas sombras e frequenta o dia, clandestinamente, na companhia dos amigos do alheio.
Eu estava estendido no chão. Estivera ali toda a madrugada. Os cães ainda farejavam o cio das cadelas quando o orvalho assentou lentamente, sobre a vegetação daninha e sobre mim. Ouviu-se a flauta do vento anunciar as primeiras réstias de sol.
Ouviam-se também os galhos secos a crepitar quando, em passos apressados, as pessoas passavam, tal como o vento, indiferentes à minha presença.
Por baixo daquele cenário taciturno, a carapinha entrelaçada da vegetação escondia um tráfego ecológico intenso. Como agulhas coabitando impunes no palheiro, pequenos bichos frequentavam aquele mato minúsculo.
Havia pulgas competindo saltos com gafanhotos. Escaravelhos reciclando fezes que disputavam com as moscas. Minhocas garimpeiras espreitando da salsugem.
Formigas imparáveis, embaladas no labor, usufruindo melhor do que ninguém o direito de uso e aproveitamento da terra que Deus lhes conferiu. Mosquitos zumbindo e morando num preservativo usado e atirado por ali.
O caracol espreitou as antenas para fora da concha e voltou a olhar para mim. Primeiro com espanto, estranhando a minha presença estrangeira ao lugar. Depois desviou o olhar de mira fugidia, com aquela timidez que se lhe conhece. Voltou a olhar. Moveu-se e aproximou-se. Tocou-me, assustou-se e encolheu-se, recolhendo para a concha casa.
Aos poucos, a curiosidade venceu-lhe a ti midez e habituou-se à minha presença. Retraída, deslizou até a minha mão esparramada no chão. Tocou-me com mais coragem. Tacteando-me a pele.
Os caracóis gostam de lugares húmidos. Deve ter gostado do manto de orvalho que me cobria. Ganhou confiança e subiu para os meus dedos. Demorou alguns minutos na minha mão, até começar a deslizar pelo braço acima, molhando-me com os seus líquidos ínti mos.
Deixava uma trilha viscosa na minha pele. Dobrou o meu cotovelo e rebolou aquele corpo disforme até o meu ombro, molhado com a baba que eu espumava. Os caracóis gostam de lugares húmidos, por isso demorou, gostou da minha baba.
Para se deslocar rebolava o corpo, lentamente, mais lambendo do que movendo. O caracol parecia uma língua enorme, húmida e reluzente, misturando a sua gosma com a minha baba. Começava a haver uma afinidade indescritível naquela troca de salivas. Quando dois corpos trocam de humidade, há sempre troca de afecto. O caracol era meigo, dócil, e gingava o seu corpo sobre mim. Era amor. Amor à primeira vista.
Moveu-se, pelo meu pescoço, deixando aquele rastro de gosma na minha barba áspera. Passou sem pressa pelo meu olho, como se me acariciasse o rosto. Demorou no contorno da minha boca, nos meus lábios espumados, como amantes em primeiro beijo, um toque de lábios apenas, antes de mergulharem naquela voraz troca de línguas.
O caracol parece uma língua enorme e viscosa. A minha língua húmida, espumada e pendurada para fora, parecia uma lesma quieta. Os caracóis gostam de lugares húmidos. Foi o meu últi mo beijo.
Muito mais tarde, quando a polícia chegou com poses de muito pontuais e orientou a remoção do corpo, o caracol conti nuava acoplado à minha língua. Deleitando a minha rigidez cadavérica, deixou-se levar comigo, e parti mos felizes, em lua-de-mel, numa qualquer vala comum.