Henrietta Lacks, jovem negra americana, morreu de cancro em 1951. O estudo das propriedades invulgares dos seus tecidos já permitiu à medicina curar milhões de pessoas. Contada em livro pela jornalista científica Rebecca Skloot, a sua história foi best-seller nos Estados Unidos [The immortal life of Henrietta Lacks (A vida imortal de Henrietta Lacks), editora Macmillan].
Que resta de Henrietta, nascida a 1 de Agosto de 1920, em Roanoke, Virgínia? Basicamente, as primeiras sílabas do nome e do apelido: HeLa. Quatro letras fizeram desta mulher, quase analfabeta, uma das personagens mais importantes da medicina moderna.A 4 de Fevereiro de 1951, Henrietta Lacks percorreu com o marido as três dezenas de quilómetros que separam a sua casa do hospital Johns Hopkins, em Baltimore, o único da área que tratava gratuitamente pobres e negros. Chovia. Henrietta saiu cambaleante do seu velho Buick, com o casaco a cobrir-lhe a cabeça.
À força de não querer ir ao médico, as dores tinham-se tornado insuportáveis. “Tenho um nó na barriga”, queixou-se à enfermeira, na sala de espera dos negros. O tal nó era um tumor maligno no útero, logo descoberto pelo ginecologista Howard Jones.
Assim começou a incrível história de Henrietta Lacks. Rebecca Skloot demorou dez anos a reconstituí-la. Um trabalho de formiguinha que se lê num ápice como se de um romance se tratasse, um livro científi co que lhe granjeou o prémio de Livro do Ano da Amazon (maior livraria mundial na Net).
Skloot explica que, em 1951, o hospital Johns Hopkins não se restringia a consultas, tratamentos e cirurgias. Já tinha um departamento de investigação. Naquela época, o desafi o dos laboratórios era fazer experiências in vitro (literalmente no tubo de ensaio, fora de um organismo vivo), mas ninguém conseguia cultivar células humanas que vivessem tempo suficiente. Qualquer que fosse a forma como eram alimentadas, acabavam por morrer.
Surpreendidos pela agressividade do cancro de Henrietta, os médicos recolheram tecidos para estudo, mesmo sem lhe pedir autorização. Era prática corrente. O laboratório de investigação de cultura de tecidos era liderado pelo médico George Gey. A colheita de Henrietta foi recebida sem entusiasmo, pela assistente.
Nas provetas escreveu HeLa, convencida de que estas células morreriam, como todas as outras. Já George Gey fi cou à espera. Acreditou que algo acabaria por acontecer, porque em 1943 investigadores já tinham conseguido replicar sem problemas células de ratos.
No dia seguinte, quando a assistente foi verifi car as amostras HeLa, constatou que as células sãs estavam mortas, ao contrário das cancerosas. Gey não se manifestou, mas, ao fim de alguns dias, era óbvio que não só estavam vivas como proliferavam a uma velocidade vertiginosa. O seu número duplicava a cada 24 horas! Gey alcançara aquilo que a comunidade científi ca há muito esperava: uma cultura de células humanas virtualmente imortais.
Uma célula milagrosa
A notícia espalhou-se rapidamente pela comunidade científi ca. Cada investigador requisitou o seu lote de HeLa para poder, enfim, trabalhar em condições. Quando Henrietta foi vencida pelo cancro, em Outubro de 1951, praticamente todas as células do seu corpo foram entregues a laboratórios. Rebecca Skloot conta que, desde 1952, “foram produzidos milhares de litros de cultura celular segundo a receita de George Gey. HeLa tornou-se o cavalo de batalha da biologia mundial”.
As células de Henrietta espalharam-se pelos Estados Unidos. Atravessaram a América do Sul, Europa e Ásia. De barco, de avião e até de mula. Pela primeira vez, os protocolos de cultura de células foram normalizados. Graças a Henrietta, o conhecimento científi co progrediu na genética, na luta contra o HIV e na compreensão do cancro.
Desde 1952, as culturas HeLa salvaram milhares de crianças da poliomielite. Foi nestas amostras que Jonas Salk ensaiou a vacina ainda hoje usada e que deverá erradicar a doença dentro de dois anos. Graças a duas gotas depositadas na língua, milhões de crianças transportam em si um bocadinho de Henrietta Lacks.
Nos anos 1960, o êxito de HeLa, fácil de cultivar, começou a interessar os jornalistas. De onde vinha a célula milagrosa? Os médicos preferiram ocultar a informação, sem dúvida por medo, pois não tinham obtido consentimento da paciente. Em 1973, a revista de referência Nature colocou a questão: “Esta mulher atingiu a imortalidade, tanto nos tubos de ensaio como no coração dos investigadores de todo o mundo. Alguém sabe a resposta?”.
Os laboratórios não responderam, deixando circular rumores sobre diferentes nomes como Helene Lane ou Helene Larson. Só nos anos 1990 é que o nome foi divulgado junto do grande público. Final da história? Não, porque é preciso desvendar o último segredo da incrível vida após a morte de Henrietta. Por que razão as suas células nunca morrem?
O mistério prevaleceu até ao fim do século XX. Através das culturas HeLa, os investigadores verifi caram que as células cancerosas são capazes de se reproduzir para sempre. As células sãs envelhecem à medida que as espirais de ADN dos cromossomas (telómeros) perdem elasticidade.
Em cada divisão celular, o telómero vai perdendo espessura, até se fragmentar de vez. A partir daí, a célula não se pode voltar a dividir e morre. As células cancerosas são capazes de reconstituir os telómeros graças a uma enzima: a telomerase. Esta fonte de juventude é uma das chaves para a possível imortalidade das nossas células.
Os investigadores que fizeram estas descobertas receberam o Nobel da Medicina em 2009 (Elizabeth Blackburn, Carol Greider e Jack Szostak). Mesmo que tivesse sobrevivido ao cancro, Henrietta dificilmente estaria entre nós: faria 91 anos no próximo dia 1 de Agosto. Está morta, mas mais viva do que nunca. Se fosse possível alinhar todas as células HeLa usadas na investigação médica até hoje, elas dariam três voltas à Terra.