O sono não me visitou, ou seja, não visitei o sono na noite do dia que antecedia o Natal de um ano distante de que não me lembro. A mente trabalhava, trabalhou até que o sol do dia 25 de Dezembro se levantasse.
Durante a noite toda, pensava no estilo que aplicaria ao estrear o novo par de ‘pipocas’, uns chinelos de sola frágil, quase esponjosa. Com o novo par substituiria o do ano que se fora, depois teria que poupar , usando só para saídas importantes, aguardando outro Natal para ser presenteado com um outro par.
Procurava-me recordar do suculento sabor a Coca-Cola, pois o meu último refrigerante havia sido no Natal do ano que se fora, isto é, tinha aguardado, à semelhança de outras crianças da minha laia, 365 dias para adocicar mais um cool drink. Ah! Não conseguia pegar sono aquela noite.
Não pegava sono. Através dumas ligeiras separações entre o caniço que fazia as quatro paredes da casa da titia Rassi, onde ia passar o Natal, consegui ver os cães passa-noites a namorar no quintal da titia Rassi.
E os orifícios do telhado de zinco enferrujado deixavam-me assistir à lua apagar-se à medida que o sol se levantava do seu esconderijo para alumiar o Natal daquele ano distante, ano de que não me lembro, aliás, não cheguei a saber que ano era, eu era um puto de entre cinco e sete anos de idade e não controlava o tempo.
É que naquela altura, nós, tipos pequeninos, não controlávamos o tempo, não fazíamos agendas, não tínhamos nem programinhas que nos fizessem pensar nos dias de semana, diferentemente dos miúdos de agora, que têm acesso a essas novelas brasileiras, música, etc., nem tínhamos aparelhos para isso.
Com o sol já nas alturas, um ruído fazia-se ouvir do lado donde a titia Rassi dormia, era ela a acordar, pois os raios invadiam a casa de caniço e zinco e picavam-nos. Fechei os olhos e fi ngi estar em profundo sono enquanto a titia despertava a prima Sau, mais velha que eu.
– Sau, acorda!
– Uhm, uhm! – reclamava a prima Sau, com a preguiça do sono a tomar conta do seu rosto de mulher forte e trabalhadora.
– Hyeiwena, acorda! Preguiçosa.
Escutei a conversa quando a prima Sau despertou, por acaso gostei do diálogo. Falavam de me dar xiquento no momento em que estariam a fazer os deliciosos pratos da festa de Natal.
– Fazer coisas rápidas porque Chiquito vai acordar com fome dali.
– Sim, mamã. Vou esquentar comida de ontem se ele acordar agora.
Percebi que ao acordar, naquele momento, teria algo para comer, mesmo antes de se prontifi car a mesa do Natal. Comecei a mexer-me em gestos de quem ressuscitava do sono lento.
– Iuhm, iuhm – isso fazia eu erguendo a cabeça e ressurgindo dos cobertores. A titia acariciou- me os lábios e beijou-me a testa ainda com palavras de mãe na ponta da língua.
– Chiquito, acordou? – Afi rmei com a cabeça, fingindo ser dominado pelo peso do sono acabado de ir.
12horas. Era já hora da festa. Eu saía do banho de balde, naquele tempo o banho de criança podia ser feito no meio do quintal. Nós não éramos como crianças de hoje, que pensam que têm algo a esconder, quando tudo se encontra ainda em crescimento e amadurecimento.
Um gingar autêntico via-se em mim, com chinelo novo. Precisei de ensaiar e exercitar o estilo de andar para sair de dentro da casa até a mesa da festa, posta no meio do quintal. Sinceramente, aquele par de chinelo fez-me descobrir o meu orgulho, que hoje se esconde com a máscara da cristandade, sim pois cristãos são orgulhosos, mas sabem ser humildes.
Na mesa, comia muito do que tinha, mas poupava o refresco, que tomei até a metade da garrafa. O que restava queria levar de passeio, pois queria que todas outras crianças da área me vissem limpo, pois na altura banho de criança nos dias quaisquer era só na hora de dormir para não voltar a sujar. Queria passear para exibir o novo par de chinelo e refresco. Tudo isso eu tinha que expor porque era só uma vez por ano.
Táh, táh, táh… – esse era o barulho de chinelo ao longo do meu passeio. Todos tinham que olhar.
Mas para minha vergonha, outras crianças estavam de novo sapato. E eu, de novo chinelo.