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Mortas em nome da tradição

Mortas em nome da tradição

Eram três irmãs com idades compreendidas entre os 16 e os18 anos. Hameeda, Ruqqaya e Raheena viviam em Baba Kot, uma aldeia do Baluchistão, uma província árida do sudoeste do Paquistão, onde a terra não é senão areia, calhaus e rochas esculpidas pelo vento. Hoje estão mortas, enterradas vivas numa vala comum, vítimas de um “crime de honra” que, pela sua inédita selvajaria, sacode, desde há várias semanas, as consciências no Paquistão, país onde este tipo de crimes é prática comum.

 

Hameeda, Ruqqaya e Raheena foram mortas em nome da tradição. Cometeram o crime de querer casar com o homem que haviam escolhido e não com os primos da tribo, os umrani, aos quais estavam prometidas. O que se passou exactamente naquele 14 de Julho, funesto dia em que o crime foi perpetrado? Na véspera, dia 13 de Julho, as três raparigas, acompanhadas pela mãe e uma tia, deixaram de táxi a aldeia de Baba Kot, tomando a direcção de Usta Mohammad, um burgo situado a 80 quilómetros, onde Hameeda, Ruqqaya e Raheena pretendiam registar o casamento com os seus eleitos.

 

Crime hediondo

 

Todavia, a escapada seria breve e, sobretudo, fatal. Mal chegadas a Usta Mohammad, as cinco mulheres são levadas por um punhado de homens da tribo umrani e lançadas aos seus algozes. O crime que as jovens cometeram foi o facto de terem menosprezado a ordem ancestral das coisas, desafiando as estratégias matrimoniais do clã, devendo ser castigadas por isso. Embarcaram, sob a ameaça de metralhadoras, no “Land Cruiser” de seus raptores, rumo, novamente, à sua aldeia natal de Baba Kot. Uma jirga – assembleia de notáveis – foi solenemente convocada para decidir da sua sorte. A decisão não demorou. A sua morte deveria ser especial, precedida de um terrível suplício que deveria servir de lição a todas as outras raparigas da comunidade. A execução, com todos os requintes, estaria reservada para o dia seguinte. E assim foi.

Logo de manhã as cinco condenadas foram conduzidas ao coração de uma zona desértica. Os carrascos levaram com eles uma escavadora. O engenho abriu uma cova grande. Em seguida, o condutor jogou a lâmina dentada sobre as mulheres que estavam alinhadas, entrando nelas como uma faca gigante cortando a carne, os ossos, o crânio. Depois, uma salva de tiros, ceifou-as. Finalmente, a escavadora atirou os corpos martirizados para a vala, o seu túmulo. O sangue correu a jorros, mas, escreveria mais tarde a imprensa paquistanesa, algumas delas ainda não tinham sucumbido aos ferimentos quando os torcionários começaram a cobrir os corpos com areia e pedras.

Mulheres enterradas vivas no Baluchistão! Que se sabe hoje deste crime se a sociedade civil paquistanesa, com os seus media audaciosos e as suas activas associações de femininistas, não se mobilizaram para evitar que as supliciadas de Baba Kot não fossem enterradas uma segunda vez?

 

Justificação Cultural

 

A história das mulheres enterradas vivas no Baluchistão têm feito correr muita tinta nos jornais paquistaneses. Desde então, é de Islamabad, a capital, onde os espíritos iluminados não faltam, que se orquestra o combate jornalístico. O diário anglófono “The News” ilustra isso. Este periódico confiou a Rauf Llasra, um jornalista de investigação habituado a escândalos financeiros, a tarefa de descobrir o fio à meada deste “crime de honra”, que uma conspiração de silêncio parece querer abafar. Até agora a polícia da região nada tem feito, uma vez que personalidades de peso locais estão implicadas no crime. O “Land Cruiser” que serviu para raptar as cinco mulheres ostentava uma matrícula oficial reservada aos veículos do governo do Baluchistão.

Segundo testemunhas, o instigador do assassínio seria Abdul Sattar Umrani, irmão de Sadiq Umrani, ministro da Habitação do governo do Baluchistão, aliado do Partido do Povo Paquistanês (PPP), o partido do clã Bhutto, hoje no poder. O movimento incarnado durante duas décadas por Benazir Bhutto (assassinada em Dezembro de 2007) afixou um progressismo teórico sobre a questão dos direitos das mulheres, as combinações políticas onde muitas vezes a razão de nobres ideais. O PPP não quer sobretudo ofender os chefes da tribo do Baluchistão, província que contribuiu grandemente para a eleição, no dia 6 de Setembro, de Asif Ali Zardari, viúvo de Benazir, à presidência.

Para o jornalista Rauf Klasra esta é “uma grande história, mas tenho receio que caia no esquecimento porque os nossos dirigentes políticos não se interessam por elas”, explica. A pressão sobre o jornalista tem aumentado à medida que ele descobre provas. O seu trabalho acabou por encontrar uma ressonância surda no Senado no dia 29 de Agosto quando, respondendo a uma interpelação de uma escolhida sobre o drama de Baba Kot, Mir israhullah Zehri, representante do partido nacionalista do Baluchistão, deu uma justificação cultural para os “crimes de honra”. “São tradições multi-seculares e continuo a defendê-las.” No hemiciclo os protestos fundiram-se. A televisão filmou esta inusitada bronca e, subitamente, deu uma dimensão nacional ao assunto. “Tudo oscilou a partir do momento em que as televisões retransmitiram este incidente no Senado”, declara Rauf Klasra. Num país como o Paquistão, onde a taxa de analfabetismo é muito elevada (70%), a imprensa escrita não tem muito eco. Como as televisões se apoderaram do assunto, os dirigentes políticos reagiram.” Decididamente, o Paquistão não é o mesmo desde que os canais privados floresceram a favor da desregulamentação do sector audiovisual, uma herança paradoxal do consulado militar (1999-2008) do ex-presidente Pervez Musharraf.

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