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A Ntyiso wa wansati: Desgostos de amor

Amores de Verão enterram-se na areia, disseste-me tu, com cara de goraz, ao pequeno-almoço no café da vila no último dia de férias. É um café igual a tantos outros, sogra na cozinha, a mulher no balcão e o dono a servir às mesas com a ajuda dos dois filhos, menores de idade e provavelmente ainda alunos do ensino básico. Em qualquer outro país da Europa chique – a dos eslavos e dos gregos já não conta – isto era motivo mais do que suficiente para os pais – a mão ao balcão a tirar bicas e amarguinhas e o pai às mesas, com o tabuleiro cheio de um lado para o outro – perderem a guarda dos filhos.

Mas neste solário gigante não é assim: todos os anos morrem crianças nas mãos de pais, mães, padrastos e tios demoníacos e cada vez que uma tragédia dessas acontece e vai parar à televisão, o país inteiro protesta, indigna-se e depois não muda nada.

Eu também tentei protestar e indignar-me com a tua frieza e desfaçatez, a tratares-me como um objecto descartável, um isqueiro, uma fralda, um lenço de papel, tanto faz. Sempre te achei um bocado aéreo e desligado, mas atribuía as tuas ausências cada vez mais frequentes a outras coisas que me nada tinham a ver comigo. Como todas as mulheres, tentei enganar-me. Tentei convencer-me de que o fim não era agora, que o fim, essa palavra que aparece no fim dos livros e dos filmes e da vida só se escreve quando eu quero. Até é assim nos livros e nos filmes, quem manda na história somos sempre nós, ou o realizador, o que é mais ou menos a mesma coisa, mas nem na vida nem na morte nós decidimos o que quer que seja.

Amores de Verão enterram-se num buraco qualquer, respondi, ouvindo sair de mim uma voz totalmente desconhecida. Felizmente este ano a moda favorece os óculos escuros gigantes a tapar a cara quase por inteiro, como se fossem uma máscara de gás em tempo de paz e ainda tinha um chapéu de palha enorme a proteger-me, por isso nem deves ter percebido que de repente eu era uma miúda com um ataque de choro daqueles que põem os ombros aos soluções e fazem os braços ondularem sozinhos ao longo do corpo.

A última vez que tive um desgosto de amor entrei em hipotermia. Foi há dois anos, quando descobri que o Eduardo, com quem vivia há 5 anos, dormia há dois com a Cristina, minha amiga da ginástica. Nunca percebi a que horas se encontravam, ela ia sempre às mesmas aulas que eu, mas devo-me ter enganado de propósito, como todas as mulheres, devo ter evitado todos os sinais e todas as evidências e contigo também fiz o mesmo.

Podia ter-te dito que nenhum amor de Verão dura até o Verão seguinte, e quando dura é porque não é de Verão, é outra coisa, uma coisa boa que não me apetece largar, não agora que a pele ainda está dourada pelo sol, que me sobram 5 dias de férias, que o Inverno ainda não começou. Mas não tive forças. Perdi-as no início do Verão quando o teu irmão António, depois de se insinuar na praia – já o tinha feito o ano passado, mas mais uma vez não liguei – começou a fazer-te a cabeça para acabares comigo.

De repente, as pacatas férias na mesma praia de sempre transformaram-se em episódios do Dallas e quando dei por mim já estava exausta de lutar pela tua presença, tentar convencer-te a trocar os jantares de família por programas comigo, quase sempre sem sucesso.

Às vezes ganhamos, outras perdemos, outras ainda nem uma coisa nem outra, e nestes casos é que é pior, porque nunca sabes o que aconteceu nem porquê. Um dia, alguém decide mudar a tua vida, meter o nariz onde não é chamado e, para grande espanto do cosmos, consegue.

Levantei-me e despedi-me com um beijo rápido, afastei-me e depois voltei atrás, lembrei-me de que precisava de pôr pressão nos pneus e pedi-te para vires comigo à bomba. Fiquei a observar-te a medir a pressão enquanto davas a volta ao carro e durante aqueles últimos segundos fixei os teus gestos, a cor do teu cabelo, o desenho das tuas mãos, a expressão concentrada que tens quando está a fazer alguma coisa e depois fui-me embora sem olhar para trás.

Ouvi dizer que vão fazer um remake do Dallas, por isso vou telefonar ao teu irmão a sugerir-lhe que faça um casting para o papel de JR, já que cara e ala de filho da puta ele tem, é pena é falar mal inglês. Eu também podia fazer de Sue Ellen, mas não tenho vocação para sofredora nem talento para alcoólica. O máximo que podia fazer eram dobragens para os filmes da Disney, da Pequena Sereia à Anastásia, por exemplo, embora nessa manhã enevoada e estúpida me tenha sentido a Dori quando te vi, com cara de peixe a dizer-me vulgaridades.

Até então, nunca tinha reparado que tens cara de peixe apanhado na rede, daqueles que já estão fora de água há mais de um minuto e são tão estúpidos que nem percebem que vão morrer.

Nessa mesma noite, telefonei a um amante antigo e fui comer delicadezas nipónicas regadas a aguardente de arroz em tua honra. E nessa mesma noite, em tua honra e em honra do teu irmão JR, deitei-me com o meu antigo amante, o ex marido da Cristina, com quem passei a noite num hotel de luxo em Sintra.

Também tive frio quando tudo acabou, ele adormeceu ao meu lado e foi então que chorei tudo o que tinha cá dentro e me senti um boneco desanimado, daqueles a quem as crianças da casa fizeram todas as maldades antes de o atirarem para uma caixa na arrecadação.

Tão cedo não alugo o Finding Nemo no clube de vídeo, senão ainda tenho outro ataque de choro quando me aparecer peixe da barbatana atrofiada que espera impotente dentro de um aquário, a chegada do pai que o vai salvar. É que na areia molhada tu fazes uma cova mas ela desaparece logo. Só o tempo enterra os tesouros perdidos no fundo do mar.

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