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Passar ao lado da vida

Passar ao lado da vida
Na Matola há um infantário para crianças com deficiências físico-psíquicas. As condições, essas, é que estão longe de serem as melhores para estes casos. Começando no problema da partilha de espaço, passando pela carência de cadeiras de rodas e de um parque infantil até à falta de assistência de um psicólogo, tudo é um mar de dificuldades, só atenuadas pelo carinho das irmãs responsáveis.
 
À espera de melhores dias
Infantário da Matola num mar de dificuldades
 

São 12 horas quando batemos ao portão. Ainda do lado de fora vislumbramos uma dezena de edifícios de cor azul. Um azul pálido, muito pálido. Já no portão pedimos para falar com o responsável e logo somos convidados a entrar: “Não há problema, dêem a volta. A irmã está no refeitório”, diz o guarda, abrindo o pesado portão de ferro.

 

Aquilo a que chamam “Infantário da Matola”, na verdade não deveria ser assim designado. O nome mais acertado seria Centro de Reabilitação Psico-Social, uma vez que acolhe crianças, adolescentes e adultos com perturbações físico-mentais profundas. Não é necessária uma visita pormenorizada para perceber que estamos em presença de indivíduos com mais de 15 anos. Dezanove têm para cima de 20 anos. Mais números referem que dos 67 residentes, mais de 60 foram abandonados quando os seus progenitores tomaram conhecimento das suas deficiências.

E se os dias não são mais sombrios no infantário da Matola, tal deve-se ao auxílio da Cooperação Portuguesa (CP) que, na ausência da intervenção do Estado, tem assegurado mensalmente as despesas básicas: manutenção, comida, luz e água, totalizando tudo isto 150 mil meticais.

Construído em 1963 e desde a independência tutelado pela Direcção Provincial da Acção Social, este local deve também muito às Irmãs Hospitaleiras de Jesus Cristo (IHJC), que desde sempre têm suavizado este inferno de depósito humano. Mas, mesmo amenizado por esta congregação religiosa visitá-lo é capaz, diz quem já o fez, de derreter o coração mais petrificado.

Nos dormitórios, devido à exiguidade de espaço, só é possível separar os residentes por sexo. Os quartos, concebidos para 13 pessoas, acomodam mais de 20. Ir à casa de banho é uma aventura, sobretudo para os que estão entrevados em cadeiras de rodas, já que não há rampas de acesso.

A grande maioria dos residentes é oriunda do Infantário 1 º de Maio, na cidade de Maputo, os restantes são identificados pela Direcção Provincial de Acção Social (DPAS). No caso do 1º de Maio, as crianças são transferidas quando atingem seis anos, isto em relação aos portadores de enfermidade físico-mental.

No pátio deparamos com um grupo de crianças, adolescentes e adultos. Provêm de vários compartimentos e agora convergem para o mesmo ponto. Presumimos que o refeitório seja ali. E não nos enganamos. Duas pequenas torneiras jorram água suficiente para a lavagem das mãos. Algumas crianças seguem em cadeiras de rodas. No refeitório, agora repleto de vida, reina algum caos. A muito custo oito funcionárias, entre elas, uma senhora vestida de branco a dar instruções, conseguem pôr cobro à desordem.

   Moisés Comiche, DPSA  Irmã Isabel, Directora do Infantário da Matola
   Moisés Comiche, DPSA  Irmã Isabel, Directora do Infantário da Matola

Onze mesas circulares harmoniosamente dispostas, com cinco cadeirinhas cada, estão já ocupadas. Muitos dos miúdos estão descalços. Não é que não tenham sapatos, mas, para dar nas vistas, para chamar à atenção, descalçam-se diante dos estranhos.

A senhora de branco, com aparência superior a 50 anos, cabelo curto, baixa, acenanos, dizendo que só nos pode atender depois da refeição. É, então, tempo para observarmos.

Sobre as mesas, sobressaem pratos de alumínio com sopa de vegetais. Nem todos comem com o mesmo apetite. Ernesto, esparramando-se no chão, reivindica, para desespero da senhora de branco, uma comida diferente: “Não sei porque dão sopa a este rapaz! Ele nunca come. Faz sempre birras para vir para a mesa.”

Ernesto é autista e rejeita qualquer líquido. Naquela pequena boca só entram sólidos. Sopa, às vezes, mas só disfarçada à laia de caril.

“Miyela! senta-te!”, implora quase de joelhos a senhora de branco que não sabe como convencer um outro rapaz a comer. João, assim se chama rapaz, prefere a brincadeira com o carrinho e então depois, talvez coma qualquer coisa. Mas o problema do João nem é dos maiores: do outro lado do refeitório estão crianças que só podem comer se o alimento lhes for levado à boca. Padecem de deficiências psicomotoras.

Do lado oposto, um miúdo com vestes andrajosas, estica os braços para receber um prato de sopa. Os olhos envelhecidos chegam a comover. Dá os cinco dedinhos. A mão adulta segura-os. Um pouco de calor numa vida fria. “José é oligofrénico”, esclarece uma funcionária. “Foi abandonado como os outros”, acrescenta como se fosse a coisa mais natural do mundo. Este José tem 10 anos e, para oferecer às pessoas de quem gosta, tem pauzinhos. A nossa presença não o perturba. Quem sabe se um dia aquele chão mirrado de esperança não será um jardim!

 

   

O lado oposto despedaça o coração. As palavras, quaisquer que sejam, matam a respiração. Afundadas em cadeirinhas de rodas, aqueles seres inocentes parecem anciãs sem alma. Apetece beijá-los, leválos, protegê-los.

Um choro interrompe o silêncio. Depois vêm soluços e um pranto engasgado. Uma funcionária canta, tentando despir-lhe a dor. Mas a melodia não chega. Só a sopa lhe devolve uma calma tremida.

 

   

O prato principal chega transportado num carrinho de rodas: três bandejas de alumínio e duas terrinas. A ementa é farinha de milho com peixe frito. Talvez agora Ernesto coma. Debalde. Continua no chão envolto no seu pequeno mundo, permanece no centro do refeitório alheio a tudo.

A tal senhora de branco chama- se Isabel e recebe-nos com um sorriso do tamanho do mundo no seu gabinete. Diz-nos que está à frente do orfanato há um ano e meio. Pertence às IHSCJ. Escutamos atentamente da sua boca as principais queixas: “Neste momento os maiores problemas prendem-se com a dificuldade de encontrar gente que esteja preparada a nível técnico. Temos funcionários, mas sem capacitação específica.”

No seu entender, para trabalhar com doentes deste tipo é necessário que haja pessoal com formação nesse campo. “Estes doentes precisam de acompanhamento pormenorizado, devem ser separados por diagnóstico. Também os mais velhos não deviam estar junto dos mais novos. Contudo, neste ponto, Isabel é realista reconhecendo que esse sonho – construir compartimentos separados para adultos e crianças – não passa de uma miragem, porque a DPAS nunca manifestou vontade em responder às necessidades do infantário. Para esta irmã, reina “alguma insensibilidade na DPAS.”

Efectivamente, é óbvio que o infantário não foi concebido para albergar adultos. O seu fim era servir de rampa para reintegração social das crianças. No entanto, Eleutério, de 31 anos, dos quais 26 passados ali, padece de um atraso de desenvolvimento psicomotor, não tendo ainda sido reintegrado na sociedade. “O grande problema é que em Moçambique não existe nenhuma instituição destinada a acolher adultos, por isso os doentes vão-se arrastando, definitivamente, no infantário da Matola”, refere Isabel.

Eleutério não é único. A Irmã sabe que a esta promiscuidade etária não ajuda mas não vislumbra solução para o problema. “Para nós, constituem um choque terrível as condições aqui prevalecentes, mas eles só estão aqui porque na rua morreriam de fome e frio.”

Na conversa com Isabel ficamos a saber que há dois técnicos de psiquiatria, a apoiarem o orfanato. “Um deles vem uma vez por semana e o outro uma vez por mês. Precisamos com urgência de um psicólogo, de cadeiras para terapia ocupacional, de cadeiras de roda adaptadas a estas crianças. Mas as necessidades mais prementes são duas cadeiras de rodas tipo cama e um parque infantil. Já fiz várias petições a Direcção Provincial da Acção Social (DPAC) para ver se conseguimos solucionar o problema, mas até hoje nunca manifestaram disponibilidade. Nem se consegue construir uma rampa para facilitar o acesso as crianças inválidas” relata, um pouco agastada, Isabel.

“Não temos uma solução mágica”

Moisés Comiche, Chefe do Departamento do Acção Social do DPAS, reconhece que efectivamente não existe pessoal qualificado, mas recorda que “há um acordo com a CP que preconiza a admissão de pessoal especializado.” Comiche escusa-se, todavia, a avançar datas para sua materialização: “A longo prazo queremos que esse pessoal especializado faça parte do quadro do infantário.”

O funcionário do DPAS reconhece a existência de adultos. “O facto de essas pessoas serem de difícil reintegração sócio familiar, faz com que permaneçam em definitivo no infantário. São pessoas com perturbações mentais profundas e por isso é muito difícil encontrar famílias de acolhimento. Não temos uma solução mágica para o problema.”

Comiche, recordou que em tempos houve um debate sério, aventando-se a possibilidade da Acção Social atribuir um subsídio financeiro às famílias que acolhessem as crianças “mas esse debate não produziu resultados palpáveis.”

No que diz respeito à construção de mais edifícios e a adaptação da casa de banho permitindo o acesso de cadeiras de rodas, o funcionário da DPAS foi claro: “Em relação a novas construções nada está previsto.”

Instado a comentar a degradação acentuada das cadeiras de rodas do tipo cama e a falta de algumas, Comiche referiu que “deve haver algum problema de comunicação, porque esse tipo de material nós conseguimos obter através do Instituto de Acção Social e de outros parceiros. Mas vamos averiguar.”

Enquanto o DPSA não consegue construir um parque infantil, muito menos separar adultos de crianças, no pátio do infantário da Matola um cavalo, ofertado ao orfanato no último Dia Mundial da Criança e actualmente usado para serviços físico-terapêuticos, transformou-se na coqueluche de todos. Segurando as rédeas, Eugénia, uma criança abandonada recém-nascida nas Mahotas e que hoje tem sete anos, parece querer agarrar com força um futuro que se apresenta cada vez mais incerto.

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