Não, não falo do juízo final, aquele que se crê em algumas religiões que irá organizar no nosso currículo as faltas e os pontos positivos e decidir da avaliação. Não falo disso. Falo do pré. O pré-juízo. Não sei bem o que é ou de onde vem, mas sinto que acontece.
Todos nós, nalgum momento antes de pensar – dizemos; antes de saber – afirmamos; antes de escutar – julgamos. Porque fala a aparência tanto? Logo que me parece já digo que é. E mesmo sem me aperceber disparo coisas habituais como constantes e as constantes como certezas. E surgem no discurso sem pensar, bem escondidas nas bolsas vazias dos solilóquios a dois – nos monólogos disfarçados de diálogos. Identificas-te? Pois é, mas não devia ser.
Todos sabemos o quanto é limitadora e mesmo negativa esta atitude, mas tantas vezes escorregamos neles… nos rótulos. E afirmamos alegremente que “eles” fazem assim. Mas a minha questão está aqui, quem são “eles” e porque me ponho eu de fora de um grupo? Como limito esse grupo? Limito assim, com um préjuízo. E “eles” podem ser os brancos, os negros, os monhés, os chinas, os muçulmanos, nigerianos, assimilados, mulatos, canecos, bouers…
Eles são, são “assim”, são “assado”. Eles são. Eu sei. Porquê? É difícil precisar, mas em geral argumentamos que é verdade que vem de longe, e que “toda a gente sabe”. Ora se conceitos como verdade e longe são difíceis de precisar o terceiro faz de novo aparecer os fantasmas a abater, porque pensa comigo: quem é “toda a gente”? Desde que viajo que esta ideia me assombra – as pessoas quando viajam observam em perfeito deslumbre o que ignoram em casa. E eu tenho medo. Por não querer agir assim e pela hipótese de ser condição à qual não posso – leiase aqui “não consigo” – fugir.
Fora de casa, se sou migrante, não só as características de outros povos são para mim mais interessantes mas também as da minha própria cultura tomam diferente dimensão. No estrangeiro o moçambicano aprende as línguas que nunca falou em casa ou toca tambor africano que nunca tinha experimentado. No estrangeiro eu guardo um xaile tradicional português e comovo-me com um Fado que nunca ouvi em Portugal.
Viajamos. Estamos no estrangeiro. E exercitamos em viagem uma tolerância e um interesse pelo que é diferente de mim que são intolerância e recusa se o experimento na minha casa, no meu prédio, no meu bairro. Não o aceito, critico-o mesmo, se essa diferença se expressa num determinado menu, numa prática religiosa, numa maneira de vestir, de decorar o carro ou perfumar o corpo. Se acontece no que acredito que é a minha terra, o meu território, o que é meu de direito não o tolero.
Mas llllllllaaaaaaaaaaaaaaaaaá, naqueles contextos longínquos e preenchidos de exotismo o incenso é mais perfumado e o caril mais doce, o muezin mais afinado e as línguas mais… misteriosas. Os ovos comprados na África do Sul são melhores que os que compro deste lado da fronteira, mesmo que os traga de apenas dez quilómetros atrás. As roupas que compro a dez Rands na baixa de Joanesburgo são melhores que as que oferecem aqui os nigerianos. Porquê?
Porque vêm do estrangeiro, destino que é bom quando vamos lá para fora, mas muitas vezes mau quando o recebemos cá dentro. O que experimento em cada dia agita-me as certezas mas penso que seria mais fácil. Seria mais fácil se todos nos lembrássemos que todos somos. Estrangeiros.