Antes de mais, como um pecador debruçado no genuflexório do confessionário, curvo-me diante do leitor e confesso que roubei o título deste texto – A chuva e o bom tempo – à, até há pouco tempo, coluna mais antiga da imprensa portuguesa. Assinada por João Fernandes, primeiro na revista “Notícia” editada em Angola antes da independência do país e depois em Portugal no semanário “O Diabo”, a crónica era, em ambas as publicações, a peça mais lida e comentada de modo que esta usurpação soa quase a heresia.
Das que saíram na primeira sou demasiado novo para ter memórias, mas das publicadas na segunda lembro-me perfeitamente. Até estou a ver a foto em que o João aparecia com aquele seu típico ar bonacheirão. A escrita do João, para além da indiscutível qualidade – hoje já vão rareando cronistas deste calibre -, prendia da primeira à última linha. Era acutilante sem ser demasiado bombástica, embora colocasse sempre o dedo na ferida; era penetrante sem se dar muito por isso; era corrosiva sem nunca ser difamatória; era cristalina quando tinha de ser e subtil quando era preciso ser.
Este sortilégio resultava, em grande parte, do desprendimento com que o João estava no jornalismo. O João estava no jornalismo pelo jornalismo, pelo prazer de informar sem deformar, pelo prazer de dar a notícia de uma forma exacta, correcta e o mais objectiva possível. Ao contrário do que se passa hoje com a maior parte dos jornalistas, para o João primeiro vinha o leitor e só depois o editor ou o director. Era para esses seres anónimos que ele escrevia.
Por vezes, não foi nada fácil ser tão livre, porque tanto na revista angolana como no “Diabo” o João experimentou as garras da censura, primeiro dos esbirros da PIDE depois das células do partido comunista que naquela época pós-abrilina tutelavam praticamente todos os órgãos de comunicação social portugueses.
Efectivamente, naqueles anos brasa subsequentes à revolução, o Diabo era um porta-estandarte que carregava, praticamente sozinho, a pesadíssima bandeira da liberdade de imprensa, um bem essencial a qualquer democracia moderna e defensora dos direitos cívicos dos seus cidadãos e que hoje parece escassear na “alimentação” noticiosa dos portugueses. Sim porque quando se encerram telejornais, quando se silenciam cronistas ou quando se interpõem providências cautelares para que determinada publicação não saia à rua, está-se a regredir no processo civilizacional.
Não é por acaso que as sociedades mais avançadas deste mundo são as que consagraram há mais tempo o direito à liberdade de expressão e opinião. Porque é da partilha da divergência da opinião que resulta o avanço do conhecimento. Nós, aqui em África, e é sem dúvida por isso que o avanço do conhecimento é tão lento, continuamos a preferir refugiarmo-nos num atavismo cultural de subserviência ao chefe – o que diz o chefe não se questiona.
Por isso não é de estranhar que o relatório anual publicado esta semana sobre os “Ataques à Imprensa em 2009” pelo Comité de Protecção aos Jornalistas refira que este ano [2009] foi o pior para os jornalistas da África subsariana em termos de número de mortos, afirmando ainda que “nunca se viu tantos jornalistas africanos a fugir dos seus países como este ano.”
Resultado, conclui o documento, “não se criou um vazio de informação, mas criou-se desinformação.” Essa mesma desinformação que o governo português, ao silenciar os jornalistas incómodos, parece pretender criar. E desinformar é faltar à verdade, essa mesma verdade pela qual deu a vida o nosso jornalista Carlos Cardoso, um paladino da liberdade de imprensa.
Porque, como ele dizia, no ofício da verdade é proibido pôr algemas nas palavras. E, sempre que assim for, é porque o SOL – título de um dos jornais que o governo português tentou silenciar – rompeu as nuvens e a chuva deu lugar ao bom tempo
Uma resposta
Excelente EDITORIAL. Saber que o recordam é uma enorme satisfacao, como amigo e companheiro dos dias do NOTICIA de Charulla de Azevedo. Foi um entre muitos outros cuja memoria respeito e recordo. Desde Colombia desejo-vos um bom ano 2024 e sorte, porque vao precisar dela. “Saludos”