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Viver para fora

Antes de te conhecer, o mundo era um lugar estranho e agreste, e eu via-o através de uma espécie de filtro que me protegia das pessoas e me fazia parecer invisível.

Treinei isso desde muito nova. Ser a quarta filha numa irmandade de sete facilitou-me a vida. Nunca percebi por que os meus pais tiveram tantos filhos, se depois nunca tinham tempo para eles. O meu pai sempre no Norte, fechado na fábrica a fazer tecidos e dinheiro, e a minha mãe sempre ausente: lanches, jantares, festas de caridade, presentes para os meninos do bairro de Santo António, coitadinhos, que não tinham nada… e lá iam os nossos brinquedos partidos, os nossos sapatos gastos, as nossas camisolas interiores desbotadas e descosidas, tudo muito velho e coçado.

Mas como era para os pobres, não fazia mal. A minha mãe, talvez olhasse para nós aos fins-de-semana, quando o meu pai voltava da fábrica. Nesses dias, abria-se a casa de jantar, e a Noémia e a Isilda punham a mesa e vestiam-nos mais ou menos a rigor para o almoço de família.

O jantar continuava a ser na copa, porque os meus pais nunca estavam, tinham sempre festas, bailes e outras coisas do género. Os meus irmãos, e irmãs, nunca me ligaram, e tu não sabes o que é estar só, no meio de dez pessoas!

Não sabes o que significa não tentares sequer falar, porque adivinhas que ninguém te vai ouvir. Nem consegues imaginar uma família inteira constituída por estranhos, porque sempre tiveste atenção e amor, e é por isso que te tornaste na melhor pessoa do mundo.

Hoje estamos casados, os nossos filhos chegam todos os dias do colégio com um sorriso novo e muitas histórias para contar, e eu tento ouvi- los, mas nem sempre consigo, porque me lembro das ausências da minha mãe, sempre ocupada com a sua “vida social”, como ela dizia. Não percebo como é que teve sete filhos para depois não lhes ligar.

Se calhar, naquele tempo era mesmo assim. O amor só existia nos romances de cordel, as pessoas aceitavam a crueldade da existência humana sem grandes exigências. Casar por amor era um luxo, e ser feliz era uma impossibilidade. Talvez por isso nunca tenha visto a minha mãe trocando um olhar com o meu pai, mas apenas uma postura perfeita de senhora de sociedade que cumpre as suas obrigações. Deve ser por isso que sou alérgica a festas, reuniões e concentrações familiares.

Começa-me logo a doer a cabeça, e cada vez que os meus irmãos inventam uma festa de anos, hiberno numa desculpa qualquer e faço tudo para não aparecer. A verdade é que descobri que era muito mais fácil ser invisível, porque assim ninguém reparava nos meus defeitos para me criticar, ou nas minhas qualidades para me invejar.

O filtro tornou-se um protector que só cai quando tu chegas e me abraças, e mergulhas nos meus olhos e me vês como sou, porque olhas para mim. Quando nos conhecemos, eu disse-te que tinhas sido a primeira pessoa a ver-me. Tu pensaste que eu era doida, mas acredita, meu amor, que o mundo é mesmo assim, as pessoas estão juntas todos os dias, sem conseguirem ver-se.

Falam umas com as outras, sem no entanto se ouvirem, e se não encontram alguém especial, como tudo, a vida pode passar-lhes ao lado, como passou à minha mãe. É que viver para fora dá muito trabalho e não serve para nada. Por isso, quando neste Natal o meu irmão mais velho telefonar a convidar-nos para a noite do 24, diz-lhe que hibernei em ti, ou em mim, ou para onde tu quiseres. Diz-lhe que fui para o Alasca, mas, por favor, não me faças passar o Natal entre os estranhos que são a família onde por acaso eu nasci.

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