Deviam ser por aí cinco e meia da tarde de um daqueles dias tropicais. Sentado na berma da cama, cogitava sobre as vicissitudes da vida. Como todo o provinciano que deixa a sua terra natal e pisa a capital do país em busca de um sonho, desenterrei as lembranças, e a saudade da família, da minha prometida Ajussaia – claro! – e da minha pacata aldeia que fica num desses longínquos e recônditos lugares, invadiu o meu ser.
A aldeia, formada por alguns indivíduos que fugiam ao xibalo, é desconhecida pelas autoridades do país e ostenta o nome do escravo que descobriu aquelas terras: Kanhumbeyal. A mesma fica a 250 quilómetros da estrada asfaltada que liga o norte ao sul. Curioso: até hoje os habitantes daquela aldeia perdida algures no território nacional pensam que os colonos ainda não se foram.
Certo dia, do nada apareceram alguns missionários católicos e a população de Kanhumbeyal pôs-se em pânico: “Colono, colono, colono…”, gritava-se. “Viemos trazer paz ao vosso espírito”, diziam os padres. O povo deixou-os ficar ali, mas desconfiava deles. E eu tornei-me amigo de um deles. O padre estava sempre de braços abertos para me ajudar, confiei-lhe os meus segredos e encorajou-me a abandonar a aldeia em busca de um sonho. Não sei dizer a que província pertence o povoado onde nasci. Mas isso agora pouco importa. Pensei: – se estivesse em Kanhumbeyal já me sentiria realizado.
Porque, pelo menos, teria dez machambas, um número considerável de cajueiros e cabritos, uma bicicleta, um rádio a pilhas e levaria uma vida feliz com a minha adorada Ajussaia. Mas aqui na capital os sonhos são outros e até tenho vergonha de os confessar. Enquanto saboreava um deslumbrante espectáculo ao anoitecer, um exército de lembranças invadiram o meu ser e traziam consigo lágrimas que formavam um imenso mar nos meus olhos. “Chegou uma carta para ti”, disse o rapaz com quem divido a renda de uma minúscula dependência. Pasmado e curioso, peguei nela e abri:
Meu querido filho, A tua mãe, com ajuda do alfabetizador, é quem te escreve. Com certeza, estás-te a perguntar como isso é possível. Não te preocupes, vou-te explicar como tudo começou. Quando saíste daqui, fugindo à desgraça, passados três meses apareceram na povoação uns indivíduos que disseram ser alfabetizadores enviados pelo governo para nos ensinarem a ler, a escrever e contar as galinhas, os cabritos, os bois e os cajueiros que temos. No início, mostrei alguma resistência porque pensei tratar-se de uma nova forma de colonização, mas acabei dando o braço a torcer. O teu tio Kamwene, esse é que não quer saber dessas coisas de estudar. Disse que os seus progenitores não precisaram de estudar para saber quantos cabritos e cajueiros tinham, essas coisas de estudar é para os brancos e não para nós, os pretos.
E também disse que os nossos antepassados devem estar chateados connosco pelo simples facto de estarmos a aprender coisas de brancos. Para mim, deixa eles ficarem chateados porque só assim nos entendemos. Desde que você saiu ainda continuam sem deixar a chuva cair. Talvez a idade já não permita fazer trabalhos pesados. Ah, tenho uma coisa para te dizer. A tua irmã está grávida. Eu acho que é de um outro alfabetizador porque estavam sempre juntos. Quando eu lhe perguntava dizia-me que estava a explicar coisas da escola e veja o que resultou da explicação.
O teu tio bateu-lhe até partir o braço mesmo assim não contou quem é o macaco que cometeu essa inflação. Ah, ia esquecendo, também, a Ajussaia, a tua idolatrada e amada noiva, também está grávida e deve ser daquele padre que era teu amigo, porque eu e a povoação toda víamos ela a conversar sempre com o padre. Quando ela saía de casa dizia que ia aprender português, a ler e a escrever. Ainda bem que você aprendeu antes que ele te engravidasse. Agora, estás a ver como é aquele padre? Eu não te disse que ele não prestava? Te enganou para ires para aí e ele ficou com a tua futura esposa. Ishh…o gajo é esperto. Também tenho sérios problemas em aprender essa língua.
O alfabetizador disse que é simples mas mesmo assim eu confundo-me, talvez fosse simples se nos ensinassem a ler e escrever na língua dos nossos antecessores. Agora, filho, podes escrever porque já sei ler e escrever. Se eu não conseguir ler vou dar ao alfabetizador para ler e também tu podes fazer o mesmo. Meu filho, toma muito cuidado com essa gente daí, o teu tio Kamwene disse que eles não prestam. Figem ser amigos quando, na verdade, te querem levar para trabalhar de graça nas suas enormes plantações.