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Uma história duas vidas

Uma história duas vidas

Fernando Rataji e Sérgio Paruque são dois cegos que dão vida a uma história de amizade e afecto que começou em ‘77. Sempre andaram de mãos dadas e hoje partilham um espaço onde comercializam produtos de primeira necessidade e perspectivam um futuro promissor.

Os dois já se habituaram a vida que levam. Acordam, todos dias, às quatro horas para apanhar a tempo o transporte. Um a partir da Polana Caniço e outro saindo do bairro FPLM, mas ambos com o único destino: Avenida Guerra Popular, esquina com a 25 de Setembro na baixa da cidade de Maputo, onde fica o seu “quartel-general”, num pequeno espaço improvisado com caixas vazias e cartões gastos dando corpo a uma barraca com duas mesas pertencentes a cada um. À primeira vista, parece um negócio insignificante: uns pacotes de bolacha e alguns refrescos.

Os maços de cigarro, que não ultrapassam dez, juntam-se as poucas caixas de fósforos, uma peneira de amendoim torrado, rebuçados contáveis e duas a três dúzias de ovos cozidos. Ao todo, o negócio de ambos não atinge cinco mil meticais, mas é o pão de cada dia e única fonte de receitas que alimenta duas famílias que, no seu todo, têm 14 pessoas.

Com 55 e 58 anos de idade, os dois homens levam para casa, no final de mais uma jornada laboral, qualquer coisa como 200 meticais, os quais reconhecem ser ínfi mos, daí que, todos dias, se empenham para aumentar a fasquia, “mas infelizmente tem sido quase que uma missão impossível, sobretudo devido ao fraco poder de compra dos nossos compatriotas”, reconhecem. Para os ajudar, sobretudo no controlo da mercadoria, vêm acompanhados pelos seus familiares. Fernando traz a sua fi lha, de 25 anos no período da manhã, no da tarde manda vir o fi lho, enquanto Sérgio recorre a esposa e a um dos rebentos.

“Trazemos os nossos parentes porque há momentos que precisamos sair e não podemos deixar o negócio à deriva por causa de alguns malandros, que aproveitando-se da nossa fragilidade podem roubar”. Exceptuando os riscos de burla, garantem que estão em condições de conduzir melhor o seu negócio, sem precisar de muita “assessoria” nas contas. “Não temos problemas com os cálculos e não nos enganamos nos trocos, pois já fazemos isto há muito tempo e conhecemos as moedas em circulação”, comentam seguros de que está tudo sob controlo.

Fernando é responsável por uma esposa que não trabalha, oito fi lhos, sua mãe e uma irmã que há poucos dias voltou de um casamento, trazendo consigo dois fi lhos pequenos. “Já estamos aqui fi xados desde 1980 quando este edifício se chamava casa Baile. Da mesma forma, que por exemplo um funcionário dos CFM sai de casa para o seu escritório, nós também fazemos o mesmo. Embora exposto ao vento, sol, frio e chuva, este é o nosso posto de trabalho”, diz orgulhoso, Fernando Rataji.

“Encontrei a minha esposa e construi a minha familia explorando este lugar. Nas manhãs quando um dos meus quatro fi lhos não está disponível para me ajudar é ela que me acompanha. Este é o nosso cantinho de sobrevivência”, acrescenta Sérgio seu companheiro e chefe de uma família composta por seis pessoas. Com uma versão diferente, a sua história foi-nos dado a conhecer através de algumas pessoas que encontramos por ali.

Dizem que Fernando e seu amigo eram mendigos, mas desistiram por causa do número crescente de pessoas a viver nessas condições. “Estes dois estão aqui porque perceberam que já não podiam mais com a esmola, num momento em que a concorrência é maior devido ao alto custo de vida que afecta dramaticamente o país nos últimos anos. Infelizmente muita gente prefere fi ngirse cega para encontrar algum reduto. Mas claro que esse não é o caso deles”, comentou um transeunte.

Esta estória, segundo os dois, “não é verdade, veja só que nós já estamos aqui desde 1980. È partir desta esquina que acompanhamos as diferentes revoluções que o país atravessou até hoje”. Quando se conheceram em 1977, trabalhavam numa padaria, onde mais tarde vieram a abandonar. “Da padaria que fi cava na zona do Ministério do Trabalho, viemos para a Guerra Popular, concretamente lá mais para cima onde actualmente funciona um parque de viaturas, mas como não gostamos de enchentes por causa dos possíveis roubos que daí surgem, ocupamos este lugar onde somos apenas nós”, contam acrecentando que “tirando as chatices de alguns policias municipais que não sabem da condição legal em que nos encontramos aqui a trabalhar, o lugar é tranquilo e deve ter sido uma dádiva de Deus”.

Basta que saia fumo lá em casa De como sobrevivem, responderam: apertando o cinto. São optimistas, mas o custo de vida não lhes dá tréguas. O seu negócio prossegue lentamente e os produtos saem a conta-gotas. “Às vezes, uma caixa de bolachas chega a demorar cinco a dez dias para acabar. É dificil. Não há lucros porque tiramos as pequenas quantias que entram para sustentar a famila”, desabafam. No seu entender, está cada vez impossível sobreviver dos pequenos negócios, num país com todas as condições para melhorar a vida dos seus cidadãos, contudo dilacerado por gritantes desiquilibrios na distribuição da renda nacional. Acreditamos que Moçambique é rico, mas carece de governantes empenhados á causa do povo.

“Os nossos ádifigentes parece estarem, mais virados para si. Hoje os pequenos negócios não ajudam porque há muita gente que recorre a actividade para fintar a pobreza. Quase que já não há compradores. Toda gente prefere abrir uma banquinha, mesmo sabendo que não é a solução ideal”. Fernando e o amigo não tem muitas ambições. Sonham com um futuro melhor, mas não se iludem. A vida ensinou-lhes a não esperar muito. “Veja que já estamos aqui desde 1980 tentando preparar o futuro dos nossos filhos, mas continuamos na mesma : uma banca a afundar e cada vez mais distantes de ajudar nas questões pontuais.

Gostaríamos de ampliar este negócio, mas preferimos não ter ilusões. Para nós basta que saia fumo lá em casa”, O desespero dos dois agrava- se sobretudo quando lembram das difi culdades que envolvem o acesso ao crédito bancário para as pessoas na sua situação bem como a falta de apoio por parte do governo para desenvolver as suas actividades. “Se isso acontecesse”, dizem, “tudo correria sem sobressaltos porque temos capacidades para fazer uma boa gestão. Adquirimos experiência ao longo destes anos. Da mesma forma que aprofundamos a nossa amizade e tornamo-nos, além de simples amigos irmãos com uma história que nunca terminará, a não ser que a morte nos separe”, garantem a terminar.

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