Se a Govelândia fosse uma terra, em que o dirigente supremo fosse Carlos Gove, como se descreveria a vivência social? “Seguindo em frente” depreciando, por essa via, a descrição quase caricatural – de uma imprensa que se quer criativa – sobre o concerto, os amantes da música testemunharam o lançamento da obra discográfica Massone. O evento consumou-se a 02 de Agosto, sendo que o que segue é uma construção social.
Para quem, além do entretenimento, na sexta-feira, 02 de Agosto, no Centro Cultural Franco-Moçambicano, apreciou com alguma minúcia, certamente, percebeu que o cenário do palco – algo modesto – que acolheu o concerto do lançamento do trabalho Massone, o primeiro do baixista moçambicano, Carlos Gove, revelou os méritos da simplicidade humana.
Em cena, artistas de diversas manifestações culturais (desde a música, o teatro, até às artes plásticas) que se identificam com uma visão comum – essa ideia de fazer um mundo melhorar continuamente – começaram o ‘show’, discutindo o sentido que se cria em relação ao Massone. E aqui, a poesia ou o ‘xithokozelo’ de Alvim Cossa, como prefere que se diga, orientou o debate.
Ora, a compreensão de que narrar estes factos seguindo a estrutura proposta pela produção – no alinhamento das músicas – é o mesmo que fazer uma réplica, por uma razão que Mingas nos apresentou, comecemos a abordagem a partir de uma Fena Party, tema por si interpretado e que no evento foi o décimo.
Revela ela que durante muitos anos – antes da publicação do Massone – “Carlitos perguntou-se. Mais uma vez interrogou-se. Qual seria o reportório da sua festa? (…) Como fará a todos dançar e alegrar?” A solução encontrada é a realização da festa da música Fena, na qual todas as pessoas dançam, pulam e são alegres.
Talvez seja em função disso que Mingas suspeita “que aquilo que eu falo na música corresponde à verdade porque, para a produção do disco, Carlos Gove investiu tempo para investigar, trabalhar e, inclusive, interrogou-se muito sobre os resultados que queria alcançar na sua obra”.
Cada signo que compõe a estrutura do referido palco simples, muito cheio de instrumentos musicais e de artistas, também havia obras de artes plásticas geradas por Gonçalo Mabunda – à base de restos de armas de fogo e outros materiais metálicos – que, sob o ponto de vista temático, enriqueceram o conceito de progresso, da partilha de experiências e pontos de vista entre homens e, fundamentalmente, da cultura de paz.
É que “o projecto Massone representa a partilha de uma visão muito ampla sobre a cultura, opondo-se à particularização e centralização da discussão num único actor. Por isso, envolvemos artistas de outras áreas”, afirma Carlos Gove.
The System
Alvim Cossa, homem inquestionável no teatro do oprimido, participa no trabalho discográfico Massone declamando poesia no seu idioma vernáculo, o Ronga. Ele é actor e, por isso, na música, é um novo protagonista. Por genial e profunda que seja, mexendo com as entranhas de quem no recital o ouve, a sua actuação poética não o desprende do teatro.
De qualquer modo, explica: “o que eu sinto é que houve uma oportunidade que Carlos Gove me concedeu no sentido de fazer uma participação pequena, embora – para mim – com dimensões gigantescas. Foi a primeira vez que eu entrei num estúdio para gravar música”.
Aliás, da sua participação no tema The System, interpretado pelo saxofonista Muzila, o mérito também pode ser o facto de que “Carlos Gove me criou a possibilidade de poder ouvir-me, a mim mesmo, várias vezes, como – contrariamente ao teatro – acontece na música”.
Se todas as decisões em relação à nossa vida – como um povo – dependem da permissão dos outros, apesar de vivermos na nossa terra, o sistema só pode estar a limitar-nos a liberdade, fazendo-nos passar por um africano que, sem vergonha, rejeita as suas raízes. Nesse sentido, o sistema é uma espécie de Babilónia que destrói a natureza, sublimando a ciência – canta-se em The System.
Esta é uma composição musical “profunda e rica em termos de mensagens que – segundo acredito – mexem com todos nós”, considera Alvim Cossa, ao mesmo tempo que Muzila esclarece que “se refere ao sistema da vida e de governação”.
Construção social
Entretanto, nesse movimento para frente que é o Massone, a música também se impõe como – afirma Sheila Jesuíta – um instrumento de luta. Por isso, “I’m going to fight for my freedom”.
Foi com este sentimento que Ta Bazily, Ras Haitrim e Sheila Jesuíta – em quem, grosso modo, Gove depositou a sua confiança – chegaram ao palco, dando um novo e dinâmico alento ao concerto.
Se não se pode ignorar que o tema The System – algo revolucionário, como, desde o princípio, foi apanágio do Jazz – tem alvos a atingir, concebidos por Alvim Cossa como sendo “nós mesmos, os Homens, na medida em que precisamos de vencer as muralhas que construímos e que nos impedem de olhar para frente”, que dizer da Marrabenta Groove?
Como muito bem o faz em ambientes do Reggae Music – onde pula, grita, enche o palco, anima o público – Ras Haitrim resume a discussão afirmando que “Gove and Love is the same thing”. Ou seja, a partir daqui, nada nos impede – e nem deve impedir-nos – de deduzir que essa música nos aproxima em tudo o que é bom. O Amor!
E a partir daqui, em jeito de interrogação – permitam-nos – podemos até inventar palavras para gerar comentários que, de forma contrária, talvez não seriam possíveis. “Se a Govelândia fosse uma terra, em que o dirigente supremo fosse Carlos Gove, como se descreveria a vivência social?”
Sheila Jesuíta que, algum tempo depois do concerto, permaneceu extasiada com o sucedido, afirma que “a Govelândia significaria o país das maravilhas, ou um paraíso onde só acontecem coisas boas. Trata-se, portanto, da terra em que todos os habitantes têm um horizonte a seguir e seguem-no”.
Mas, para ser isso, uma nação – como aconteceu na Govelândia –precisa de um líder. Só assim, do ponto de vista político-administrativo e governamental, se estrutura o Estado.
Oportuna e sábia, eis a questão do jornalista cultural moçambicano, Ouri Pota, consubstanciando a importância de uma liderança, como aconteceu no concerto de Carlos Gove: “Se nesta noite em que lançou o seu projecto Massone fosse convidado para um cargo político, depois do sucesso que teve, trocaria a arte?”
“Os poucos artistas que conheci, que trocaram a arte por cargos políticos, acabaram arruinados e reduzidos a algo muito inferior do que são ou podiam ser na actividade artística. É uma oportunidade sobre a qual teria de pensar muito, sob pena de abandonar uma profissão que gosto”.
*A palavra é uma criação nossa. Deriva de Gove – o apelido de Carlos, o baixista em apreço.