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Um deficiente exemplar

Um deficiente exemplar

Se para alguns ser deficiente é sinónimo de limitação, Argelino Nhaduce não quer que lhe falem de dificuldades. Em palavras sucintas, o jovem deficiente físico, mas optimista, auto-confiante e com um desejo enorme de vencer na vida, afirma: “Sou deficiente, mas posso tudo”.

“Não é pelo facto de eu ser deficiente que devo ficar nas esquinas a pedir esmola. Acredito que muitos (deficientes) são capazes de fazer algo para sobreviver, mas o preconceito que ainda existe na sociedade impede-os de olhar para o mundo como centro de oportunidades”, é assim que Argelino Nhaducue começa a falar da sua vida.

A sua história começa em 1994, quando foi acometido por uma doença rara que afectou os membros inferiores. “Ele não nasceu deficiente. Quando isto começou os pais foram ao hospital, mas os médicos não souberam dizer do que se tratava”, conta a família.

Dada a gravidade da doença, jamais se aventou a hipótese de Argelino se levantar e andar com os seus próprios pés.

Porém, para o espanto e felicidade dos pais, ele não se resignou perante a doença, locomovia-se para onde quer que fosse, às vezes, gatinhando ou arrastando-se de forma serpentina. O seu objectivo era provar que a defi ciência não era o fim.

Em 2011, quando frequentava a 11ª classe na Escola Secundária Quisse Mavota, Argelino sentiu-se pressionado pelas dificuldades que a vida impõe, daí ter-se sentido na obrigação de fazer uso das habilidades que ganhara com o tempo.

“Eu tinha muito conhecimento acumulado e não tinha como aplicá-lo. Foi nesse âmbito que decidi, com o apoio e ajuda de um amigo, abrir uma barbearia”, conta.

Com as economias que tinham compraram estacas e caniço e construíram um salão de corte. Quando abriram, só tinham apenas duas máquinas de barbear, porém, muitas para aquilo que era o seu público na época.

“As pessoas não acreditavam. Algumas vinham só para confi rmar o que ouviam nas conversas. Olhavam para mim como um incapaz. Com o tempo, pude provar o contrário”, diz.

Embora tenha vencido o preconceito, Argelino ainda tem muitos desafios pela frente. É que, segundo ele, ainda existem pessoas que sentem pena dele, o que não lhe agrada. “Não sou coitado, faço uso da minha força (de vontade) e conhecimento para ganhar a vida”, diz.

Um conselheiro

Devido à natureza do seu trabalho, Argelino é literalmente obrigado a ouvir desabafos dos seus clientes, que o consideram seu conselheiro.

“Todos os que chegam à barbearia dizem o que lhes vai na alma, uns falam da sua equipa favorita que perdeu na noite anterior, outros contam que discutiram com as esposas”, diz. É nestes momentos que o jovem sente que o mundo está nas suas mãos porque precisa de ter um conselho para dar a cada cliente.

“Os deficientes devem fazer a diferença”

Ele partilha da opinião de muitos especialistas que consideram que a maneira como tratamos a pessoa deficiente pode influenciar positiva ou negativamente o seu comportamento.

Na tentativa de responsabilizar o próprio defi ciente sobre as formas de reagir aos estímulos sociais, tanto positivos, assim como negativos, Argelino diz que o deficiente deve ser o agente da mudança.

“A sociedade tem lá a sua contribuição, mas nós, como os visados, devemos fazer a diferença”, afirma. “Não precisamos de nos encolher, formando ilhas de coitados como se fôssemos acéfalos, porque podemos muito”, diz.

Argelino afirma que a melhor maneira de reagir à pressão social que é exercida contra eles é a libertação das suas iniciativas.

“Não há quem seja totalmente deficiente. Eu, por exemplo, só não posso correr como um dito normal, mas o resto das coisas posso fazer. Posso ver, ouvir e falar, além de poder usar as minhas mãos para fazer muitas coisas. Esses são valores que temos e que devemos usar com sabedoria”, instrui.

Argelino lamenta a existência de pessoas que, sob o pretexto de apoiarem os deficientes, amealham avultadas somas do dinheiro disponibilizado pelos financiadores de boa fé.

Para ele, esta situação deve-se, em parte, aos próprios deficientes, alegadamente porque até os dias que correm, eles não estão cientes dos apoios gratuitos que recebem do estrangeiro, achando que a melhor maneira de os conquistar é pedir esmola.

“Eu já me apaixonei”

A deficiência física não impede o coração de se apaixonar. Daí que ainda no decorrer do ano transacto, Argelino desenvolveu um sentimento nobre por alguém, mas não foi bem entendido e a relação ‘não rolou’.

“Apaixonei-me pela minha colega de classe, mas a ‘coisa’ terminou mesmo em paixão”, lamenta. Questionado sobre se a deficiência não teria contribuído para a frustração da sua paixão, Argelino teve dificuldade em responder.

“A Bia nunca chegou a dizer-me porque não se podia relacionar comigo. Ela dizia que a nossa relação não seria possível para além da simples amizade que existia”, lembra com nostalgia.

A história da paixão acabou por ser, até certo ponto, um escândalo para os seus amigos. “Os meus amigos também ficaram meio confusos com esta situação, talvez pensassem que sendo deficiente não iria satisfazê-la, sexualmente, mas o mais importante para mim era (é) amar e ser amado. Isto é o que eu queria que a Bia fizesse por mim”, diz.

“A minha família está em primeiro lugar”

Se para muitas famílias ter um filho deficiente é motivo de uma grande angústia, para a do jovem Argelino a sua capacidade de superação extrapolou os limites que a consciência humana impõe, tornando-se um motivo de orgulho.

Para o pai, Constantino Nhaducue, a vida do seu filho tem sido a cada dia uma lição extraordinária para si. “Não contava que o meu filho depois de tudo o que passou quando criança podia ter esta capacidade de desenvolver iniciativas e produzir resultados”, orgulha-se Nhaducue.

Argelino corrobora a opinião do pai. Primeiro, porque a sua família acredita nele, segundo porque a sua motivação está centrada na maneira como a sua família o encara.

“A minha família contempla-me sempre na sua agenda, eu faço muitas coisas que noutras casas se pensa que são para os ditos normais”, conta, acrescentando que fica com muito rancor daquele que acha que não pode.

“Quando a família olha para nós como incapazes, ela está, de alguma forma, a excluir- -nos do processo de socialização e, acima de tudo, aniquila o nosso desejo de vencer”.

Segundo ele, é muito importante que a família não trate os filhos de forma diferenciada, “principalmente quando no meio deles existe um que socialmente se suponha ser diferente”.

Mais ainda, Argelino decepciona- se com aqueles pais que, aproveitando-se da condição de defi ciente dos seus filhos, procuram fazer destes uma fonte de renda, expondo-os a situações perigosas, como pedir esmolas.

A literatura inspira-me

Se de manhã o jovem trabalha na sua barbearia, à tarde vai à escola onde frequenta a 11ª classe, a noite está reservada às suas viagens literárias. “Gosto muito de escrever poesia e ler textos que estimulam a evolução da mente”, garante e acrescenta:

“Quando fico aí a ler, as pessoas pensam que não tenho outra saída, e talvez seja por causa da minha defi ciência que passo a maior parte do tempo a ler alguma obra literária, mas enganam-se porque eu faço isso em reconhecimento ao valor que leitura tem na vida de alguém”.

Questionado sobre o segredo de tanta auto-estima, Argelino evoca um nome não muito comum para a juventude: “Leio muito a Bíblia e inspiro-me na imagem de Jesus Cristo, o único que venceu”.

Para os demais defi cientes, deixa um conselho: “a deficiência não é o fim, nós podemos muito. Ser deficiente é apenas uma limitação para certas coisas, por vezes pequenas. Toquemos a vida para a frente, porque ela é boa, apenas é preciso lutar, derrubar as barreiras do preconceito social e acreditar em nós”, finalizou.

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