Se o estimado leitor viajar para o distrito de Zavala – na província de Inhambane, sul de Moçambique – e regressar sem ter visto um arco e flecha, fique convencido de que não esteve na Terra de Boa Gente. Para os jovens locais, o referido instrumento é a metáfora da luta pela sobrevivência…
Nos dias de festa como, por exemplo, o 26 de Agosto, no distrito de Quissico, ao longo da Praça da OMM (Organização da Mulher Moçambicana) adstrita à N1, inúmeras machopes – mulheres de Inhambane e não só – apoderam-se do seu estandarte, a praça, e, à noite, instalam uma série de stands, cozinham carne e xima e põem-nas à venda. Turistas estrangeiros e nacionais, ávidos de aproveitar o raro movimento que se instala em resultado da efeméride, agitam-se nas compras e a economia local agradece.
Do outro lado da mesma estrada, já no miradouro onde se encontra um palco de concertos e realizações políticas e socioculturais do distrito de Zavala, um espectáculo protagonizado pela natureza, a belíssima vista do oceano Índico, é exposto aos olhos de quem passa. Naquele dia, naquele lugar, numa manhã friorenta, à beira do miradouro encontrava-se Hélder Adolfo Maculuve, um jovem de 28 anos e pai de dois filhos.
Ao seu redor encontrava-se um conjunto de artefactos – dentre os quais peneiras, cestos, vassouras de palha, uma garrafa contendo surra, uma bebida tradicional local que aquele artesão consumia compassadamente, ao mesmo tempo que produzia as suas criações – à venda.
Dentre os ditos artefactos também encontra-se um instrumento curioso, o arco e a flecha que se produz com base nas cordas e ramos extraídas de uma espécie arbórea denominada ndhani, incluindo uma estrutura-metal pontiaguda esterilizada.
Na verdade o arco e flecha não é, necessariamente, um instrumento de guerra, como nós pensamos, mas de caça e, invariavelmente, pode ser utilizado pelos guardas para neutralizarem os larápios.
Seja como for, a relação que pessoas como Hélder Adolfo Maculuve travam com o arco e flecha, a forma como a sua produção influencia o seu modo de vida, as suas qualidades como recursos humanos, signos representativos dos homens da afamada Terra de Boa Gente, e a sua percepção em relação ao rumo que a nação está a tomar revelam-nos muito sobre o país real.
Em Zavala, desenganem-se, o arco e flecha não é apenas um instrumento de caça, senão muitos jovens não o fabricariam. Talvez seja por essa razão que é sábio narrar a história de Hélder Maculuve.
Uma autobiografia
Nasci em 1984, em Banguza, Mavila, na província de Inhambane. Fabrico o arco e flecha desde 1997. Aprendi a fabricar o referido instrumento dos meus irmãos mais velhos que aprenderam em determinado lugar e, mais adiante, transmitiram-me o conhecimento da sua produção como uma forma não somente de conviver com a referida prática, mas também de me desviar de outras acções torpes como, por exemplo, a criminalidade e o roubo. Ou seja, na verdade, para nós, este trabalho artesanal é uma forma de cultivarmos uma vida baseada num espírito de honestidade.
Por exemplo, antigamente, na era do Presidente Chissano, os preços variavam de 10 a 20 meticais. O que sucede é que agora a realidade é outra. Tudo mudou! De qualquer forma, nos dias em que em Quissico há muito movimento de pessoas podemos vender até, pelos menos, 10 flechas.
As pessoas compram muito pouco este instrumento. Invariavelmente, os cidadãos estrangeiros – sempre que visitam a nossa vila nas suas actividades turísticas – têm comprado o arco e flecha para lhes servir de recordação da sua presença em Inhambane, no entanto, os nacionais, que são pessoas que possuem uma grande familiaridade com o instrumento, também o adquirem.
Em Quissico o dinheiro circula muito pouco, por isso nós os comerciantes locais, muitas vezes, para fazer o nosso negócio somos obrigados a deslocar-nos para o centro da cidade.
Este ano, a vila de Quissico celebrou 40 anos. Estou feliz, mas não me sinto muito bem porque o distrito de Zavala ainda se debate com sérios problemas económicos e financeiros. Há falta de dinheiro. É por isso que mesmo que façamos negócios, por falta de dinheiro, ele acaba por ser pouco (ou mesmo não) rentável.
Um passado que confunde o presente
Penso que de há uns dez anos para cá, nota-se um ligeiro desenvolvimento porque no passado o ambiente local (sob o ponto de vista de dinâmica sociocultural e económico), era pouco dinâmico.
Mas a maior mudança, provavelmente, terá sido o regime de Governação na medida em que há dez anos o país era dirigido pelo Presidente Joaquim Chissano, ao passo que agora o Chefe do Estado é o Presidente Armando Guebuza. Em função dessa transformação operada, mudou-se também a forma de pensar o país.
Recordo-me de que, quando tomou o poder, o Presidente Guebuza afirmou que cada um de nós tinha que lutar por si. Ou seja, que tínhamos que desenrascar a vida para conseguirmos ter tudo o que queremos. Agora é tempo de negócio, de empreendedorismo. Todos devemos ser empreendedores. O Presidente Guebuza falou assim. Como se pode perceber, nós estamos a fazer isso.
Ensino e educação
Quando se ergueu a Escola Primária de Makwandi fui matriculado na primeira classe, mas, infelizmente, como o meu pai não reunia algumas condições para que eu continuasse a estudar, por isso fiz apenas as cinco primeiras classes. Eu comecei a ir para a escola muito tarde, em 1997, na altura tinha 13 anos.
A minha escolaridade foi difícil porque entrei muito tarde, mas sempre gostei de estudar. Aliás, mesmo nos dias que correm eu aprecio o ensino, porque a escola é a própria vida, mas infelizmente não tenho muitas possibilidades para retornar ao ensino. Na verdade, eu estudei até à 5ª classe, mas do tempo do Presidente Joaquim Chissano.
– Na cronologia da história nacional, Hélder Maculuve prefere destacar as épocas em função dos dirigentes políticos que marcaram as referidas épocas. É por isso que, recorrentes vezes, utiliza a expressão tempo de Chissano e/ou tempo de Guebuza. A curiosidade é porquê?
É simples! O que acontece é que nós gostamos do tempo de Chissano porque ele, como presidente, realizava boas acções para nós como um povo. Por exemplo, na sua época, na escola nós, os alunos, reprovávamos, o que não acontece agora – mesmo que a pessoa não saiba ou não tenha condições para transitar para outra classe.
Isso é mau! Na época de Chissano, os alunos podiam reprovar em qualquer classe. Mas hoje, o ensino, simplesmente, aprova todos incluindo os que possuem um mau aproveitamento pedagógico.
Em relação à questão da escola e/ou educação, eu penso que apesar de não ter estudado bastante, com a minha 5ª classe as pessoas que actualmente concluíram o nível básico do ensino secundário geral no sistema de educação do Presidente da República actual não estão melhor preparadas que eu. Ou seja, a 10ª classe da actualidade equivale à 5ª classe que eu frequentei.