Desamparados e à mercê dos perigos que a noite esconde, os guardas-nocturnos ganham o sustento diário pondo as suas vidas em risco. Uma marmita e agasalho são, muitas vezes, as únicas coisas que lhes permite se manterem acordados na longa madrugada. Sem meios para se defenderem e tão-pouco preparação física, todas as noites rezam para o sol se levantar e regressarem sãos e salvos ao aconchego das suas famílias.
Ao cair da noite, dezenas de moçambicanos, na sua maioria já na casa dos 50 anos, pegam nas suas marmitas, agasalhos e fazem-se ao local de trabalho. São os guardas-nocturnos que, geralmente, têm sob a sua responsabilidade estabelecimentos comerciais e residências.
Ao contrário dos agentes de seguranças ligados às empresas privadas vocacionadas à protecção de pessoas e bens de terceiro, eles desempenham a sua função sem nenhum instrumento de defesa pessoal e, muitas vezes, colocando a sua vida à mercê das adversidades da noite.
Joaquim Cossa, de 45 anos de idade, natural da Zambézia é um exemplo disso. Pai de cinco filhos e a viver maritalmente, é guarda-nocturno há 10 anos, vigiando um estabelecimento comercial algures na baixa da cidade de Maputo. Aufere mensalmente mil meticais e desde que começou a trabalhar em 2001 o seu salário nunca sofreu um reajuste.
No ano passado, tentou pedir um aumento ao patrão, mas viu o seu pedido indeferido. “Ele pediu que eu escolhesse entre deixar de trabalhar e receber o mesmo salário de há 10 anos. Senti-me muito ameaçado e, sem outra opção, decidi permanecer no trabalho”, conta.
Todos os fins do mês, Cossa tem a mesma dor de cabeça: fazer malabarismos com o pouco dinheiro que ganha. Comida e transportes são as suas principais despesas. Mas garantir a alimentação da sua família é a sua maior preocupação. Sem nenhum grau de escolaridade, à semelhança de muitos guardas-nocturnos moçambicanos, Joaquim Cossa não tem opção senão contentar-se com emprego e o salário precários. Muito cedo teve de aprender a desenrascar para ter o que comer.
Aos 15 anos de idade, apascentava gado do vizinho e em troca recebia 250 escudos mensais, valor com o qual garantia o seu sustento e dos seus irmãos mais novos.
Atropelo da Lei do Trabalho
Joaquim Cossa trabalha todos os dias, não tem feriados e, muito menos, direito a um dia de descanso. E como se não bastasse, está sempre exposto à humidade da noite.
É obrigado a chegar às 16h00, pouco antes do estabelecimento encerrar, e só larga por volta das 8h00 do dia seguinte.
São 16 horas de trabalho diário em condições precárias – duas vezes mais do que devia ser a carga horária normal aprovada na Convenção Internacional do Trabalho e patente na Lei do Trabalho em vigor no país. Mais ainda, não tem direito a alimentação a não ser que leve a sua marmita.
Paulo Afonso Neves, 51 anos de idade, natural de Inhambane, é pai de três filhos, um a frequentar o ensino primário e outro a Escola Comercial de Maputo. Guarda de um estabelecimento de ensino secundário no Infulene há 11 anos, aufere 2.400 meticais.
Durante a semana, Paulo tem 48 horas de descanso, nos dias de trabalho tem uma carga horária de 10 horas diárias. “Se for escalado para o segundo turno, entro às 17h00 e saio às 7h00 do dia seguinte. Se for no primeiro, entro às 7h00 e saio às 17h00”, afi rma. Não tem direito à alimentação, por essa razão, leva sempre a sua marmita para apaziguar o estômago na calada da noite. A carga horária puxada não o afl ige tanto porque tem durante a semana dois dias de folga.
“Quando desaparece algo somos responsabilizados”
Nos dias de folga, os guardas- -nocturnos procuram sempre arranjar uma actividade paralela para ganharem mais algum trocado. A título de exemplo, Paulo Neves aproveita os momentos de repouso para trabalhar como auxiliar em algumas obras.
“A falta de emprego neste país foi o que me arrastou a este trabalho. Vigio uma escola secundária devidamente apetrechada e em casos de algum roubo estando em serviço, serei responsabilizado por isso. Trabalho indefeso, não tenho como defender a instituição no caso de ataque pelos malfeitores, muitos menos em legítima defesa”, diz e acrescenta que hoje em dia os gatunos usam meios mais sofisticados para assaltar instituições e os guardas continuam indefesos, sem recursos para fazer face a uma eventual ofensiva dos bandidos. Paulo conta que houve tempos em que a sua instituição munia os seus guardas, mas há poucos anos um colega que, em missão de serviço empunhava uma arma do tipo AK 47 emprestada por uma esquadra local da PRM, foi atacado por um bando de criminosos, espancaram- no brutalmente e levaram a arma, tendo sido aberto um processo contra ele de modo a fazerem-se averiguações.
“Desde que isso aconteceu já não temos direito a nenhum dispositivo do género para melhor defesa e protecção, estamos mais vulneráveis e sempre no caso de algum roubo somos responsabilizados, salvo raras excepções em que dependendo das circunstâncias, a empresa não responsabiliza os guardas”, afirma.
Onze anos a receber migalhas
Volvidos 11 anos a trabalhar como guarda e a receber um salário mísero, Paulo não se orgulha do seu emprego.
“O pouco que recebo pago as propinas dos meus fi lhos, faço ainda um pequeno rancho para a família que dificilmente cobre todo o mês. O nosso salário não sobe, mas os preços dos produtos alimentares sobem constantemente. Pior quando nos aproximamos da quadra festiva”, conta e afirma que por mais que queira mudar de profi ssão é impossível, pois a idade já não permite, além da escassez de emprego com que o nosso país se debate.
Na escola onde Paulo Neves trabalha, trabalham dois guardas por turno, cada equipa é responsável por vigiar tudo o que se encontra no recinto escolar, nomeadamente 20 salas de aula, papelaria, cantina e respectivo bloco administrativo. O portão principal e o muro que cerca a escola não oferecem condições de segurança, onde a qualquer altura podem ser visitados por malfeitores.
Trabalhar arriscando a vida
Aos 63 anos de idade, Carlos Mondlane, natural de província de Gaza, é guarda-nocturno há aproximadamente dois anos. “Tenho oito filhos e esposa sob a minha responsabilidade, alguns dos quais vão à escola e quando chega a hora do pagamento das propinas olham para mim”, diz.
Diferentemente de outros guardas que trabalham horas a fio e sem direito à folga, durante os sete dias da semana, ele tem 48 horas de descanso. Para Mondlane, controlar um estabelecimento de ensino sem meios de segurança ou protecção é um grande obstáculo que enfrenta no seu trabalho. “No caso de ataque, não tenho como proteger a instituição que me foi confiada. Por mais que eu queira piscar o olho, não posso porque, os gatunos não avisam, chegam quando quiserem”, afirma.
Mondlane afirma que já se deparou com muitas situações em que malfeitores assaltam instituições ou estabelecimentos comerciais, uma das formas que eles usam para lograrem os seus intentos é tirar a vida do guarda e acrescenta que um guarda indefeso não tem como enfrentar bandidos armados até ao pormenor, a não ser que este em defesa da sua própria vida se limite a assistir impávido e sereno.
É necessário criar um sindicato
O secretário na OTM-CS para Assuntos Jurídicos Laborais e Sociais, Boaventura Mondlane, disse que o sector do trabalho doméstico, sobretudo o dos guardas informais, ou que não estejam afectos a nenhuma empresa de segurança privada, tem sido marcado por vários atropelos a actual legislação laboral em vigor no país, desde a falta de contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador, passando pelo excesso ou desrespeito da carga horária normal, até aos salários que não compensam o trabalho feito.
Mas o mais preocupante é que muitos guardas informais trabalham sem ter antes celebrado o contrato de trabalho, cuja concessão afigura-se, por um lado, um dever do empregador e, por outro, exigência e um direito do trabalhador e, quando assim acontece, o empregado não tem como reivindicar os seus direitos ou violação destes sem que tenha em mão um contrato de trabalho que revele um compromisso entre as duas partes.
Para Mondlane, a partir do momento em que alguém faz um trabalho regular ou periódico para terceiros e em troca de alguma remuneração, isso pressupõe a elaboração do contrato do trabalho.
“Se o trabalhador não tiver um contrato de trabalho escrito, no caso de qualquer incidente ou violação dos direitos do trabalhador patentes na presente Lei do Trabalho, a responsabilidade é imputada ao empregador”, acrescenta. Os salários mínimos aprovados recentemente no país não afectam os trabalhadores ou guardas informais, apenas foi para nove sectores, dentre os quais, a construção e pesca.
Segundo o Decreto n° 40/2008 de 26 de Novembro que aprova o Regulamento do trabalho doméstico, o trabalhador doméstico pode ser também equiparado a qualquer um que desenvolva informalmente uma actividade acordada com a entidade empregadora que pode ser uma instituição ou proprietário de um estabelecimento de actividades económicas.
Ainda de acordo com o presente regulamento aprovado pelo Conselho de Ministros e, em vigor no país, o período normal de trabalho efectivo não pode ser superior a 54 horas por semana e nove por dia, sendo que os intervalos para as refeições estão contempladas na carga horária normal do trabalho.
No entanto, a realidade moçambicana mostra o avesso da legislação, os guardas informais ultrapassam o tecto estabelecido, chegando até a duplicar a carga horária. Quando assim acontece, já está-se perante uma violação do preceituado na Lei do Trabalho e no Regulamento do Trabalho Doméstico, ambos actualmente em vigor.
“Se os guardas informais se reunissem e formassem um sindicato, veriam a sua situação laboral a melhorar, pois saberiam como defender os seus direitos e interesses laborais. Nós como Organização dos Trabalhadores de Moçambique-Central Sindical (OTM-CS) estamos abertos a colaborar com os profissionais desta área no sentido de formarem um sindicato, mas isso tem que partir da iniciativa deles e nós vamos auxiliá-los.
O apelo é também extensivo aos trabalhadores informais que exerçam outras actividades”, afiança.