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Toma que te dou: Ela pensa que sou sonâmbulo

Como uma estrela
Numa noite escura e sem luar
Brilhaste na minha incerta
Meu amor
Carregaste em ti
Bocados de mim
Como é bom saber que tu nasceste para mim

Xiricos cantaram
Tudo à minha volta se transformou
Roseiras pariram sóis ardentes de amor
Hortêncio Langa

Não tenho propriamente medo do escuro. Nasci numa casa sem luz eléctrica e, à noite, usávamos as lamparinas de petróleo para a iluminação, que eram literalmente apagadas depois do jantar, para toda a gente recolher. Dormíamos sem medo o sono dos justos. E sonhávamos com as estrelas e a lua e o sol e as águas do mar e tudo o mais de belo.

Mas hoje tudo mudou. Embora eu mora num bairro sem iluminação pública nas ruas, tenho luz eléctrica em todos os compartimentos da habitação que me acolhe, e à noite não durmo sob o breu porque a luz da varanda transmite a penumbra para o meu quarto.

Não tenho propriamente medo do escuro. É por isso que hoje vou sair e dar uma volta pelo meu bairro porque não consigo conciliar o sono. São 23 horas e a minha mulher dorme um sono de criança. Parece um anjo que me guarnece mesmo estando a dormir. E eu não consigo pregar o olho. Não posso ligar a televisão porque o aparelho está aqui perto, na nossa sala, e pode incomodar o meu anjo. Também não posso ler porque não tenho vontade de pegar num livro a esta hora.

Na cama onde estou é um castigo continuar numa circunstância em que estou de costas a olhar para o tecto, sem saber em que pensar. Rebolo para a direita e para a esquerda, porém não posso continuar a fazer esses gestos sob o risco de despertar a mulher que cobre o meu espírito. Então, sendo assim, a sugestão é levantar-me e pôr-me de pé e sair do quarto.

Não sei com que instinto, mas a verdade é que, quando dei por mim, na sala, estava absolutamente agasalhado com gorro e cachecol para me defender do frio, incluindo peúgas grossas e sapatilhas e calças de fato de treino. Na sala também penetra a penumbra da luz da varanda projectada por uma lâmpada de néon de baixo consumo. E eu estou aqui, de pé, sem sono, agora com vontade de sair.

É quase meia-noite, e eu já venci as superstições que dizem que essa é a hora dos feiticeiros. Estes já não me fazem nada. Estou blindado pela Aura de Deus. E se Deus está para mim, quem pode estar contra mim? Vou sair sim, senhora. Deixa-me dar uma volta pelo meu bairro. Deixa-me andar por aí vagueando para ver se, depois de regressar, o sono já esteja pronto para me abater.

Abri a porta de mansinho, mas, antes de sair, voltei a fechá-la. Procurei um papelinho onde escrevi a seguinte mensagem: ‘Meu bem, estou sem sono, saí para dar uma volta. Não te preocupes’. E deixei o manuscrito na minha almofada.

Agora saio mesmo. Em paz e em liberdade. Não sinto frio embora a temperatura seja baixa. Estou protegido a rigor. Não há iluminação nas ruas, mas o que me reconforta é que a maior parte das casas – quase todas – tem luz na varanda. O panorama que elas transmitem é o de que as estrelas desceram para a terra. E isso dá-me uma sensação fabulosa.

Enfio as mãos nos bolsos e começo a deambular ao acaso, sem me preocupar com as pedras do caminho. Não tenho medo de nada, nem dos cães que andam à solta por aqui. Estes caninos conhecem-me, não me farão mal algum. Estou sozinho, eu e Deus e os meus espíritos, numa caminhada à procura de condições para poder dormir.

Vejo vários pirilampos acendendo e apagando no espaço, e lembro-me da história da cobra que quis matar um destes animais por um motivo bizarro. É assim: “A cobra estava perdida na mata e queria o caminho para a liberdade. Pediu ajuda ao pirilampo que se prontificou a ajudar. Só que, já encaminhada, a cobra vira-se para o pirilampo e diz: ‘Olha pirilampo, eu quero matar-te’. ‘Queres matar-me?’, perguntou o animalzinho. ‘Sim, quero matar-te’, retorquiu o réptil. ‘Porquê?’, ripostou o pirilampo. E o réptil sentenciou: ‘Porque tu brilhas’”.

E eu adoro o brilho destes pirilampos passeando juntamente comigo nesta noite em que não consigo dormir. São quase duas horas da manhã. De longe vejo uma luz em movimento, que desconfiei ser de uma lanterna vinda na minha direcção. Parei no ponto em que me encontrava, à espera, até que uma voz meiga se faz ouvir: ‘Amor, o que é que se passa?’

Ela agora está preocupada. Pensa que sou sonâmbulo.

 

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