Já não ouves o que eu digo Rudolfo, por isso fico calada, à espera que te distraias com outra coisa qualquer, embora saiba que há silêncios muito mais barulhentos do que uma britadeira a partir o chão da casa do vizinho com a sala a paredes meias com a nossa.
Olho em volta e não percebo porque teimas em não mudar de vida, de emprego, de calças, de casa. Dizes que é a força do hábito e que já conheces demasiado bem o bairro, os vizinhos, as árvores da nossa rua.
És carente como um cão porque queres as atenções só para ti e egoísta como um gato, porque só fazes o que queres e não gostas de mudanças. O teu espaço é o teu reino, o teu território, o teu graal, até me espanta que não te tenhas lembrado de marcá-lo nos cantos, ainda mais agora que tens problemas de incontinência.
Há quase 40 anos que te digo que não gosto do bairro, que as árvores na rua cresceram demais e agora roubam luz aos quartos, que a escada cheira mal e a porteira que lava as escadas ainda cheira pior, que tenho saudades de Cascais, onde passei a infância do meu contentamento num andar metade do tamanho deste, mas com luz e cheiro a mar a entrar-me pela varanda arejada.
Também não sei o que me passou pela cabeça para me ter casado contigo, nunca gostei da tua cara nem do teu cheiro, tens umas mãos muito feias e nunca me deste prazer, mas eu tinha que esquecer a Teresinha que se casou com o Manel, a Teresinha que nunca quis ouvir o coração e que abanava a cabeça com grande hipocrisia enquanto dizia:
– Deixa lá o passado onde ele deve estar, Eduarda, o que se passou entre nós no colégio não foi nada.
Não foi nada, dizia ela. Noites inteiras acordadas, escondidas na cama uma da outra, não foi nada. Poesia lida às sombras das árvores depois da horta, não foi nada.
Centenas de cartas escritas para apaziguar a agonia da separação nas férias grandes, eu em Cascais a desejá-la enquanto olhava para o mar, e ela em S. Pedro de Moel com os pais, a telefonar-me do café do senhor Isidoro às escondidas, não foi nada. Sete anos da nossa vida, desde o primeiro ao sétimo anos antigos, sempre juntas, sempre de mão dada, com o coração transplantado no corpo da outra, não foi nada.
A minha vida foi-me roubada por ela, porque não era nada e por isso casar-me contigo também não foi quase nada e deve ter sido por isso que Deus nos poupou dos filhos, porque se os tivesse tido, não sei a quem iriam sair e acredita, Rudolfo, que se tivessem a tua cara de sapo ou as tuas mãos de cavador, acho que os ia odiar tanto como a ti.
As outras pessoas devem ter mais sorte, pelo menos parecem conseguir viver a vida mais ou menos de acordo com o que sentem ou querem, mas como nunca soube o que isso era, se queres que te diga, hoje em dia tanto me faz viver aqui ou na China, num andar cheio de bolor ou numa casa com jardim, porque a minha vida toda ficou debaixo das árvores, no jardim do internato, atrás da horta onde nos sentávamos ao final da tarde a ler poesia e chupar azedas, como quem espera tudo do mundo.
E agora, que os bicos de papagaio parlam em silêncio pelas minhas costas acima, que o sol me fere a vista e já não consigo enfiar a linha na agulha sem pôr os óculos na ponta do nariz e percebo que a vida me passou ao lado, olho para ti em silêncio e imagino-te transformado em cão peludo e gordo, ou então num gato vadio, cheio de listas e manchas, armado em tigre de periferia, a galgar telhados e a uivar à lua cheia. Mais valia seres um desses bichos, ao menos não tinha que te mudar as fraldas.