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Sem meios e numa maré de incompreensão

Sem meios e numa maré de incompreensão

Levam os dias, por amor ao próximo, a tentar fazer omeletas sem ovos. A sociedade, talvez porque sejam a face visível de um problema que lhes transcende, imputa-lhes a culpa de uma situação da qual também são vítimas: a inoperância do Corpo de Salvação Pública.

Quarta-feira, dia 27 de Julho. Cidade de Nampula. O barulho das sirenes das viaturas do Corpo de Salvação Públicaainda que ouvidos levemente anunciavam uma desgraça: um incêndio destruía o armazém principal do Shoprite no centro da urbe. O vaivém de carros na estrada ficou mais intenso. Um aglomerado de gente sobressaia aos olhos.

O Serviço de Bombeiros, com o apoio dos soldados da paz dos Aeroportos de Moçambique e mancebos da Academia Militar, tentava, a todo o custo, debelaras chamas queconsumiam parte das instalações onde funciona o maior supermercado da região norte e uma agência bancária. O sucedido repercutiu longe, graças aos holofotes dos meios de comunicação social.

No mesmo dia, por volta das 18h00, a desgraça batia a porta de uma família, no quarteirão 22, no bairro Acordos de Lusaka, na periferia da cidade de Maputo. Um incêndio, provocado por um menor de idade, devorou o fruto de 15 anos de sacrifícios do casal Ernesto e Ivone, deixando-o ao relento.

Aproximadamente 60 minutos foi tempo sufi ciente para os bens serem reduzidos a cinzas. O desespero e as lágrimas tomaram conta da situação. “É uma vida inteira de trabalho que se foi. Perdi tudo. Não sei o que será de nós”.

E, depois, seguiu-se o desconsolo: “falta-me o chão. Quando cheguei, não acreditei que fosse a minha casa a ser consumida pelas chamas. Estou triste. Vou ter de começar tudo do nada. Vamos ter de lutar”, diz Ernesto com os olhos cheios de lágrimas, enquanto observa fixamente para o que restou da sua vida.

Ernesto, na verdade, foi vítima do próprio Estado. Ou seja, a densificação da cidade de Maputo não obedeceu ao movimento normal que se verificava na altura em que no país se fez um estudo sobre a população, no qual se constatou que as estruturas físicas de Maputo e Matola estão ligadas, embora administrativamente pudessem apresentar-se separadas.

Recorde-se que o director do INFP, em 1980, numa entrevista para a revista Tempo, sustentou que a densifi cação em flecha e desordenada veio alterar em certa medida o que o plano continha nas suas hipóteses. Ou seja, se a população da cidade de Maputo era de 650 mil habitantes, em ‘80 previa-se um crescimento de 2,8 porcento.

“Na verdade, porém, o que está a acontecer é que não há um crescimento natural, mas sim uma violentação demográfi ca, na forma galopante como a população está a aumentar”, referiu. Portanto, mais do que vítima da falta de meios do corpo de bombeiros a família de Ernesto pagou pelo crescimento desordenado da cidade de Maputo. Portanto, essa advertência dos anos ‘80 ainda permanece actual.

Ao contrário da situação do supermercado de Nampula, Ernesto não contou com o trabalho do Corpo de Bombeiros – até porque as vias de acesso, na cidade de Maputo, não permitiram a intervenção deles – e não teve a mesma atenção mediática, apesar de ter perdido o resultado de uma vida inteira. No local, a palavra de ordem era colaboração. Para vencer as chamas, os vizinhos usaram baldes e bacias de água.

Duas cidades, duas realidades distintas. Mas, quando um incêndio deflagra, uma situação comum emerge: a inoperância dos bombeiros. Acontece assim um pouco por todo o país. O crescimento das urbes e a falta de meios adequados para combater as chamas são as principais entraves ao trabalho dos bombeiros.

Porém, as dificuldades dos nossos soldados da paz em combater incêndios, resgatar vidas, entre outras situações, começam mesmo ao sair de casa. Na sua maioria, passam por diversas privações. Levam uma vida despretensiosa e, nem por isso, deixam de colocar empenho e paixão no trabalho que fazem.

Até chegar ao local de trabalho, João* precisa de caminhar, pelo menos, três quilómetros para cumprir o seu turno nos dias em que não dispõe de cinco meticais para apanhar chapa. Há mais de 15 anos que integra as fileiras dos soldados da paz, dedicando-se a uma actividade bastante importante e mal compreendida pela sociedade.

“Hoje em dia, os bombeiros já não gozam do mesmo respeito que tinham antes. As pessoas não imaginam as dificuldades por que nós passamos para salvar vidas ou evitar que outras coisas piores aconteçam”, lamenta.

Os dias são tomados por uma tensão velada, até porque, diz, “nunca se sabe a que horas irromperá uma determinada situação adversa”, embora, muitas vezes, não hajatrabalho para fazer: “Ficamos aqui a ver o dia a passar”.

Casado e com uma família enorme por sustentar, João conta que o que já era difícil, na época em que abraçou a carreira, piorou bastante, pois,presentemente, falta tudo: “Não há meios para trabalhar. Arriscamos a nossa própria vida para salvar a dos outros e não temos motivação. E, como se não bastasse, os salários nesta área não são grande coisa”.

Geralmente, nessa divisão de trabalho, a remuneração mais baixa não atinge e/ou não ultrapassa os cinco mil meticais. “Nós, bombeiros, merecíamos uma vida com o mínimo de dignidade, um salário decente, pois a nossa vida está sempre em risco”, comenta.Porém, “mais do que o salário, merecíamos melhores meios”.

“Neste país não há bocas de incêndios. Por exemplo, se houvesse muitas situações poderiam ser debeladas com prontidão porque era uma questão de levar o carro e chegar ao local e ligar a mangueira”. Contudo, “lemos que os deputados beneficiaram de carros de luxo, mas um bombeiro não tem sequer um seguro de vida.”

Comando Provincial de Nampula

No Comando Provincial do Serviço de Bombeiros de Nampula, três grupos, divididos em igual número de turnos – A, B e C – estão atento às ocorrências. O comandante da corporação, Barbosa Muanacotxa, não revela o número de membros que compõe o seu efectivo, limitando-se a dizer: “Temos homens, mas ainda precisamos de mais”.

As dificuldades são deveras visíveis. A começar pelo próprio edifício – não acabado – no qual funciona a corporação, pois a primeira impressão com que se fica é a de que se trata de um terreno baldio. Mas não é. Aliás, é neste localonde os soldados da paz aguardam por uma ocorrência. No primeiro semestre registaram-se 23 incêndios (nas cidades de Nampula, Nacala e Angoche) e outros pequenos casos.

Na maior parte o comando dedica- se à promover acções de prevenção de incidentes. Diga-se, quando não há acidentes, restam apenas duas opções: passar o dia a conversar e a vender água aos populares.

A falta de meios para combater os incêndios tem sido a dor de cabeça dos bombeiros. “Possuímos poucos meios com os quais tentamos resolver a situação. E também o crescimento da cidade tem sido um grande problema, pois exige-nos que estejamos cada vez mais bem preparados”, diz Muanacotxa.

Armando Timbua, de 62 anos de idade, é um dos bombeiros mais velhos da corporação. Começou por ser voluntário há 23 anos. Hoje, mestre de artes marciais e torneiro de mão cheia, orgulha-se da profissão que escolheu. “Quando saio de casa para trabalhar, fico bastante feliz, mas o que mais me alegra é saber que estou a contribuir para o desenvolvimento do país”, diz.

*Nome fictício

Um olhar aos nossos bombeiros

O Serviço Nacional de Bombeiros foi criado em 1911 e só dispunha de uma viatura de combate a incêndios. Na altura, este serviço estava a cargo dos municípios.

Após a proclamação da independência em 1975, e com a instituição do sistema de partido único, foram extintos os municípios e o Serviço Nacional de Bombeiros passaria para a estar sob gestão dos Conselhos Executivos, criados em substituição dos municípios. Em 1986, estes viriam a ser integrados no Ministério do Interior.

Em 1987 foi aprovado o Decreto 41/89 de 12 de Dezembro que cria o Serviço Nacional de Bombeiros e, a partir deste período, passa a ter um comando a nível nacional e comandos provinciais em seis províncias, exceptuando as províncias de Gaza, Tete, Inhambane e Niassa. O Comando Provincial de Nampula tinha dois comandos distritais.

Em 2009 é extinto o Serviço Nacional de Bombeiros e é criado, pelo Decreto-Lei 3/2009 de 24 de Abril, o Serviço Nacional de Salvação Pública. Este dispositivo legal veio abrir espaço para a coexistência de bombeiros privativos (pertencentes a empresas) e municipais, embora estes já existissem.

Dificuldades

As dificuldades com que o Serviço Nacional de Salvação Pública depara são várias. Estas estão relacionadas com a fraca cobertura nacional e com a falta de meios materiais, circulantes e humanos.

Neste momento o Comando da Cidade de Maputo que é, por sinal, o mais equipado, dispõe de 13 viaturas de várias especialidades, tais como ambulância, combate a incêndios e socorro a acidentes de viação.

Segundo Valdemiro Rafael, porta-voz do Serviço Nacional de Salvação Pública, é difícil, por exemplo, responder a todas as necessidades da cidade de Maputo devido à sua grandeza. O aconselhável seria criar mais quartéis ao nível da capital e dos outros centros urbanos. Para tal, já foi feito um estudo aprofundado e o mesmo aguarda pelo financiamento para a sua materialização.

Outra dificuldade está ligada ao sistema de abastecimento de água e às vias de acesso. O grande desafio passa pela redução do tempo de resposta às solicitações.

Após a participação do caso, os bombeiros têm um minuto para sair do quartel mas, devido aos congestionamentos, que se registam na cidade de Maputo, as viaturas do Serviço Nacional de Salvação Pública levam muito tempo a chegar ao local da ocorrência e, chegados ao sítio, são obrigados, em caso de falta de água, a regressar ao quartel para reabastecer as viaturas.

Várias vezes estes têm pedido ajuda aos bombeiros da Mozal e dos Aeroportos de Moçambique, tal como sucedeu aquando do incêndio que deflagrou no Ministério da Agricultura. Este problema podia ser transposto se a cidade tivesse um sistema de abastecimento de água a funcionar 24 horas por dia.

Perspectivas

O porta-voz do Serviço Nacional de Salvação Pública fez saber que a sua corporação irá afectar, num futuro muito breve, agentes nas praias da cidade de Maputo para fazer face ao crescente número de afogamentos que têm ocorrido na nossa costa.

Neste momento está a decorrer um curso de capacitação em matérias de salvamento aquático. A formação está a ser ministrada em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) e a Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA). Esta cooperação prevê também a alocação de um barco, assistência técnica e equipamento.

Formação

Devido à complexidade do recrutamento, a formação dos agentes do Serviço Nacional de Salvação Pública era feita em função das necessidades da instituição, mas a partir de 2008 este passou a ser anual. De lá até o presente, são formados em média 30 agentes por ano.

Financiamento

À semelhança das outras instituições do Estado, o valor alocado ao Serviço Nacional de Salvação Pública não é suficiente para suprir todas as necessidades. Este só dá para suportar os gastos administrativos. “O que a nossa instituição recebe do Estado só dá para suportar os gastos administrativos. Temos de olhar para a realidade do nosso país, cujo orçamento depende em mais de 50% de doações. Não podemos ter mais”, adiantou.

A exiguidade dos fundos alocados ao Serviço Nacional de Salvação Pública pelo Estado faz com que este tenha de viver de “mão estendida”. Aliás, nos últimos tempos esta instituição tem recebido vários materiais, fruto de doações de países tais como Portugal, China e Brasil, o que faz pensar que o Estado não olha para esta instituição como prioritária.

Capacidade

Segundo Valdemiro, o Serviço Nacional de Salvação Pública tem capacidade para responder a qualquer tipo de solicitação. Actualmente, a instituição regista uma média de quatro ocorrências por dia com destaque para os acidentes de viação e incêndios.

Questionado sobre o que estaria por detrás do crescente número incêndios, este disse que o facto se devia em parte à transformação de residências em armazéns. Este cenário, aliado à má arrumação dos produtos, estado obsoleto das instalações eléctricas e à falta ventilação dos espaços faz com que os mesmos sejam propensos à ocorrência de incêndios.

Outro dado não menos importante é o dos gradeamentos feitos nas residências. Para Valdemiro, as grades colocadas nas varandas dos edifícios dificultam o trabalho dos bombeiros em caso de ocorrência de incêndio, pois é por estes locais que estes resgatam as vítimas. Mas reconheceu que os cidadãos pautam por este comportamento por questões de segurança.

Muitos cidadãos têm-se queixado da indisponibilidade da linha dos bombeiros e/ou da resposta tardia às suas solicitações. Sobre este problema, o porta-voz disse que isto acontece porque há pessoas de má-fé que ligam para a linha (198) de emergência para “brincar”, fazendo que esta fique congestionada, impedindo os que querem realmente fazer a participação de ocorrências de ligar.

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