Conforme a conferência Alma Ata, realizada em 1978 no Cazaquistão, na qual foi estabelecida como meta a saúde para todos até ao ano 2000, a alimentação e nutrição constituem direitos humanos fundamentais, consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e são vistos como requisitos básicos para a promoção e proteção da saúde, possibilitando a afirmação plena do potencial de crescimento e desenvolvimento humano com qualidade de vida. Adicionalmente, já em 1988, foi realizada a segunda conferência internacional de promoção da saúde, na Austrália, onde se destacou como uma das áreas prioritárias para a promoção da saúde a alimentação e nutrição. Desde então a eliminação da fome, da má nutrição e dos agravos relacionados ao excesso de peso foram considerados como principais metas para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Não obstante, a desnutrição continua, até aos dias actuais, constituindo um dos principais problemas de saúde, sobretudo nos países em via de desenvolvimento, afectando sobremaneira crianças menores de cinco anos de idade, mulheres grávidas e latentes.
Conforme foi mencionado no primeiro capítulo, a desnutrição é uma das doenças que mais causa mortes no mundo. Segundo a UNICEF é um problema chocante, tanto em escala quanto em gravidade, um cúmplice secreto da pobreza que impede o crescimento físico e mental de uma em cada três crianças nos países em via de desenvolvimento. Em Moçambique, segundo estudos realizados, em 1995 cerca de 41% das crianças sofriam de desnutrição, em 2003 o número aumentou para 48%, diminuindo em 2008 para 44% e no último estudo (2011) passou para 43% (OMS, 1995; MICS, 2008; IDS, 2011).
Conforme foi referido no terceiro capítulo, a desnutrição consiste num estado patológico caracterizado pelo desequilíbrio nutricional que resulta da insuficiência ou deficiência na ingestão de alimentos, ingestão inadequada dos alimentos ou mesmo pela má absorção dos nutrientes. Nesse caso, quando os alimentos escasseiam ou quando a alimentação é desequilibrada, o indivíduo pode envelhecer precocemente, apresentar baixo desempenho intelectual e se tornar vulnerável a desenvolver uma série de doenças, podendo ainda desenvolver uma estatura física do seu organismo com dificuldades. Nesse caso, para manter o equilíbrio biológico é necessário fornecer ao organismo os alimentos não só em quantidades suficientes, como também em composição nutricional necessária.
A literatura reconhece que as prácticas alimentares são determinadas pelas perceções que caracterizam os indivíduos no seu meio social, desde a dificuldade de acesso aos alimentos, a escolha e a forma de preparar, bem como a higiene alimentar e pessoal, incluindo as quantidades ingeridas e a variação ou não dos alimentos consumidos no dia-a-dia de cada um.
Tradicionalmente o homem, na qualidade de chefe de família, goza de maior privilégio alimentar, sustentado na prioridade de ser o primeiro a ser servido ou a selecionar as partes da carne ou a quantidade que pretende consumir. Além disso, em muitos casos é atribuído o direito de passar a refeição sozinho, em detrimento dos demais que tradicionalmente partilham a refeição com mais de uma pessoa no mesmo prato. Este acontecimento está aliado à ideia de que o homem é quem deve crescer e é socialmente visto como quem deve decidir quando há problemas de carácter familiar. Em outros casos, a criança é vista como quem tem maior prioridade de crescimento, mas no concreto em nada ganha na distribuição dos alimentos, pois o chefe da família está sempre na melhor posição.
Eis as causas principais da prevalência da desnutrição: introdução precoce de outros alimentos para recém-nascido (menos de seis meses); fraco controlo da saúde da mulher e da criança, o que leva à fraca capacidade de prevenção em diagnóstico precoce do problema; gravidez precoce e, por conseguinte, elevado número de crianças na família, o que engrandece o agregado familiar; hábito das comunidades produzirem mais para a venda do que para a sua própria alimentação; prevalência de tabus alimentares; maior incidência do HIV/SIDA; atribuição excessiva de privilégios ao homem na distribuição dos alimentos; o facto da mulher e a sua criança partirem muito cedo à machamba, onde ficam quase por todo o dia e sem merenda suficiente para suprir as necessidades energéticas diárias; fraco conhecimento sobre boas prácticas alimentares; fraca avaliação dos alimentos aliado à crença de que somente xima dá força em detrimento de outros alimentos de base (arroz, por exemplo); fraca capacidade produtiva e aquisitiva por parte de algumas famílias; e sensibilização deficiente das comunidades sobre os hábitos alimentares.
Os factores fundamentais da prevalência da desnutrição tem sido a própria alimentação. Em algum momento a população não está habituada a variar os alimentos e muitas vezes acredita-se que comer xima e peixe seco é alimentar-se bem, mas também, em algum momento, a pobreza não permite ter uma alimentação adequada. Nesse contexto, as constatações obtidas a partir dos estudos já realizados sustentam que o problema da desnutrição não deve ser tratado como uma mera consequência da falta de alimentos, do consumo inadequado ou da inibição imposta pelos tabus, mas sim como um fenómeno multidimensional que envolve aspectos ligados aos papéis e estatutos sociais baseados na idade, no sexo, nas percepções, no contexto social, etc. Xxx