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SELO: O abominável Regulamento de Fazenda de 1901 – Por Ricardo Santos

Numa medida para alavancar o processo de reforma do Estado, estabelecendo os comandos normativos para a operacionalização do Sistema de Administração Financeira do Estado, vulgo SISTAFE, foram revogados, em Junho de 2002, vários instrumentos legais retrógrados, com particular destaque para o oitocentista Regulamento de Fazenda de 1901 e suas sucessivas extensões que perduravam após a independência nacional.

Infelizmente, esta medida acertada do Governo moçambicano peca ainda por ser extensivamente ignorada por quem a propôs, num perigoso anacronismo da Função Pública moçambicana, em que o supra mencionado regulamento, ora revogado, marca ainda presença no normal funcionamento do processo da Conta Geral do Estado, inclusive nos seus elementos mais detalhados, de tal ordem, que até já se fala de um SISTAFE manual metamorfoseado em Regulamento de Fazenda de 1901, supostamente para não se paralisar o Aparelho do Estado, quando os sistemas informáticos não se acham disponíveis por corte geral de energia ou comunicações entre delegações e sede, acontecimento muito comum em Moçambique, diria mesmo, o dia-a-dia de cada moçambicano.

E assim, um Estado de direito costumeiro, distraído ou mergulhado em fait-divers eleitoreiros ou de carreirismo político-partidário, vai sodomizando o erário publico, que impotente, serve-se dos paliativos mais comuns receitados por Bretton Woods. Campanhas anti-isto e anti-aquilo na TV.

Processos jurídicos por isto e aquilo. Gabinetes de combate a isto e aquilo. Enfim, um turbilhão de ideias desconexas que se assemelham fazem a um exército bem treinado e equipado, mas que parte para o combate sem munição. Caricato. E incompreensível que este Regulamento de Fazenda de 1901, já caducado, ainda seja matéria de estudo obrigatória dos funcionários de qualquer unidade orgânica das finanças públicas de Moçambique, onde também, se converteu em cartilha infalível para provas de admissão ou de promoção de carreira. Incrível.

Este Regulamento de Fazenda de 1901, extinguido por lei, é também o denominador comum de todas a reclamações que o Tribunal Administrativo tem apresentado anualmente no parlamento sobre a má execução da Conta Geral do Estado, quase sempre, por não se conformar a lei do SISTAFE. Espantoso é que este mesmo Tribunal, se sirva muitas vezes do Regulamento de Fazenda de 1901, abolido, para sancionar gestores da Função Pública quer seja por insuficiente prestação de contas, quer seja mesmo, por qualquer razão que o SISTAFE não consegue deslindar, elaborando assim, as suas longas e detalhadas admoestações. Contraditório.

Mas é na modernização do Estado moçambicano que o efeito paralisante do Regulamento de Fazenda de 1901, dissolvido, se mostra em todo o seu esplendor. Com o seu vetusto texto, que nos remonta ao tempo da Monarquia Portuguesa, dos impostos de liça e dos capitães do Ultramar, tem sido a imposição mais frequente para se complicar e atrasar a informatização dos sinuosos e burocráticos processos de trabalho da Função Pública. Sendo base legal de muitas auditorias financeiras ao sector, tem ainda o condão de limitar, por exemplo, a plenitude dos códigos fiscais modernos à realidade da Sociedade de Informação.

Com o Regulamento de Fazenda de 1901, findo, tornou-se virtualmente impossível vislumbrar-se a médio prazo, a conclusão de muitas iniciativas tecnológicas já abraçadas pelo Governo há mais de três lustros, não valendo sequer a pena pensar-se em coisas muito mais complexas, ou arrojadas, como a Internet of Things, por exemplo, que partindo dos países vizinhos, rapidamente teve repercusão nos nossos sectores público e privado. Em suma, por razões, que a razão desconheçe, mas que prefiro endossar aos académicos, o paradigma da Máquina à Vapor insiste em se manter na ordem do dia do Governo eleito pela maioria dos moçambicanos.

Mas para um Estado que deseja ser Nação, a redução da dependência externa deveria ser o seu desígnio mais patriótico. Ora, isso nunca será almejado com o Regulamento de Fazenda de 1901, cassado, a marcar o ritmo actual da reforma e modernização das finanças públicas. Com efeito, ignorar a evidente enxertia deste no SISTAFE, tornou-se um exercício cabalístico e arriscado de reprodução de formulários, mapas, procedimentos e gestão de arquivo com directrizes do tempo de D. Carlos I por sistemas de informação caros e de alto gabarito, que nos deveriam assegurar a satisfação da nossa plateia de credores e elevar mais um pouco mais o ranking no Doing Business.

Não vai dar certo.

O Regulamento de Fazenda de 1901, terminado, e os seus inúmeros diplomas e portarias conexos, prestam-se, isso sim, como janelas de oportunidade para funcionários públicos inescrupulosos e oportunistas, continuarem a brandir o templário estandarte do Estado de Direito, cimentando as redes que contribuem para o actual estado de coisas caótico da Administração Estatal moçambicana. Deve pois, o ministério que superintende a área das finanças públicas agir rápido e com determinação, tomando a devidas providências, para fazer cumprir a lei do SISTAFE, expurgando-a de qualquer saudosismo colonial-fascista, visto que, os instrumentos para a tal, estão muito bem estabelecidos no Decreto 17/2002 de 27 de Junho.

Estando o nosso Estado de Direito hoje manietado pela rejeição evidente de muitos servidores públicos aos objectivos do SISTAFE, talvez seja a ocasião propícia para se fazer o rebranding deste, identificando e corrigindo as insuficiências na sua concepção, sobretudo, desmistificar a ideia de ter sido uma imposição externa e que por isso, foi merecedor de toda mentalidade fortaleza e chauvinista que subsequentemente se originou. Ainda que se possa reclamar da cópia evidente da realidade brasileira, está muito claro hoje, que o SISTAFE foi um salto na direcção certa, logo, deve ser aperfeiçoado, com um amplo programa de simplificação dos caducos normativos administrativos inspirados no abominável, jurássico e ilegal Regulamento de Fazenda de 1901.

Um programa que inclua também, uma componente de gestão da mudança nas finanças públicas, para se abandonar de vez, este catecismo quinhentista, candidato à morada final na Torre do Tombo.

Por Ricardo Santos

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