O maior xadrezista da história, Garry Kasparov, fala da derrota frente a Deep Blue, defende o ensino de xadrez nas escolas e diz que o colapso da Rússia é iminente.
Hoje, com 48 anos, o russo, que manteve o título de melhor xadrezista do mundo por quase duas décadas, um recorde, aposentou-se em 2005 e resolveu dedicar-se a uma nova causa: levar o xadrez às escolas de todo o mundo.
Pergunta – Como é que o xadrez ajuda na Educação?
Kasparov – O xadrez ajuda a desenvolver as habilidades de aprendizagem. Claro, a matemática é a mais evidente das disciplinas beneficiadas. Mas o xadrez ajuda ainda na concentração, na disciplina e no pensamento lógico. Também ajuda a criança a ser mais flexível, adaptável e aumenta o senso de responsabilidade.
No xadrez, se você toma uma decisão certa, o resultado é imediato e positivo; se toma uma decisão errada, também é imediato e negativo. A culpa, para todos os efeitos, é sempre do jogador. Há também um sem-número de estudos que mostram que as turmas que praticam xadrez têm melhor desempenho do que as que não o praticam.
Pergunta – Na infância, quanto tempo passava por dia a jogar?
Kasparov – Não sei, muitas horas. Sempre fui muito bom na escola, nunca tive dificuldades, então tinha bastante tempo livre e usava-o para isso. Um colega, seis anos mais velho, acompanhava-me. Pouco antes de completar 10 anos, tornei-me semiprofissional e passei a competir pela equipa local. Quando dei conta, já tinha arranjado um técnico e estava a treinar. Sempre foi fácil. Não me lembro de sacrifício. Era uma grande felicidade estudar, treinar e jogar. Mexer as peças, ler os livros, era tudo muito bom.
Pergunta – Hoje muito do treinamento de novos talentos é feito com computadores e pela Internet. O que pensa disso?
Kasparov – É um facto. Há coisas contra as quais não faz sentido opor-se, elas acontecem e pronto. Mas os elementos do contacto humano, mesmo nesse jogo, não podem ter a sua importância ignorada. Os computadores oferecem muitas opções interessantes de estudo. As crianças passam cada vez mais tempo em frente ao computador, então convencê-las a praticar o xadrez no computador é mais fácil.
O ambiente é mais propício. Mas fica um rasto no jogo de quem treina com a máquina de que a aprendizagem foi computadorizada. Quem treina com computador não faz os estudos no papel, como eu fazia. A maneira como os novos jogadores colocam o jogo no tabuleiro é diferente. Eles já não têm a cultura clássica do xadrez.
Pergunta – Isso é mau?
Kasparov – É a realidade. O que vemos é que o desempenho médio aumentou assustadoramente. Isso pode ser observado em vários desportos. Os génios continuam a existir, como Lionel Messi no futebol. O que mudou foi a média. Hoje Pelé não conseguiria fazer o que fez há 50 anos.
O mesmo serve para o xadrez. A média aumentou porque há muito conhecimento disponível. Um grande mestre adolescente hoje sabe muito mais do que Bobby Fischer (xadrezista) sabia há 40 anos. Mas isso não quer dizer que ele chegue a Fischer quando o assunto é talento. São realidades diferentes e temos de adaptar-nos a elas.
Pergunta – O xadrez teve um papel importante na propaganda ideológica comunista?
Kasparov – Sim. O jogo tinha o suporte do Estado: treinamento e financiamento para ser usados como arma de propaganda do regime. Hoje, na China, a situação repete-se. As crianças chinesas aparecem frequentemente entre os dez melhores do mundo. Em países como a antiga União Soviética e a China actual há poucas opções de distracção para as crianças. Então o xadrez surge como alternativa até de lucro para famílias pobres.
Com o jogo, elas complementam os rendimentos. Milhões de chineses são apresentados ao xadrez hoje em dia. Com esse tipo de estímulo, sempre surgirá um grande talento. É como o futebol no Brasil. Tendo um influxo de talento constante, você consegue o craque. A vantagem do xadrez é que ele é barato. Não requer praticamente nenhuma infra-estrutura, só interesse.
Pergunta – Mas os talentos transformam- se em agentes indirectos de propaganda do Estado, como aconteceu consigo. Isso incomoda-o?
Kasparov – Quando eu comecei a jogar, não me preocupava com nada, só queria jogar e ganhar. Era uma vida muito boa, amava o xadrez, jogava muito bem e tinha apoio material para os meus estudos, coisa que pouca gente tinha na União Soviética. Depois dos meus 16 anos, quando vi que teria de enfrentar o (campeão mundial) Karpov, por exemplo, comecei a ver as nuances da propaganda. Ele era abertamente pró-regime e passei a questionar-me.
Pergunta – Como era voltar para casa depois das viagens?
Kasparov – Na escola eu era uma atracção. Era a única pessoa que viajava para capitais de países capitalistas. Todos vinham perguntar-me como era a vida nesses países, até os professores. Sempre gostei de voltar para casa. Mas também gostava de viajar, ganhar o dinheiro que me garantia uma vida boa na União Soviética, coisa que quase ninguém tinha. Sempre fui muito curioso com o mundo, foi óptimo.
Pergunta – Como foi crescer num país comunista e depois ver tudo mudar tão dramaticamente?
Kasparov – Da infância lembro-me pouco, desde cedo dediquei-me muito ao jogo e aquilo me bastava. Quando o muro caiu e as coisas mudaram na União Soviética, não houve muita novidade para mim.
Eu viajava pelo mundo desde os anos 1970, conhecia outras realidades como poucos soviéticos e sabia como as coisas eram do outro lado. Propriedade e liberdade eram conceitos que eu entendia. E mais: nos anos 1980 eu já estava envolvido em movimentos democráticos para mudar o regime do país. Sabia da inevitabilidade do colapso.
Pergunta – Mas não sentiu a mudança?
Kasparov – Houve um choque inicial ao perceber que aquilo tudo tinha acabado. Mas eu sabia que aquele império jamais sobreviveria à pressão a que estava submetido. Vi os subúrbios a ficarem independentes, a criarem a própria burocracia e recusando-se a prestar contas a Moscovo. O colapso foi assustador. E temo pelo colapso da Rússia sob o comando de Putin (actual Primeiro-Ministro e candidato à presidência). Essa é uma das razões pelas quais me envolvi na política.
Pergunta – A derrocada da Rússia será pior que a da União Soviética?
Kasparov – O fim da União Soviética não foi tranquilo, mas também não nos transformámos numa Jugoslávia. Claro, houve muito sangue, sofrimento, muitos morreram. Mas, comparando com o que aconteceu em algumas repúblicas soviéticas, correu até bem. Mas agora, com o norte do Cáucaso a ponto de explodir, as guerrilhas locais, as guerrilhas islâmicas, os desentendimentos entre grupos étnicos, creio que o fim será muito mais feio. Espero que sobrevivamos a isso.
Pergunta – A seu ver, o colapso da Rússia sob Putin é iminente?
Kasparov – O colapso é iminente – e será horrível. A Rússia hoje não tem Estado. O Estado deveria ser uma instituição que serve as pessoas. Existem Estados mais eficientes, menos eficientes e sempre há corrupção. A diferença é que no Estado russo a corrupção não é um problema, é um sistema. O Estado hoje parece um feudo dividido em grupos que se beneficiam dos chamados “recursos administrativos” ou fundos governamentais.
A Rússia não é nem uma ditadura. Porque uma ditadura tem agenda. Pode ser uma agenda horrível, destrutiva, mas é uma agenda. A Rússia não tem agenda. O único objectivo é ganhar dinheiro. Putin quer governar como (o ditador) Stalin e viver como (o bilionário) Abramovich.
Pergunta – As perspectivas para a então União Soviética eram melhores que as actuais para a Rússia?
Kasparov – Não sei. Olha, sob nenhuma circunstância, tenho simpatia pelo comunismo. O sistema criou imensos problemas, gerou muito sofrimento e atrasou o desenvolvimento. Mas qualquer regime, até o soviético, tem um propósito, um objectivo. Os soviéticos competiram com os EUA na corrida espacial e, assim, desenvolveram tecnologia.
Quando criança, eu sabia que tinha hipóteses de ser um cientista, um xadrezista, independentemente de onde eu tivesse nascido ou de quem eram os meus pais. Hoje, na Rússia, se você não nasce nas famílias dos oligarcas, não tem hipótese alguma. Nem em infra-estruturas eles investem. O que temos hoje são restos da União Soviética.
Pergunta – Foi candidato a presidente em 2008, mas desistiu. Pensa em concorrer de novo?
Kasparov – Ser candidato como eu fui é marcar uma posição. Candidatei-me não para ganhar, mas para que houvesse verdadeiras eleições. Hoje você só participa nas eleições como candidato se estiver alinhado com o Kremlin. E a Suprema Corte é um fantoche do governo, então nada acontece.
Pergunta – Acha que terá de marcar posição novamente?
Kasparov – Não. Actualmente, cada vez mais pessoas percebem quanto todo o sistema é uma farsa. Hoje a discussão é em torno de como expressar o descontentamento. Uma possibilidade é anular o voto. Outra é descadastrar-se do sistema eleitoral. Sou a favor do descadastramento. Mas é difícil organizar-se na Rússia. O país é enorme e o Estado tem muito dinheiro, vende muito petróleo para comprar lealdade de sectores representativos da sociedade.
Pergunta – Na sua carreira, foi derrotado por um computador, o Deep Blue, em 1996. Que lição ficou?
Kasparov – Ele nunca foi testado noutra competição. Hoje você pode comprar um simulador de xadrez e rodá-lo no seu computador e ele será mais sofisticado que o Deep Blue. A lição que ficou é a de que as máquinas podem melhorar indefinidamente, mas o xadrez continuará a ser um jogo matematicamente infinito.
Não existe solução para o jogo porque o número de variações é astronómico. Não dá para calcular todos os jogos do primeiro ao último movimento. A vantagem que as máquinas sempre terão é que elas são estáveis. Até os melhores jogadores tem subjectividades e flutuações. A máquina não se altera. Não sabe se está a ganhar ou a perder. Eu sei, e isso influencia-me.
Pergunta – Quer uma desforra contra o Deep Blue?
Kasparov – Não, mas, se voltasse a competir com computadores, faria algumas exigências. Uma única vitória humana, por exemplo, seria o suficiente para acabar a competição. Hoje é preciso uma sucessão de vitórias. Dar essa vantagem ao ser humano tira a pressão de se estar a competir contra algo que terá sempre o mesmo desempenho. Com essa exigência e mais algumas pequenas mudanças de regras ainda poderemos ter boas disputas entre seres humanos e máquinas.