As acusações de “agitadores”, “desinformadores” e “contra o desenvolvimento”, feitas contra os técnicos do Centro Terra Viva (CTV), especialmente contra a sua Directora Geral (DG), são a estratégia encontrada por alguns membros do governo provincial de Cabo Delgado e do Distrito de Palma para ocultar as grandes questões e irregularidades do licenciamento dos projectos de exploração de gás em Cabo Delgado (Palma) e noutros pontos do país.
São acusações feitas com o simples intuito de fugir ao facto de que, um pouco por todo o país, têm estado a ser tomadas posições e decisões por agentes do governo que, de forma inaceitável, desrespeitam os direitos legítimos dos cidadãos, especialmente os cidadãos e comunidades rurais. Aproveitando-se da falta de informação e conhecimento, sobretudo conhecimento legal nestas zonas, desconsideram a imposição legal de prevenção de impactos sociais e ambientais negativos no licenciamento de projectos de investimento e, desviam-se da obrigação de priorização de benefícios económicos e financeiros para estas comunidades.
Estas acusações, porque repetidamente feitas em público, impõem que sejam esclarecidos, também publicamente, os factos até aqui deliberadamente omitidos e camuflados por de trás de grandes discursos e entrevistas supostamente de combate à pobreza rural. São estes factos que originaram a campanha policial contra a DG do CTV, que agora se estendeu para os Paralegais do distrito, formados pela Iniciativa para Terras Comunitárias (iTC), os quais trabalham com o CTV na disseminação de legislação ambiental e sobre terras, e na preparação das comunidades da Península de Afungi para a participação nas consultas organizadas nos diferentes processos de licenciamento em curso.
As próprias comunidades têm sido vítimas de intimidação e assédio constante por parte da polícia local, por terem saído da “escuridão” que a ignorância total sobre os seus direitos representava. No momento em que escrevemos este artigo, o Comandante da Polícia do Distrito de Palma, continuava a impor reuniões quase diárias à aldeia de Quitupo, a mais visada para o reassentamento, com o objectivo único de dissuadir os membros daquela comunidade de levantarem questões relativas aos seus direitos sobre a terra e de se oporem ao reassentamento.
A polícia é hoje o instrumento através do qual se pretende impor o poder e os interesses dos investidores, manipulando processos, paralisando mentes e silenciando vozes. É com a escolta da polícia que circulam os técnicos e consultores da empresa Anadarko, responsáveis por abordar o assunto do reassentamento junto das comunidades porque se considera que as comunidades não devem apresentar as suas inquietações, mesmo sendo absolutamente legítimas, porque isso constitui “violência contra o governo. Aliás, da boca dos governantes do Distrito de Palma, técnicos do CTV e doutras ONGs locais ouviram pronunciamentos como:
• “Desde quando é que um membro da comunidade de Quitupo sabe o que é lei?”;
• “O Governo e a empresa decidiram que as pessoas têm de ser reassentadas, e isso vai acontecer quer queiram quer não”;
• “O CTV e as comunidades devem saber que não têm o poder de travar um projecto e que nem tudo deve ser feito dentro da lei”.
Parece-nos muito simplista, cómodo e conveniente cultivar a percepção de que os moçambicanos que ocupam cargos públicos são, necessariamente, os moçambicanos mais patriotas e que, por ocuparem esses cargos estão, automaticamente, mais preocupados com a protecção e desenvolvimento do país e das comunidades do que todos os outros cidadãos do país. A prática, infelizmente, tem dado inúmeras mostras de como funcionários do governo lideram actos ilegais e até criminosos, em prejuízo de todos nós, incluindo dos próprios investidores. A 13 de Setembro passado, a aldeia de Quitupo foi o palco donde se exibiram dados do que poderá revelar-se como uma das maiores fraudes montadas dentro do governo, nos últimos tempos, para burlar e prejudicar os cidadãos e interesses nacionais, num chocante negócio de açambarcamento de terras.
O próprio governo exibiu documentos, supostamente actas de consultas, sobre assuntos claramente distintos da ocupação de terras, e onde constavam assinaturas de pessoas que disseram nunca terem pegado numa caneta nas suas vidas. É de interesse público que se esclareça como e por quem terão sido produzidas as supostas actas e postas as assinaturas que constam daqueles documentos. Não fazer ou não dizer nada sobre esta situação não é opção para o CTV. Por isso, indicamos abaixo as questões de direito e de facto, que na nossa opinião, merecem atenção e intervenção urgente de todos, mas sobretudo das instituições do Estado, responsáveis por assegurar a legalidade e a proteção dos direitos e interesses dos cidadãos deste país.
1. Legitimidade das Actividades das Organizações da Sociedade Civil
A liberdade de associação está consagrada no artigo 52 da Constituição e os cidadãos são livres de exercer e gozar desta liberdade, desde que não contrariem os limites constitucionais, não violem a lei e não perturbem a ordem e tranquilidade públicas. Para além disso, as organizações da sociedade civil que intervêm na área do ambiente e recursos naturais, têm a sua existência e acções legitimadas por instrumentos legais como a Lei das Associações (Lei Nº8/91, de 18 de Agosto) e a Lei do Ambiente (Lei Nº.20/97, de 1 de Outubro).
Como tivemos a oportunidade de esclarecer em comunicado de imprensa, publicado nos órgãos de comunicação social no passado mês de Agosto, o trabalho que o CTV está a realizar foi expressamente solicitado pelo Administrador do Distrito de Palma. No entanto, como resposta às reclamações da comunidade de Quitupo sobre a maneira irregular como os processos de licenciamento dos projectos de gás estão a acontecer, especialmente o facto de não terem sido consultadas no processo de atribuição da licença de uso da terra para os investidores, o governo distrital decidiu questionar a legitimidade de o CTV e outras Organizações da Sociedade Civil, defenderem os direitos das comunidades.
De facto, no momento em que este artigo é publicado, uma equipa de ONGs integrando o CTV, a MULEIDE (Associação Mulher, Lei e Desenvolvimento) e a ASPACAD (Associação dos Paralegais de Cabo Delgado) está a ser proibida pelo Administrador do Distrito de Palma de preparar as comunidades para os processos de consultas sobre o licenciamento ambiental, porque essa preparação, segundo ele, “está a dificultar o trabalho do governo, porque as comunidades agora fazem muitas perguntas sobre leis”. Por isso, exigem-se credenciais, autorizações, guias de marcha e outros documentos, mesmo a organizações que, como o CTV, existem há mais de dez anos, devidamente autorizadas, pelo próprio governo, para operarem em todo o território nacional.
Estranhamos também que depois de encontros de apresentação do trabalho do CTV, também na sua qualidade de coordenador do secretariado da Plataforma da Sociedade Civil para Recursos Naturais e Indústria Extractiva, realizados com representantes do Governo central, provincial e distrital, desde Fevereiro de 2013, estas mesmas instituições venham hoje declarar que “a Directora Geral do CTV saiu de Maputo directamente para a aldeia de Quitupo, sem se apresentar ao Governo Provincial e Distrital”. Quando recordados sobre os encontros acima mencionados, ocorreu-lhes apenas dizer que “a apresentação foi verbal e não escrita”, como se os documentos, sejam eles credenciais, autorizações ou guias de marcha, (que só poderão vir do próprio CTV), possam resolver as questões de fundo que a seguir mencionamos. Ninguém até hoje respondeu à pergunta colocada pelo CTV, sobre se o governo, a qualquer nível, tem legitimidade para impedir que o CTV ou outra organização desenvolva as suas actividades em qualquer parte deste país, quando tais actividades sejam legais e integradas na agenda do desenvolvimento nacional. Aguardamos esclarecimentos sobre este assunto, que sabemos ser preocupação de várias ONGs nacionais, em todo o país.
Precisamos de saber donde vem a proibição de as ONGs, legalmente constituídas, visitarem e trabalharem em qualquer comunidade deste país. Precisamos de saber porque é que precisamos de pedir mais autorizações ao governo, fora do processo da aprovação dos nossos estatutos, e da apresentação dos nossos planos de trabalho aos diferentes níveis do governo. Ainda que tivesse sido esse o caso, qual a base legal da proibição de se sair directamente de Maputo a Quitupo? Esquecendo-se de que muitos dos técnicos do próprio governo que trabalham nos ministérios, nas direções provinciais e nas administrações dos distritos não são oriundos dos territórios onde actuam, as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) que trabalham em Palma têm sido apontadas como sendo “pessoas e organizações “de fora” que vêm a Palma envenenar as comunidades contra o governo e contra o desenvolvimento das comunidades”.
Quando questionada pela comunidade de Quitupo, a 13 de Setembro, sobre os motivos que ditaram o interrogatório da DG do CTV pela polícia de Palma, a Secretária Permanente do Governo da Província de Cabo-Delgado comentou que “ninguém é proibido de ser interrogado pela polícia, mas ninguém deve entrar na casa dos outros sem pedir licença”. Isto não só não respondeu à pergunta, como faz subentender que as áreas das comunidades são “casas” dos membros do governo geridas por estes, onde os residentes não têm cara, voz ou opinião. À mesma pergunta feita pela DG do CTV à Ministra dos Recursos Minerais, esta governante comentou que lhe chegaram informações de que a equipa do governo, liderada pela Secretária Permanente provincial, havia sido agredida! Educar e informar cidadãos é violência contra o governo?
Tanto quanto sabemos, na ordem jurídica moçambicana ninguém tem o poder de limitar ou impedir que as OSCs desenvolvam as suas actividades em qualquer parte deste país, sendo tais actividades legais. Nestes termos, é importante que se esclareça a razão pela qual o Governo tem estado a proibir que as organizações da sociedade civil, legalmente constituídas, realizem as suas actividades em qualquer comunidade deste país. Apesar das barreiras ilegais impostas, as OSCs estão determinadas a continuar firmes na realização daquela que consideram ser uma das mais nobres acções que qualquer cidadão e/ou instituição pode realizar: partilhar, de forma construtiva, conhecimento e informação. Se isto agora constitui crime, aguardamos que o digam publicamente.
2. Precedência da Licença Ambiental
O nosso entendimento em relação aos processos de licenciamento de grandes e pequenos projectos com impactos ambientais significativos, tem sido guiado pelo Artigo 15 da Lei do Ambiente, que abaixo transcrevemos na íntegra, com destaque e sublinhado nosso.
Artigo 15.º
(Licenciamento Ambiental)
1. O licenciamento e o registo das actividades que pela sua natureza, localização ou dimensão, sejam susceptíveis de provocar impactos significativos sobre o ambiente, são feitos de acordo com o regime a estabelecer pelo governo, por regulamento específico.
2. A emissão da licença ambiental é baseada numa avaliação do impacto ambiental da proposta de actividade e precede a emissão de quaisquer outras licenças legalmente exigidas para cada caso.
É com base nesta e noutras disposições da Lei do Ambiente que temos defendido que a Licença para o Uso e Aproveitamento da Terra, emitida pelo Ministro da Agricultura em Dezembro de 2012, foi feita em violação do princípio da precedência da licença ambiental acima exposto, pois não deveria ter sido emitida antes da emissão desta licença. A explicação obtida junto do MICOA, que pensamos corroborar a nossa posição, é de que foi decidido que se deveria “abrir uma excepção” ao projecto da Anadarko, para acelerar o processo de licenciamento desta empresa e, assim, permitir que a mesma conseguisse os financiamentos necessários para a implementação do projecto de exploração de gás natural. Quanto a nós, esta excepção, feita por um órgão sem competência para o efeito, representa a primeira irregularidade grave, nomeadamente a ilegitimidade do Executivo de abrir excepções a leis, quando estas não o fazem no seu próprio texto, ou quando o Parlamento, único órgão competente para esse efeito, não o tenha feito por lei ulterior.
O que para nós é mais surpreendente é que, tanto do lado do MICOA como do lado dos assessores da própria empresa, parece haver desconhecimento da lógica por de trás da determinação legal de que a licença ambiental deve preceder as demais licenças. Ambos defenderam recentemente em público a posição de que era preciso atribuir o DUAT à empresa para que se pudesse realizar o estudo de impacto ambiental.
Quanto a nós, o princípio da precedência da licença ambiental é a expressão legal dum importante pilar da sustentabilidade ambiental, o princípio da prevenção. De facto, a Lei do Ambiente, no Artigo 1, Nº.5, esclarece que a Avaliação do Impacto Ambiental (AIA), que serve de base para o licenciamento ambiental, é um instrumento de gestão ambiental PREVENTIVA. A falta de entendimento destes princípios básicos da política e da legislação ambiental, representam uma fragilidade grave e inaceitável da parte dum ministério que tem como mandato, entre outros, “Velar pela introdução de uma cultura de sustentabilidade no processo de tomada de decisões em matéria de gestão e uso de recursos naturais, principalmente na fase de planificação e exploração”… (Veja-se Estatutos do MICOA).
Durante a consulta pública sobre a AIA, realizada em Maputo a 9 de Setembro de 2013, e em encontros com o MICOA antes e depois disso, fomos informados ainda de que se decidira inverter a ordem de precedência das licenças porque “seria complicado para o investidor realizar a AIA sem ter o DUAT da área”. Este argumento preocupou-nos porque, para além de confirmar que o licenciamento de projectos está a ser conduzido à margem da lei, deixou transparecer a existência de uma confusão entre a necessidade de determinação da base territorial para a realização da AIA e a necessidade de emissão do DUAT sobre a área pretendida. Parece-nos que o MICOA e os assessores da empresa confundiram “identificação prévia do terreno” com “obtenção prévia do DUAT”… (Vejam-se Artigos 25 e 27 do Regulamento da Lei de Terras).
É nosso entender que o investidor precisa apenas de indicar ao governo a área que, podendo, tenciona ocupar para a implantação do seu projecto. Com base nessa indicação, o governo pode, nos termos da lei, determinar que seja realizada a AIA sobre a zona pretendida. Em situação ideal, o governo já deveria ter os instrumentos necessários para orientar os investidores para os lugares certos (apropriados para a actividade em causa e com o mínimo de conflitos), nomeadamente o zoneamento ecológico e os planos de uso da terra, acompanhados da respectiva avaliação ambiental estratégica. Em alguns casos, estes instrumentos até já existem mas simplesmente não são usados. Achamos, por isso, que a AIA pode e deve ser realizada antes da emissão do DUAT, até porque, o processo da AIA pode e deve inviabilizar qualquer pretensão de ocupação de terras que não tenha sido devidamente aprovada naquele processo.
No caso de Palma, a possibilidade de afectar negativamente várias famílias, forçando-as a um reassentamento involuntário com todos os efeitos perniciosos destes processos, pode ser considerada um risco fatal do projecto, inviabilizador da sua implantação na área sobre a qual já recai o DUAT emitido precocemente a favor da empresa, ou da sua implantação nos moldes até aqui pretendidos. Neste caso, a pergunta legítima a colocar será: porquê se gastou tempo e recursos financeiros num processo de licenciamento com valor precário e utilidade duvidosa? Ou seja, se a Licença Ambiental é que determina a validade das demais licenças, como prescreve o Artigo 15 supracitado, qual terá sido o objectivo e utilidade da emissão antecipada duma licença do uso da terra? Por outro lado, qual a utilidade do processo de licenciamento ambiental se a ocupação da terra para os fins e nos moldes pretendidos pela empresa já foi autorizada, sem que antes tivessem sido identificados e avaliados os impactos sociais e ambientais do projecto como determina a lei?
Estamos perante mais um caso que justificadamente levanta dúvidas sobre o papel e relevância do MICOA, e exacerba desconfianças sobre o já muito propalado negócio de açambarcamento de terras, sob a capa de investimentos para o combate à pobreza. Aliás, a pressa com que o DUAT foi emitido, à entidade a favor de quem o DUAT foi emitido, e o facto de o beneficiário desse direito ser uma outra entidade ainda, impõem que se esclareça publicamente a razão pela qual foi necessário retirar o DUAT das comunidades, espalhando o espectro e a incerteza do reassentamento sobre as mesmas.
Estamos perplexos com a tamanha confusão demonstrada no processo de licenciamento do uso da terra em benefício das empresas de exploração de gás em Palma. O negócio entre a Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH) e a Anadarko, para a obtenção do DUAT em nome da Rovuma Basin Logistics (de que ambas são sócias), assim como o contrato de cessão do DUAT subsequentemente firmado, entre a RBL e a Anadarko, levantam questões éticas e legais da maior seriedade e, certamente ficarão registados como uma das maiores acrobacias legais e empresariais da história da promoção de investimentos estrangeiros no país.
3. Atribuição do DUAT para Investimentos em Áreas Comunitárias
A Constituição da República, a Lei de Terras e o respectivo regulamento, contêm disposições claras que orientam o licenciamento da ocupação de terras por investidores públicos ou privados em áreas ocupadas por comunidades rurais. Em nosso entender, são as seguintes as regras/passos principais para a atribuição de DUATs para fins económicos, em sequência legalmente prescrita, e as irregularidades cometidas no caso de Palma:
a) Consultas comunitárias: Para além do prescrito na Lei de Terras e no seu Regulamento (Artigos 25 e 27), o Ministério da Agricultura aprovou em 2010 um Diploma Ministerial sobre Consultas que impõe a realização de pelo menos duas consultas comunitárias. Neste ponto importa fazer notar que, para além da obrigação de um aviso prévio de 15 dias e da realização de pelo menos duas reuniões para consulta, esta tem um conteúdo determinado por lei, nomeadamente “ a confirmação de que a área está livre e não tem ocupantes”. Ademais, o parecer do administrador, subsequente a esta consulta, tem igualmente um conteúdo legalmente pré-determinado, ou seja “o parecer do Administrador do Distrito incidirá sobre a existência ou não, na área requerida, do direito de uso e aproveitamento da terra por ocupação. Caso sobre a área requerida recaiam outros direitos, o parecer incluirá os termos pelos quais se regerá a parceria entre os titulares da terra, com direitos adquiridos por ocupação e o requerente.
No caso de Palma, é já sobejamente sabido que a área pretendida pelo projecto tem ocupantes que não foram consultados, quer sobre a pretensão dos investidores de ocuparem a sua terra, como sobre a consequência de tais ocupantes terem de ser reassentados. Neste caso, e por muito esforço feito pelo governo para mostrar o contrário, a verdade é que não houve uma única consulta sobre a atribuição do DUAT para o projecto, tanto quanto à forma, como quanto à substância. De facto, nestes aspectos, as duas reuniões realizadas a 7 e 24 de Agosto de 2012, enfermaram de vícios graves que, salvo melhor entendimento, impõem a nulidade do DUAT, especialmente depois de ter sido exibido publicamente, a 13 de Setembro de 2013, na Aldeia de Quitupo, perante câmaras da televisão nacional (TVM), e blocos de notas de jornalistas, o esquema com o qual se pretendeu burlar o Estado e os seus cidadãos.
Técnicos da Direcção Provincial de Agricultura de Cabo-Delgado, associados a técnicos da ENH, mostraram que foram forjados documentos e falsificadas assinaturas, para “compor” actas de consultas comunitárias e permitir assim a emissão do DUAT. Este acto ainda constitui crime no nosso país, e estamos convictos de que o Ministério Público encetará as diligências necessárias para o apuramento de responsabilidades. Em paralelo, estamos esperançosos de que Sua Excelência o Ministro da Agricultura tomará a iniciativa de declarar a nulidade deste DUAT e, com isso, repor a legalidade no licenciamento do projecto. Para benefício de todo o público, a TVM deveria ser autorizada a exibir integralmente a filmagem do referido encontro, cuja cópia pode ser também obtida no CTV.
b) Parcerias entre investidores e comunidades: Hoje sabe-se também que para além de não ter sido realizada nenhuma consulta comunitária sobre o licenciamento do uso da terra, nos termos e para os efeitos determinados na lei, não foi discutida nem negociada qualquer parceria entre as comunidades e os investidores, quer no âmbito da consulta, quer noutro contexto qualquer. Na verdade, vezes sem conta ouvimos os aldeões comentarem que apenas queriam saber as razões porque terão de ser reassentados, o tamanho da fábrica que os obriga a sair, o destino que seguirão, e os termos e condições em que a sua mudança será efectuada.
Por uma questão de coerência do próprio governo e outros sectores, importa fazer notar que muito recentemente o Fórum de Consultas sobre a Terra (FCT), no documento intitulado “Directrizes para o Reforço da Segurança de Posse de Terras das Comunidades Rurais e para Parcerias entre Comunidades e Investidores”, aprovado na generalidade na sua IV sessão (realizada em Inhambane, em Novembro de 2012) recomendou que sejam privilegiadas parcerias em que se mantém o DUAT na posse das comunidades, mas possibilitando, com base em condições e termos previamente acordados entre as partes, que os investidores usem terras comunitárias para os seus projectos.
É também entender dos membros do FCT, que o reassentamento deve ser uma decisão excepcional devidamente fundamentada. O FCT recomendou igualmente que, ao contrário do que acontece actualmente, as parcerias sejam formalizadas por via de contratos ou outros documentos que lhes confiram valor legal, sendo um deles o“Contrato de Cessão de Exploração” (que, em nosso entender, melhor seria designado por “Contrato de Cessão do DUAT”), previsto no Artigo 15 do Regulamento da Lei de Terras, mas ainda não regulamentado.
No caso de Palma, foi este contrato que, segundo a ENH, o governo firmou com a Anadarko. Estranhamente, ao invés de organizar e apoiar as comunidades locais, já detentoras do DUAT por direito constitucional, o governo preferiu retirar injustificadamente o DUAT da posse das comunidades, para que fosse uma empresa privada, criada exclusivamente com esse propósito, a negociar um contrato de cessão do DUAT com a Anadarko, sem conhecimento ou qualquer benefício financeiro ou doutra natureza para as comunidades afectadas.
A maneira como as comunidades foram marginalizadas deste processo, levanta também questões sobre o papel e relevância das recomendações do FCT. Estamos todos ansiosos por conhecer os termos e condições em que este negócio foi firmado e, num contexto em que se aventa a hipótese de reassentamento, a informação sobre o valor deste contrato será de muita utilidade como referência para as negociações de compensações e ou indemnizações para as comunidades afectadas.
Tanto quanto muitos de nós sabemos, o FCT constituiu um grupo de trabalho que está ainda a trabalhar na regulamentação deste tipo de contrato, para que haja uma base legal para a sua operacionalização. Na ausência de qualquer instrumento regulador, será de todo útil que a ENH ou o Ministério da Agricultura (MINAG) venham a público esclarecer as bases legais que possibilitaram a conclusão do contrato com a Anadarko. Não podemos deixar de recordar neste contexto, e ainda com bastante estranheza, que o MINAG retirou da agenda da V Sessão Ordinária do FCT, realizada em Gondola em Abril do ano corrente, os pontos relativos à adopção formal das Directrizes acima citadas e à proposta de Regulamento da Cessão do DUAT. Porque esta supressão foi feita unilateralmente e em pleno decurso da referida sessão, sem qualquer justificação dada aos participantes, perguntamo-nos se isso terá tido alguma coisa a ver com este caso. Indicamos abaixo algumas das disposições mais relevantes sobre consultas comunitárias, parcerias e contratos de cessão de exploração.
Artigo 15 (Regulamento da Lei de Terras)
(Transações relativos a prédios rústicos)
(…..)
4. A celebração de contrato de cessão de exploração está igualmente sujeita a aprovação prévia da entidade que autorizou o pedido de aquisição ou de reconhecimento do direito de uso e aproveitamento da terra e, no caso das comunidades locais, depende do consentimento dos seus membros.
5. Os contratos de cessão de exploração só são validos quando celebrados por escritura pública. Artigo 25 (Regulamento da Lei de Terras)
(Projectos de investimento Privado)
1. Para a realização de projectos de investimentos privados que impliquem a aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra, será feito um trabalho para a identificação prévia do terreno, envolvendo os Serviços de Cadastro, as autoridades locais, o qual será documentado no esboço e memória descritiva, seguindo-se do disposto no artigo 24 do presente Regulamento.
Artigo 27 (Regulamento da Lei de Terras)
(Parecer da Administração do Distrito e consulta às comunidades locais)
1. Os Serviços de Cadastro enviarão ao Administrador do respectivo distrito um exemplar do pedido, para efeitos de afixação do respectivo Edital e obtenção do seu parecer, prestando-lhe a assistência técnica necessária para a recolha de informações sobre o terreno pretendido e os terrenos limítrofes.
2. Será feito um trabalho conjunto, envolvendo os Serviços de Cadastro, o Administrador do Distrito ou seu representante e as comunidades locais. O resultado desse trabalho será reduzido a escrito e assinado por um mínimo de três a um máximo de nove representantes da comunidade local, bem como pelos titulares ou ocupantes dos terrenos limítrofes.
3. O parecer do Administrador do Distrito incidirá sobre a existência ou não, na área requerida, do direito de uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação. Caso sobre a área requerida recaiam outros direitos, o parecer incluirá os termos pelos quais se regerá a parceria entre os titulares da terra adquiridos por ocupação e o requerente.
c) Processo de extinção do DUAT por interesse público: O Artigo 18 da Lei de Terras determina, de forma taxativa, as circunstâncias em que o DUAT pode ser extinto. Foram até agora infrutíferas as tentativas do CTV de obter esclarecimentos sobre qual dos fundamentos terá determinado a extinção do DUAT das comunidades e a sua transferência para a RBL, e sobre o processo de expropriação seguido e legalmente imposto como condição sine qua non para a emissão da licença de uso da terra.
Os dados que temos até ao momento indicam ter havido também irregularidades em relação a este aspecto, pois o DUAT foi emitido sem que, paralelamente, se tenha conduzido o processo de expropriação, e sem o pagamento prévio de indemnizações ou compensações, como impõe o Artigo 19, Nºs.3 e 4, do Regulamento da Lei de Terras. Supomos que o Ministro da Agricultura deverá ter emitido a declaração de extinção do DUAT das comunidades, mas aguardamos, há já três meses, por resposta ao pedido de esclarecimentos sobre este assunto.
Quanto à retirada do DUAT da posse das comunidades, esclarecimentos obtidos da Ministra dos Recursos Minerais e do Ministro da Agricultura, indicam que o facto deveu-se à preocupação de se não emitir o DUAT a favor de uma empresa estrangeira e de mantê-lo nas mãos do Estado. No entanto, estes argumentos são destruídos pelo facto de o DUAT, de facto, ter sido emitido a favor de uma empresa privada com participação estrangeira, cujo sócio estrangeiro recebeu da sua contra-parte o direito exclusivo de usar e fruir desse direito. Mas o que é realmente curioso é a razão que terá levado o Estado, titular do direito de propriedade da terra, a sentir a necessidade de se atribuir, a si próprio, um direito de uso e aproveitamento da terra.
Artigo 18 (Lei de Terras)
(Extinção do direito de uso e aproveitamento da terra)
1. O direito de uso e aproveitamento da terra extingue-se:
a) pelo não cumprimento do plano de exploração ou do projecto de investimento, sem motivo justificado, no calendário estabelecido na aprovação do pedido, mesmo que as obrigações fiscais estejam a ser cumpridas;
b) por revogação do direito de uso e aproveitamento da terra por motivos de interesse público, precedida do pagamento de justa indemnização e/ou compensação;
c) no termo do prazo ou da sua renovação; d) por renuncia do titular.
2. No caso de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra, as benfeitorias não removíveis revertem a favor do Estado.
Artigo 19 (Regulamento da Lei de Terras)
(…)
3. O processo de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra, por motivo de interesse público, será paralelo ao processo de expropriação e é precedido do pagamento de justa indemnização e/ou compensação;
4. A declaração de extinção do direito de uso e aproveitamento da terra é feita pela entidade que autorizou o pedido de emissão do título ou reconheceu o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação.
d) Delimitação prévia e prioritária de terras comunitárias para efeitos de implantação de projectos: Como se disse acima, a legislação sobre terras orienta a ocupação de terras comunitárias através de vários mecanismos, sendo, por isso, de lamentar que o governo ignore tais orientações e opte por gerir o uso e ocupação da terra rural, como se houvesse um total vazio legal. De facto, um dos mecanismos previstos para a prevenção de conflitos, e para o reforço da segurança de posse de terras pelas comunidades rurais no contexto de projectos económicos e promoção do desenvolvimento rural sustentável, é a delimitação das terras das comunidades.
O Anexo Técnico ao Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Diploma Ministerial Nº.29-A/2000, de 17 de Março, indica, no Artigo 7, Nº.1, que a delimitação de terras deve ser feita prioritariamente nos casos (a) onde haja conflitos; (b) nas áreas das comunidades locais onde o Estado e/ou outros investidores pretendem lançar novas actividades económicas e/ou projectos e planos de desenvolvimento; (c) a pedido das comunidades. O mesmo Artigo determina, no seu Nº.4, que “quando a delimitação for efectuada por causa da existência de novas actividades económicas e/ou projectos e planos de desenvolvimento, os custos são suportados pelos investidores.
Apesar de a Iniciativa para Terras Comunitárias (iTC) ter programado a delimitação de terras das comunidades de Palma, em cumprimento dos ditames do Anexo Técnico em termos de prioridades, nem a Administração do Distrito, nem o governo provincial de Cabo delgado mostraram, até aqui, qualquer interesse em que esta actividade fosse realizada, com prioridade para as comunidades da Península de Afungi, área sobre a qual recai o DUAT emitido a favor do projecto. Na verdade, parece ter havido um desincentivo para que isso acontecesse, tendo a intervenção da iTC sido restringida às actividades integradas na componente de divulgação da legislação, advocacia e comunicação, desenvolvidas pelo CTV (na sua qualidade de membro do consórcio da iTC e responsável por esta componente).
O CTV tem estado a chamar a atenção de todos para a importância e urgência da delimitação das terras das comunidades da Península de Afungi, especialmente a comunidade de Quitupo, para que quando o eventual processo de reassentamento tiver de ser discutido e decidido, estejam já clarificados e acautelados os aspectos legais relevantes e se tenha realizado a devida preparação social para o efeito.
Os ataques contra o CTV resultam também da falta de entendimento, por parte dos agentes do governo provincial e local, do facto de que a preparação social que o CTV/iTC estão a realizar, bem como a delimitação de terras também planeada, são uma imposição legal, dada a previsão de implantação de um grande projecto económico no distrito. Esperamos, por isso, que, ao invés de ver inimigos onde não existem, a Administração do Distrito aprecie o esforço que o CTV/iTC e seus parceiros estão a desenvolver para apoiar a sua preparação para os desafios que os investimentos actuais e futuros representam.
e) Proibição de titulação do direito de uso da terra em áreas ocupadas por infra-estruturas petrolíferas e de gás: O caso de Palma encerra uma situação legal caricata, porquanto nos termos do Artigo 20, Nº.3, da Lei de Petróleos, “os terrenos onde se encontram as instalações e uma faixa circundante a ser definida por regulamento, consideram-se zonas de proteção parcial, nos termos da legislação sobre o uso e aproveitamento de terras”. Por sua vez, o Artigo 9 da Lei de Terras determina que “nas zonas de proteção total e parcial não podem ser adquiridos direitos de uso e aproveitamento da terra, podendo, no entanto, ser emitidas licenças especiais para o exercício de actividades determinadas”. A nossa conclusão, salvo melhor entendimento, é de que, afinal, a Anadarko apenas pode ter uma licença especial para a ocupação de terras para a implantação de infra-estruturas.
Por isso é que não conseguimos calar a seguinte pergunta: afinal, porque se entrou nesta azáfama de retirada do DUAT das comunidades para a RBL, se ninguém pode ter DUAT em áreas onde sejam implantadas infra-estruturas petrolíferas ou de gás? Por outro lado, a outra pergunta que temos feito de forma insistente em todas as consultas sobre a AIA, sem termos obtido ainda qualquer resposta é: afinal, qual o tipo e dimensão das infra-estruturas do projecto da Anadarko e ENI, e qual a área de terra efectivamente requerida para a sua implantação? Ainda que nos digam que provavelmente tratar-se-á da maior fábrica de liquefação de gás natural do mundo, será que ela precisará de ocupar 7,000ha de terra para esse efeito, acrescida de 18,000ha para uma cidadela industrial? Estranhamente, o Relatório do Estudo de Impacto Ambiental (REIA) que foi circulado para comentários públicos contém esta lacuna grave, que em nosso entender deveria ter simplesmente impedido o início das consultas.
Ou seja, não existem dados neste momento que justifiquem a indicação feita pela IMPACTO, Lda, de que “muito provavelmente a aldeia de Quitupo e os seus dois acampamentos de pesca (Milamba I e Milamba II) terão de ser reassentados”. Isto é, iniciou-se um processo de profunda desestabilização e perturbação social nas comunidades da península de Afungi, sem que as empresas e o governo tenham qualquer fundamento para aterrorizar as populações da zona com o espectro do reassentamento. A ligeireza com que este assunto está a ser tratado deveria, em nosso entender, ter já despoletado uma auditoria ao processo da AIA. Nem o processo de DUAT nem o processo da AIA deveriam ter iniciado sem a apresentação das especificidades do projecto, tal como impõe a lei, mas isso não aconteceu. Porquê? Mais uma excepção feita à lei? Com que fundamento?
3. Autorização do Reassentamento
De acordo com comentários do MICOA, depois do já tristemente famoso Caso Cateme (Tete), o governo decidiu aprovar um regulamento para orientar a tomada de decisões sobre os reassentamentos resultantes da implementação de projectos económicos. Este regulamento, aprovado pelo Decreto No. 31/2012, de 8 de Agosto, integrou, correctamente, a avaliação da necessidade de reassentamento no processo de licenciamento ambiental. Fazemos notar que, nos termos do Artigo 15 deste Decreto, a aprovação do Plano de Reassentamento precede a emissão da licença ambiental.
No caso de Palma, o reassentamento é o principal impacto negativo significativo da pretensão da Anadarko e ENI de ocupar a Península de Afungi para a implantação da fábrica de gás liquefeito e infra-estruturas de apoio, incluindo áreas de habitação para trabalhadores. Do ponto de vista processual, a combinação entre o Regulamento sobre Avaliação do Impacto Ambiental e o Regulamento sobre Reassentamento, impõem que o processo de licenciamento ambiental seja conduzido de forma substancialmente cuidadosa e participativa, exigindo várias consultas e audiências públicas e, consequentemente, um nível adequado de preparação de todos os intervenientes, como determinam os Artigos 13 e 14. O caso de Palma mostrou as seguintes situações preocupantes e irregularidades:
a) Falta de preparação da Administração para a compreensão dos vários processos de licenciamento e procedimentos inerentes.Pensamos que foi este facto que fez com que, em momento inoportuno e sem consciência do erro, a 18 de Setembro de 2013, o Secretário Permanente do Distrito (SPD) tenha ido à aldeia de Quitupo, na companhia de representantes da Impacto, Lda e da Anadarko, comunicar, alto e em bom som, que “estamos aqui para informar que o governo e a empresa decidiram que a comunidade de Quitupo tem de ser reassentada para a implantação do projecto, e a empresa vai explicar como é que o processo de reassentamento vai acontecer…”.
Perante a insistência dos membros da comunidade em receber esclarecimentos sobre a razão pela qual a fábrica não poderia co-existir com a aldeia, o SPD respondeu, exasperado, que “a decisão já foi tomada e terão de sair quer queiram quer não!”. Estas afirmações revelaram que, por um lado, os técnicos do Distrito não compreendem os vários processos de licenciamento, nem tão pouco a interligação entre os mesmos. O CTV participou nesse encontro e tem o registo do mesmo para quem queira ver e ouvir por si próprio.
b) Falta de uma estratégia de comunicação adequada, tanto da Administração como das empresas. É muito preocupante a falta de uma estratégia de comunicação que permita compreender as informações que a cada momento devem ser passadas para o público, especialmente para as comunidades afectadas.Tanto quanto entendemos, e isto foi confirmado várias vezes pelo MICOA, a decisão sobre reassentamento ainda não foi tomada, simplesmente porque ainda não foi concluído o processo que poderá permitir ao governo tomar tal decisão. Então, a pergunta é: porque será que o governo provincial e distrital não pára de ir à aldeia de Quitupo, e de anunciar o inicio do processo de reassentamento, quando, de facto, a única coisa que pode acontecer legalmente neste momento, é o levantamento de dados sócio-económicos para a produção do Plano de Reassentamento que ainda deve passar por várias consultas públicas antes que a decisão sobre se vai ou não haver reassentamento seja tomada?
A informação sobre o assunto do reassentamento foi até aqui gerida da pior maneira possível, facto injustificado e absolutamente inaceitável, especialmente quando se tenta impedir que as comunidades recebam esclarecimentos sobre um assunto que abalou profundamente as suas vidas. Na aldeia de Quitupo, a escola ruiu, mas ninguém se interessa em reconstruí-la porque “dizem que vamos ser reassentados”. As casas dos aldeões estão, muitas delas, em degradação, e nada se faz porque “dizem que vamos ser reassentados”. Nas machambas, o trabalho decorre a meio gás, e as mulheres dizem que há meses que não conseguem dormir“porque não sabemos quando vamos ter de sair”….. Isto não é justo!
c) Falta de preparação das comunidades. A iniciativa do CTV e doutras OSCs de esclarecer aspectos legais e preparar as comunidades para os processos de licenciamento tem sido muito mal recebida pelo governo, por razões que ainda não conseguimos entender. Também não conseguimos entender como é que o MICOA continua distante e sem controlo efectivo dos processos. Em vez do MICOA, quem está a desdobrar-se em esforços de comunicação com as comunidades é a Policia, mas com objectivos diferentes do fornecimento de esclarecimentos.
A Polícia está determinada a silenciar e intimidar, a afastar da comunidade todas as pessoas e organizações que as possam apoiar e esclarecer, e a assegurar que a empresa continue a fazer corta-matos aos procedimentos legais. Existe muita pressa por parte da empresa em obter a licença ambiental, prevendo inclusivamente que isso aconteça até ao fim de 2013 ou inícios de 2014. No entanto, é importante que se esclareça que se o processo do reassentamento for minimamente bem conduzido, esta licença dificilmente poderá ser obtida em menos de 12 meses, tal como afirmaram os próprios consultores da empresa afectos ao processo. A menos que o MICOA abra mais exceções.
d) Resistência no uso de Instrumentos de Gestão Ambiental e de Terras. A legislação do Ambiente e do Planeamento e Ordenamento do Território indicam e destacam alguns instrumentos concebidos para assegurar o desenvolvimento sustentável, com destaque para os planos de uso da terra. Entre nós levantam-se dúvidas sobre a maneira como estes instrumentos estão a ser usados para informar, atempadamente, os processos de licenciamento e para prevenir e minimizar conflitos entre os diferentes sectores e interesses sociais e económicos.
Em que medida é que estes instrumentos foram produzidos, considerados e usados no licenciamento do projecto de Palma? Estamos há 8 meses tentando perceber qual o ponto de situação do Plano de Uso da Terra do Distrito de Palma que, no início do ano, nos disseram que estava em fase de finalização. Não conseguimos até aqui obter resposta ao pedido de esclarecimentos sobre o processo que foi e/ou está sendo seguido para a sua elaboração, nem sobre o papel do Plano na orientação das decisões sobre o local de implantação das infraestruturas dos projectos de gás. Suspeitamos que se trata de um plano que, quando for aprovado, não terá outra opção senão acomodar a realidade do terreno, em termos de ocupação de terras, ao invés de orientá-la.
O governo do Distrito comentou, no início do ano, que estava muito preocupado com a demora na finalização do plano por parte do MICOA pois não tinha uma base para decidir sobre os milhares de pedidos de ocupação de terras recebidos como resultado da existência do projecto de gás.Em nosso entender, o Plano de Uso da Terra facilitaria em grande medida a tomada de decisões sobre onde implantar as infraestruturas dos projectos de hidrocarbonetos e outros interesses económicos e sociais. A previsão de ocupação das terras das comunidades circunvizinhas à de Quitupo, numa área de 18,000ha, para a construção de uma cidadela industrial associada aos projectos de gás, com possível reassentamento dessas comunidades, segundo comentários de técnicos da ENH, só nos pode fazer prever que a confusão está apenas no início. A ENH afirma que essas comunidades terão de ser reassentadas porque “nunca terão qualificações técnicas para se integrarem na dinâmica que será criada na área, por isso terão de sair….”
O que significa isto? Vamos começar a construir guetos para os “externos e estrangeiros”, afastando os ocupantes originários simplesmente porque são camponeses e pescadores? Camponeses e pescadores que sempre viveram naquela região, vão deixar de lá poder continuar porque não têm “perfil” para viver em cidades modernas? Vindo da boca de assessores do governo, estas afirmações levam-nos a perguntar se o colono regressou disfarçado de agente governamental…..
Quanto a nós, e até prova em contrário, não existe qualquer justificação da necessidade de reassentar, nem os aldeões de Quitupo, muito menos os ocupantes da área pretendida para a edificação de uma cidadela industrial. É perfeitamente possível e recomendável que estas pessoas sejam mantidas nas suas áreas e integradas nos assentamentos urbanos que eventualmente serão erguidos. Depois de conhecidos os detalhes das infraestruturas, em termos de dimensão e necessidade de terra, a prioridade da ocupação dos espaços previstos para habitação moderna e convencional, deverá ser dada às pessoas locais. Se os trabalhadores da Anadarko e ENI podem residir na zona, porque será que os locais têm de sair?
Vamos permitir isto? Defendemos a integração e priorização dos locais, tanto na sua preparação técnica para o aproveitamento das oportunidades de negócios que os projectos estão e continuarão a criar, como para a elevação das suas condições de vida, mantendo a coesão e estabilidade social necessárias para o seu desenvolvimento equilibrado. Continuaremos a desafiar a Anadarko e a ENI a aproveitarem a oportunidade que ainda existe de serem projectos de referência em termos de boas práticas e boa governação ambiental, social e económica. Ao nosso governo, só nos resta esperar que tome a liderança na correcção dos erros cometidos para que os seus discursos sobre combate à pobreza, promoção do desenvolvimento rural e proteção das comunidades rurais, não continuem a ser contrariados por exibições de fraudes, burlas e coação.
4. Modelo de desenvolvimento, democracia e justiça
Infelizmente o caso de Palma não é o único onde agentes do governo lideram processos de tomada de decisão em moldes que prejudicam as populações. Sem educação e acesso à informação, as pessoas do campo são tratadas como inexistentes, sem caras, sem voz, sem espaço e sem opinião. Porque são pobres e analfabetas diz-se, com desprezo, como ouvimos o Comandante da Polícia de Palma dizer “as comunidades são como crianças”, pelo que não há necessidade de consultá-las, ou então que “as comunidades dizem uma coisa hoje e amanhã esquecem-se do que disseram”. Será mesmo? É que, para nós, os membros dessas comunidades são como os nossos pais, as nossas tias e os nossos avós, e sempre que pensamos nestas pessoas vemos tudo menos pessoas ignorantes e estúpidas. Vemos tudo menos pessoas que não percebam os assuntos. Vemos tudo menos pessoas amnésicas que se possam esquecer da notícia de que amanhã poderão acordar sem casa…Quem se esqueceria de uma notícia como esta?
Este e outros casos levam-nos muitas vezes a questionarmo-nos sobre o modelo de desenvolvimento que estamos a seguir, sobre a nossa própria identidade e sobre a nossa noção de democracia. Quando violentamos as nossas comunidades rurais sem quaisquer escrúpulos, por interesses individuais e externos, que auto-estima estamos a cultivar e demonstrar? Quando impedimos as ONGs nacionais de realizarem livremente as suas actividades, que democracia e inclusão estamos a praticar? Quando impedimos que pessoas afectadas por projectos manifestem as suas preocupações e exijam os seus direitos, a que povo estamos a servir?
5. A Polícia como instrumento de intimidação e coação
Como resultado da divulgação de informação e capacitação sobre legislação ambiental e gestão de recursos naturais realizada pelo CTV junto das comunidades da Península de Afungi, estas comunidades passaram a ser interlocutores minimamente informados e activos nos encontros com o governo e com a empresa. Este facto está a desagradar profundamente todos os níveis do governo, assim como a empresa Anadarko, que reclama que “antes as comunidades não levantavam nenhuma questão e estavam satisfeitas com o projecto mas, de repente, estão a levantar questões e a mostrar muita resistência à nossa presença”.
É por isso que o Comandante da Polícia do Distrito de Palma, que apesar de ter afirmado veementemente na presença de membros da Plataforma da Sociedade Civil sobre Recursos Naturais e Industria Extractiva, no dia 18 de Setembro, que é uma polícia de todos os cidadãos, parece ter assumido a missão exclusiva de assegurar que os investidores não sejam incomodados e que o processo do licenciamento dos seus projectos corra com a maior celeridade e menor perturbação possível, ainda que isso implique atropelos à lei.
De facto, a polícia local não só mantém uma presença quase diária nas aldeias, liderando encontros de mobilização das comunidades a favor dos projectos de gás, como também se desdobra em notificações e interrogatórios a membros das ONGs, a quem inclusivamente proíbe de realizar as suas actividades. De quê é que as empresas têm medo para precisarem de escolta policial para circularem nas áreas das comunidades onde não há qualquer sinal de desordem ou violência? De quê é que o governo distrital tem medo, para impedir que as comunidades sejam preparadas para participarem nas consultas de forma informada?
Apesar das ameaças mal disfarçadas, incluindo ameaças contra a integridade física da sua DG, o Centro Terra Viva mantém-se determinado a prosseguir com as suas actividades de divulgação de legislação e assessoria jurídica às comunidades rurais, em Palma e noutros pontos do país, e a denunciar irregularidades sempre que isso seja detectado.
Sempre estivemos e continuaremos também interessados e dispostos a registar, reconhecer e publicitar casos de boas práticas na atracção e implementação de projectos de investimentos em áreas comunitárias, infelizmente ainda muito raros entre nós. Em conjunto com outras ONGs, especialmente no âmbito da Plataforma da Sociedade Civil sobre Recursos Naturais e Indústria Extractiva, continuaremos a procurar dar o nosso contributo para que os projectos de investimento nacional ou estrangeiro sejam concebidos, licenciados e implementados com respeito pela legislação nacional, e priorizando o interesse nacional.
Os cidadãos deste país são a maior riqueza que ele possui e o respeito pelos seus direitos é uma obrigação legal e moral. Por isso, recorreremos a todas as instâncias competentes para assegurar que tal aconteça, e para que a legalidade e a justiça prevaleçam. O Gabinete Jurídico do CTV pode ser contactado através do número 823002496, pelo email ctv@tvcabo.co.mz, pelo número fixo 21416131, ou pelo fax 21416134.
Escrito por Alda Salomão,Jurista Ambiental e Directora Geral do Centro Terra Viva