Dez anos depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001 nos Estados Unidos de América, nos quais sucumbiram três mil pessoas, um conjunto de artistas moçambicanos “paralisou” a cidade de Maputo para reflectir em volta da precariedade que o incidente nas terras do “Tio Sam” pôs a nu relativamente ao resto do mundo.
Em 2009, um conjunto de artistas moçambicanos – que se dedica às mais variadas manifestações artísticas e culturais – transformou a Avenida Samora Machel, em Maputo, numa “Aldeia Cultural” para, ao abrigo do projecto com a mesma designação, promover a arte pública.
No ano seguinte, outro grupo de fazedores de arte e cultura constituído por Gonçalo Mabunda, Tina Mucavel e Mauro Pinto transformou a casa do primeiro num receptáculo da mostra de arte “Karl Marx 1834”.
“Esta abertura da sua casa, a sua intimidade”, para acolher a mostra de artes, “já denunciava alguma precariedade da cidade de Maputo, em termos de espaços convencionais, para acolher os artistas”, ao mesmo tempo que denunciava alguma preocupação, por parte dos artistas, em colocar a arte ao dispor do público. Daí a emergência “da imaginação para colmatar tal vazio”, afi rma Elisa Santos, a mentora do projecto “Ocupações Temporárias” ao qual nos dois últimos anos se dedica de corpo e alma.
No ano passado, o “Ocupações Temporárias” decorreu sob o mote “Património”. A observar a segunda edição – presentemente – é sob a epígrafe “Precariedade” que a iniciativa (iniciada no domingo passado) decorre até Outubro.
Este ano surgiu a oportunidade de associar “Ocupações Temporárias” a um momento “inolvidável da história contemporânea da humanidade”, explica Elisa referindo-se aos atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos. Mas é preciso perceber que não se trata da celebração daquele acontecimento. Pelo contrário, é uma chamada de atenção para a reflexão sobre o que acontece no período posterior porque “há um mundo, uma estrutura e uma consciência pós – 11 de Setembro”, realça.
É acerca dos tópicos acima expostos – as obras de arte, os artistas, os espaços sociais temporariamente ocupados pela arte (pelo menos até o próximo mês), a ligação do evento com os EUA, entre outros factos – que muito recentemente conversámos com a mentora e coordenadora do projecto “Ocupações Temporárias”, Elisa Santos. Sem tencionar ser desagradável e tão-pouco extremista, ela prova em conversa que “o mundo vive um clima de precariedade global e omnipresente”.
Uma triangulação inevitável
Ao desafiar os artistas para a II edição de “Ocupações Temporárias”, Elisa Santos não se propunha necessariamente a resolver/suavizar a exiguidade de espaços convencionais para realizar uma mostra de arte. Mas, antes, intentava promover uma relação entre a arte contemporânea moçambicana, os artistas e o público, bem como a apropriação dos mesmos em Maputo.
Ainda que Maputo seja uma urbe interessante, pelo menos no aspecto arquitectónico, “parecia que os maputenses não conheciam muito bem a cidade e o potencial arquitectural que possui”, afirma.
Sucede daí que esta triangulação entre o espaço, público, a obra de arte e o reconhecimento do património arquitectónico, por um lado, e do património obra de arte contemporânea, por outro, fundamenta a criação de “Ocupações Temporárias” edição 2011.
Segundo Elisa, a ideia de “Ocupações Temporárias” não é (necessariamente) explorar os espaços formais para a apresentação de obras de arte, mas explorar elementos contidos neles e associá-los às ideias da arte contemporânea.
Do facto deriva, por exemplo, que este ano “vamos utilizar o Museu da Anatomia da Faculdade de Medicina (que é um museu técnico ligado à academia e não à mostra de obras de arte) bem como a sala do Cinema Scala que é o único espaço convencionalmente criado para receber mostras de arte.
Isto equivale a afirmar que “continuamos com a pretensão de ocupar temporariamente os espaços não formais de apresentação de obras de arte”. E, por via disso, “promover arte pública, esta triangulação, conforme disse antes, entre os artistas, a obra de arte – que é o seu produto – e o público, porque nenhum artista produz para si”.
Para Elisa, o artista tem “uma necessidade quase narcísica de mostrar o seu produto e de ser admirado”. Por isso, “deve haver uma relação com o público, ou seja, a arte só existe se ela for pública”.
Despertar a arte hibernada na alma
No entanto, ainda que, a ocupação de espaços públicos – para fazer arte ou qualquer outra actividade cultural – não seja nenhuma inovação, pelo menos em Maputo, o “Ocupações Temporárias” não deixa de ser um conceito novo de concepção de arte. “Uma adaptação, uma recriação, uma absorção” que imediatamente nos recordou o conceito de “Arte Pública”.
Ademais, se se considerar que não é sempre que se tem “Arte Pública”, em Maputo – facto que origina algum afastamento entre esta e o público –, que transformações se poderão operar na componente relacional entre a arte e o público a partir desta iniciativa?
Sobre a questão, Elisa Santos revela-se céptica. Não acredita em transformações rápidas. Até porque tem um bom princípio: “Ninguém gosta de mudar, de adquirir novos hábitos, de abandonar as suas rotinas. E quando se fala das massas, se quisermos operar transformações bruscas, a única opção é um marketing brutal – mas não é o que estamos a fazer neste caso. Então, temos que ter paciência”.
No entanto, porque há uma compreensão segundo a qual, ainda que em pequenas ou grandes dosagens, o ser humano possui um lado artístico hibernado em si, “espera-se que as pessoas se sintam tocadas”. Por exemplo, a instalação da Faculdade de Medicina vai tocar um público mais académico que é a comunidade da Faculdade da Medicina – docentes, discentes e funcionários em geral.
Camila de Sousa, também mentora da mostra, espera que, a partir da instalação fotográfica na Faculdade de Medicina, os estudantes se tornem amantes da arte. “O mais importante é que eles ganhem uma proximidade com o objecto artístico, que se questionem sobre a arte, recolhendo sensações positivas de modo que possam visitar as futuras mostras”, diz.
Gerar um “boca a boca”
Elisa Santos afirma que o que se pretende é o surgimento de um “boca a boca”, e que o factor acaso seja potenciador de visitas. Afinal, “quando, através dos jornalistas, dizemos ao público que há uma rede de cinco exposições individuais, temos em mente que haverá pessoas que serão surpreendidas por uma exposição”.
O que não se deve ter são ilusões como, por exemplo, acreditar que “as pessoas (que viajam da cidade de Maputo para Matola e vendo um mural de 200 metros que Shot-B fez na Praça da OUA) passem, por esse motivo, a visitar o Museu Nacional de Arte”, diz.
A ideia da precariedade
O conceito de precariedade surge em volta de um clima – de instabilidade – global. A economia do mundo está numa situação absolutamente precária, em que não há garantia nenhuma de estabilidade. Por exemplo, a economia norte- americana, a supostamente muito forte, há um mês estava à beira da ruptura. Isto é precário.
“A situação envolve-nos em termos de aldeia global, mas também individualmente como pessoas, por meio de um emprego precário, da insegurança de andar nas ruas, as patologias. Tudo isso é uma precariedade omnipresente”, afirma.
E relativamente à questão do emprego, vale a pena realçar que há uma ocupação em volta do tema. Designado “Ocupações”, a obra de autoria de Filipe Branquinho retrata o trabalho, extravasando os limites da precariedade que deriva da sua natureza, “quer seja o ambiente laboral, as condições do labor, associando-se à questão da dignidade humana”. Ou seja, “eu posso ter um trabalho precário, mas não tenho a obrigação de ser digno”.
Por outro lado, a ideia da saúde, por exemplo, está intimamente ligada à questão da precariedade. “Eu, hoje, estou bem. Amanhã posso estar profundamente doente. A minha vida não está segura. A coisa mais certa que tenho é que eu vou morrer. E ninguém me garante quando. O sentido da vida é absolutamente frágil”, diz.
Esta passividade, no sentido positivo, do povo moçambicano é uma coisa frágil. Isto nota-se, a título de ilustração, “quando um líder político moçambicano ameaça reunir tropas e, em determinada província do país, iniciar um processo de luta armada.
Pode ocorrer que algumas pessoas não dêem crédito a isto. O facto é que há uma ameaça que nos torna frágeis. Por mais que se desvalorize esta ameaça, ela existe. Quando propus a ideia da precariedade, propu-la em vários contextos e dimensões”, assegura.
11 de Setembro, Estados Unidos vs Moçambique
O facto de a II edição de “Ocupações Temporárias” ter sido inaugurada no dia em que se celebra a passagens de 10 anos dos atentados terroristas nos Estados Unidos, por um lado, e decorrer sob o mote de “Precariedade”, por outro, podia espevitar qualquer pessoa a questionar a relação que existe com Moçambique.
Como tal, questionámos Elisa Santos, autora intelectual de “Ocupações Temporárias” e proponente do mote “Precariedade” para o evento, sobre o que fundamenta esta forma de pensar.
O facto é que, como afirma Elisa, a problemática do barão de droga – que em Moçambique se propala nos jornais – e a questão sobre quem é que define a segurança, a ética no mundo (…), por exemplo, são aspectos que têm alguma relação com o que aconteceu no dia 11 de Setembro de 2001.
Os Estados Unidos irradiam para todo o mundo. “Os Estados Unidos eram, no meu ponto de vista, a meca da segurança mundial. Eles eram invioláveis, super- seguros, com alta tecnologia e deixaram de o ser. Eles próprios tornaram-se vulneráveis”, afirma e acrescenta:
“O problema da pirataria no Oceano Índico e do Al Qaeda estar ao lado do continente africano – associado a todos os problemas contemporâneos da humanidade – dá-nos alguma noção da globalidade, de que somos todos vizinhos, somos uma aldeia, de facto”. Então, “torna- -se difícil pensar que isto ou aquilo é, apenas, problema dos americanos”.
Ocupações: artistas, experiências e perspectivas
No ano passado, o projecto “Ocupações Temporárias” decorreu sob o mote “Património”. Neste (2011), o mesmo une cinco artistas das mais variadas disciplinas culturais. Trata-se do músico moçambicano Edson da Luz (Azagaia), da antropóloga visual Camila de Sousa, do ficcionista Jorge Fernandes, bem como do artista visual Bruno Mateus (Shot- -B).
Nas suas variadas intervenções, os artistas colocam em haste o melhor da arte contemporânea moçambicana ao dispor de todo o tipo de público, bem como a sua compreensão sobre a precariedade.
Sobre a sua experiência, Elisa Santos, que trabalhou directamente com os artistas, os diversos segmentos – locais ou instituições – da cidade de Maputo para que, mais uma vez, a iniciativa se tornasse realidade, reporta:
“Foi muito interessante acompanhar os artistas a fazerem a leitura do tema precariedade. Tenho um gozo em relação, ao assistir, ao processo da criação das ocupações. Este ano, o grupo de artistas não tinha um elo tão forte, ainda que se conhecesse superficialmente. O resultado em intercalar as ocupações é a possibilidade de os artistas se encontrarem e criarem uma plataforma invisível de discussão, intercâmbio e de solidariedade através da arte”, realça.
No entanto, além da criação de uma plataforma artística que possibilite uma série de discussões salutares em volta da vida social, do património que nos rodeia e do qual poucas vezes conferimos a merecida atenção, “Ocupações Temporárias” tem o mérito de “dar perspectivas aos estudantes de arte sobre a actividade a que no fim da formação se irão dedicar profissionalmente sem que seja necessário possuir um modelo clássico e fechado da galeria ou do museu para intervir”, finaliza.