As forças de defesa e segurança moçambicanas cometerem vários crimes e violações de direitos humanos contra populações locais, na região central de Moçambique, ao longo do ano passado, revelam testemunhos recolhidos por um trabalho de investigação jornalística, iniciado em outubro de 2015, e que é financiado pelo Fundo Europeu para Jornalismo de Investigação (Journalismfund.eu).
O presente trabalho de investigação vem assim contrariar o discurso oficial do Governo da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), partido no poder, que tem vindo a responsabilizar, única e exclusivamente, os homens armados da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), maior partido da oposição, pelos ataques praticados contra a população civil. Reforça ainda – através de depoimentos e evidências recolhidas no terreno – a suspeita de que forças governamentais tenham estado por detrás da última tentativa de assassinato do líder histórico da Renamo, Afonso Dhlakama, ocorrida em setembro de 2015, perto de Chimoio, província de Manica.
A situação em Moçambique é tensa. Nas últimas semanas, o país tem conhecido uma escalada de violência política entre as forças de segurança e defesa e os homens armados da Renamo, com relatos de confrontos militares e denúncias de raptos e homicídios de membros das duas partes.
A primeira parte desta investigação, que aqui publicamos, foi iniciada em outubro do ano passado, com o intuito de verificar a veracidade dos relatos que davam conta de graves crimes e violações de direitos humanos contra a população civil moçambicana, designadamente alegações de execuções sumárias, violações, tortura e outros abusos de poder.
Os jornalistas envolvidos neste trabalho visitaram alguns dos principais palcos de confronto entre as duas partes beligerantes, no centro de Moçambique, designadamente Zimpinga, Posto Administrativo de Sabe, Rapouso e Gorongoza, onde ouviram inúmeros relatos e procuram dar voz as populações afetadas.
Isto numa altura em que as tensões entre as duas partes beligerantes aumentavam diariamente e os confrontos armado, na região central de Moçambique, se intensificavam – e quando começaram também a circular suspeitas – nunca confirmadas – de que existiria um suposto plano secreto para matar Afonso Dhlakama, bem como uma ofensiva militar para desarmar os guerrilheiros da Renamo à força – acusações que a Frelimo, partido no poder, sempre desmentiu.
Os incidentes da Estrada Nacional nº6
Moçambique vive sob o espetro de uma nova guerra devido às ameaças da Renamo em governar pela força nas seis províncias (de um total de 11) onde diz ter ganho as eleições gerais de 15 Outubro de 2014. As duas partes beligerantes acusam-se mutuamente de violar o acordo de paz assinado pelo anterior chefe de Estado moçambicano, Amando Guebuza, e pelo líder da Renamo, Afonso Dhlakama, em Setembro de 2014.
Os confrontos entre os homens do maior partido da oposição e as forças governamentais têm vindo a intensificar-se substancialmente nos últimos meses, sobretudo na região central de Moçambique, zona de influencia da Renamo, tendo-se registado vários incidentes graves entre as partes beligerantes, três dos quais envolvendo diretamente o líder Afonso Dhlakama.
Os contornos do último ataque contra a comitiva automóvel do líder da Renamo, Afonso Dhlakama, ocorrido em setembro de 2015, quase um ano após as eleições, permanecem pouco claros. O maior partido da oposição atribui a tentativa de emboscada às forças de defesa e segurança – acusações refutadas pelo Governo da Frelimo e restantes autoridades, que, por sua vez, sustentam que foram os próprios homens da Renamo que provocaram o incidente ao abrirem fogo contra um “chapa 100″ (carrinha minibus), quando este tentava ultrapassar a comitiva.
O que é certo é que quase cinco meses após o ataque – que causou baixas dos dois lados, vitimou vários civis e agravou as tensões entre as partes beligerantes – não parece ainda existir qualquer relatório oficial ou uma investigação credível sobre o incidente – que permita ao povo moçambicano saber o que de facto se passou a 25 de Setembro de 2015.
As duas partes beligerantes continuam a insistir nas respectivas versões, sendo que aquela que é veiculada pelo Governo da Frelimo e pelos responsáveis das forças de defesa e segurança é a que mais aparenta divergir dos relatos que o presente trabalho de investigação recolheu, in loco, junto de habitantes da zona e de outras testemunhas que presenciaram o ataque na Estrada Nacional nº6 (EN6).
A maioria dos testemunhos ouvidos vêm não só contrariar vários elementos-chave da versão defendida pelo partido no poder, e amplamente propagada pelos órgãos de comunicação estatais, como também reforçar as suspeitas que foram as forças governamentais os autores do ataque contra a comitiva da Renamo.
Vários dos entrevistados que testemunharam o incidente explicaram que o ataque foi levado a cabo do alto de uma colina próxima, onde elementos das forças governamentais á civil ter-se-ão previamente posicionado à espera da comitiva da Renamo, que vinha de um comício nos arredores da cidade de Chimoio e estava à caminho de Quelimane.
Duas semanas após o incidente ainda se encontravam espalhados à volta do local restos de munições e de outros materiais militares utilizados na emboscada, designadamente cápsulas vazias de armamento ligeiro e pesado (estas últimas, aparentando ser de um lançador de granadas impulsionado por foguete RPG-7), caixas de papelão de cor verde, vazias com a insígnia “Forças Armadas da Defesa de Moçambique” – restos de rações alimentares e fogões de acampamento portáteis.
Do alto da colina, com pouco mais de 30 metros de altura e vista privilegiada sob o troço da EN6, também era ainda possível avistar vários veículos carbonizados mesmo junto à estrada.
Espalhados pelo local também terão sido encontrados uniformes da Polícia da República de Moçambique (PRM) e coletes à prova de bala– que, de acordo os moradores entrevistados, acabaram por ser recolhidos por elementos da polícia. Esta informação, contudo, não pode ser confirmada pela presente investigação.
Um morador, que não quis ser identificado, contou que dias antes da emboscada viu um carro da polícia a subir a colina de onde os primeiros tiros contra a comitiva da Renamo terão sido disparados.
Outras testemunhas ouvidas no local corroboram essa informação. Relatam que momentos antes de se ouvirem os primeiros tiros – carros com forças governamentais foram vistos a circular nas proximidades do local da emboscada (como também foi veiculado pela DW África), dando a entender assim, que se pode ter tratado de um ataque organizado e previamente planeado.
Nelson, um jovem de 19 anos, que foi surpreendido por várias rajadas de tiros enquanto caçava ratos nos arredores da colina, conta que foi obrigado a esconder-se na mata, onde permaneceu durante várias horas.
Foi ali que ele e os seus amigos presenciaram uma longa e intensa troca de tiros – que segundo vários testemunhos ter-se-á iniciado por volta das 11:00 da manhã e durado aproximadamente entre três a quatro horas. Já de madrugada, por volta das 02:00 da manhã, Nelson e os amigos relataram ter visto um “clarão de fogo”, vindo da direção do local onde os veículos da Renamo foram alvejados.
Quando, na manhã seguinte, os jovens se dirigiram ao local, encontraram várias viaturas carbonizadas à beira da estrada. Veículos esses que, segundo referem os jovens, terão sido incendiados pelas forças governamentais que chegaram posteriormente ao local, contrariando assim a informação veiculada pelas autoridades de que teriam sido populares em fúria a pegar-lhes fogo.
Relatos de abusos e crimes no centro de Moçambique
O líder da Renamo, Afonso Dhlakama fugiu do local para a zona rural circundante, onde, na própria noite do ataque, bem como nos dias seguintes, se continuaram a registar vários confrontos, de acordo com várias fontes locais.
Moradores das aldeias vizinhas relataram o pânico vivido quando se aperceberam do soar das armas nas proximidades das suas casas. Muitos preferiram esconder-se nas matas durante toda a noite.
Um grupo de homens em Chicaca, por sua vez, acrescentou que ao aperceberem-se da chegada de várias viaturas carregadas de agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR), foram inúmeros os moradores que decidiram percorrer vários quilómetros e fugir rumo aos centros urbanos mais próximos, designadamente para Gondola e Inchope.
“Quando os membros da FIR chegaram não quiserem saber – limitaram-se a bater nas pessoas e a disparar contra as casas. A única coisa que queriam saber era onde estava o chefe [da Renamo]”, contou Bernabe Limpo, 18anos, uma das pessoas entrevistadas em Chicaca, enquanto mostrava a casa do seu vizinho Alberto, atingida por uma granada.
Várias testemunhas ouvidas no mesmo local contaram que elementos das forças de segurança e defesa fizeram da escola primária de Chicaca a sua base, acabando por ocupá-la durante mais de duas semanas – em clara violação das convenções internacionais assinadas pelo Estado moçambicano.
Homens e mulheres, habitantes Chicaca, queixaram-se ainda de vários roubos e assaltos a mão-armada feitos, alegadamente c por elementos das forças governamentais que passavam pela zona.
As autoridades moçambicanas, por sua vez, negam qualquer abuso de poder ou violação de direitos humanos por parte das tropas governamentais, e responsabilizam os homens da Renamo pelo início dos confrontos na zona – e de terem sido eles a intimidarem as populações locais.
Ao longo da investigação levada a cabo em Sabe, Zimpinga, Muxúnguè, Gorongosa e Morrumbala, contudo, a maioria dos testemunhos recolhidos atribuiu a autoria da violência e dos crimes às forças de segurança e defesa de Moçambique – e não aos guerrilheiros da Renamo.
Esses testemunhos são sustentados por uma outra investigação, também ela independente, levada a cabo, em Muxúnguè, pela Liga dos Direitos Humanos (LDH), em 2014. A organização não-governamental moçambicana fala em “provas concretas” e aponta o dedo às forças governamentais que acusa de serem culpadas de inúmeras violações de jovens e mulheres, e de uma série de homicídios e execuções á margem da lei.
O relatório da LDH ainda não foi tornado público por falta de fundos e preocupações de segurança, contudo, a presente investigação entrevistou alguns dos seus autores e teve acesso ao documento.
Recentemente, a 23 de fevereiro de 2016, também a organização internacional de defesa dos direitos humanos – Human Rights Watch (HRW)) instou o Governo de Moçambique a investigar “com urgência” alegados abusos cometidos pelo exército na província de Tete, no centro de Moçambique.
“O Governo de Moçambique deve investigar com urgência as alegações de execuções sumárias, abusos sexuais e maus-tratos por parte das suas forças armadas na província de Tete”, refere o comunicado da organização de defesa dos direitos humanos.
“O exército de Moçambique não pode usar a desculpa de desarmar as milícias da RENAMO para cometer abusos contra as mesmas ou contra os residentes locais”, acrescenta a mesma nota, e insta o Governo moçambicano a “iniciar, com urgência, uma investigação às alegações de abusos” e garantir que “as operações de desarmamento” dos guerrilheiros da Renamo sejam “conduzidas de acordo com a lei”.
Do outro lado da fronteira
Os testemunhos recolhidos nas várias províncias da região centro de Moçambique batem certo com a maioria dos testemunhos que esta investigação escutou nos campos de refugiados de Luwani (entretanto fechado) e campos situados na aldeia de Kapise, no Malawi, onde milhares de cidadãos moçambicanos – fugidos dos combates e da violência nas suas terras – vivem amontoados e em condições desumanas.
Serão já mais de 6.000 os moçambicanos, na sua maioria mulheres e crianças, que desde meados de dezembro de 2015 procuraram refugio do outro lado da fronteira, segundo números divulgados a 18 de fevereiro pelo Alto Comissariado das Nações Unidos para os Refugiados (ACNUR).
E o número dos moçambicanos que se refugiam no país vizinho – em fuga do conflito político-militar – tem vindo a aumentar de forma significativa nas últimas semanas, garantem o ACNUR e outras organizações internacionais presentes no local, designadamente os Médicos Sem Fronteiras (MSF) e o Programa Alimentar Mundial (PAM).
Aquando da nossa visita ao campo de Luwani falamos com Verniz José João Algundias. Na altura a trabalhar como chefe do campo, este moçambicano de 32 anos contou que, em agosto de 2015, viu tropas do governo a chegar a sua vila em Ndande, Moatize, à procura de guerrilheiros da Renamo.
“Quando a polícia da Frelimo não encontra tropas da Renamo, nem armas de fogo, eles vão ter com a população para maltratar, disparar… Quem não tiver sorte e conseguir fugir a tempo morre. Eu assisti a tudo isso na minha aldeia”, contou Algundias, visivelmente abalado. Natural de Ndande, explica que se viu obrigado a fugir da sua terra depois de as forças governamentais terem atacado novamente a sua vila, onde suspeitavam que os populares estivessem a albergar e a oferecer mantimentos aos homens armados da Renamo.
“Eles queimaram 16 casas de uma só vez. Dias depois, voltaram e queimaram o que restava – o que estávamos a tentar reconstruir. Não temos nada que nos oferece garantia para voltar à nossa terra! Se somos mortos pela nossa própria polícia, como é que podemos voltar – onde é que vamos reclamar?”, questionou na altura o jovem. Foi nesse momento que Algundias decidiu pegar na mãe e em dois irmãos menores, e deixar tudo para trás.
Enoque Salomone, também natural da mesma localidade, corroborou o testemunho de Algundias, acusando elementos das forças governamentais da autoria dos ataques em Nande. “Foi a Frelimo”, vincou. “Eles forçaram as pessoas a sair das suas casas, em seguida, atearam fogo. Seis pessoas foram queimadas até a morte”, acrescenta Paulo Inácio, moçambicano de 48 anos, com voz seca e sem sequer olhar para Enoque.
Já Ana-Maria António, mãe solteira de 24 anos e com quatro filhos menores, garante que os atacantes da sua aldeia estavam vestidos de uniforme cinzento, a Polícia de Proteção “ironicamente-intitulado cinzentinhos”.
Relatos de Morrumbala
De volta a território moçambicano, a presente investigação encontrou ainda várias pessoas deslocadas fugindo da violência em Sabe, a poucos quilómetros a sul da cidade de Morrumbala, na província da Zambézia.
À chegada, deparamo-nos com várias pessoas que voltavam dos seus esconderijos nas montanhas – para onde tinham fugido há quase uma semana para escapar aos fortes combates armados que, de repente, começaram a ser travados na região.
Após ouvir os seus testemunhos, dirigimo-nos ao governo local para falar com responsáveis. Fomos recebidos num gabinete pelo secretário permanente da administração do distrito de Morrumbala –que se escusou a revelar o seu nome.
Parco nas palavras, o responsável limitou-se a refutar que na zona tivessem existido quaisquer confrontos recentes entre as forças governamentais e a Renamo – contrariando assim os relatos dos populares. O dirigente local confirmou, contudo, a presença de um contingente das FDS na zona, alegando tratar-se de “meras manobras militares”.
Dias mais tarde, já na aldeia de Mucodza, próximo do Parque Nacional da Gorongosa, província de Sofala, Toni, um dos moto-taxista que trabalha na zona, contou que a fuga dos populares dos elementos da UIR se tem tornado numa reação habitual, sempre que estes aparecem num determinado local.
“Eles passaram por aqui há pouco tempo …. Sempre que os vemos chegar, escondemo-nos por medo, porque eles disparam contra tudo que tem vida”, desabafou Toni.
Ao seu lado, Agostinho Manuel, por sua vez, garante que várias casas na região foram queimadas com recurso de armas lança-chamas.
“Quando eles querem experimentar novas armas, eles vêm fazê-lo aqui! Apontam nas pessoas ou nas suas casas, sem qualquer razão aparente. Depois dizem que foi a Renamo”, vincou Agostinho Manuel, que se diz “decepcionado” com “tudo o que se está a passar em Moçambique”.
De acordo com a mesma fonte, a escalada de violência a que se tem vindo a assistir em Moçambique, aparenta estar a piorar com cada dia que passa. Este cidadão moçambicano teme que o agravamento “substancial” das confrontações, coloque Moçambique num “risco real” de sérias confrontações militares, pelo que pede “algum juízo” a todas as partes envolvidas.