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Os sobreviventes do matadouro

Os sobreviventes do matadouro

@Verdade levanta o véu dos bastidores do Matadouro Municipal de Nampula e constata que o local é mais do que um simples abatedouro de gado para consumo público. Até porque centenas de pessoas fazem do espaço um ponto de sobrevivência. Aqui, de segunda a sexta-feira, o trabalho é penoso, e é necessário mais do que força de vontade para ganhar o sustento diário.

Num passo estugado, Mildo Martins atravessa a estrada que separa os bairros de Mutauanha e Muatala, arredores da cidade de Nampula. Com uma enorme faca aguçada na mão direita que acompanha o seu movimento, caminha em direcção ao matadouro que se localiza de outro lado da rua. Esta tem sido a sua rotina, de segunda a domingo.

Todos os dias, quando sai de casa, pelas 7h00, Martins despede-se da sua mulher, mas nunca diz que vai para o trabalho. “Não tenho emprego, esta é uma simples ocupação que me permite obter algum dinheiro”, afirma. Ele tem apenas 18 anos de idade e já carrega uma (grande) responsabilidade: é chefe de um agregado familiar composto por três pessoas. “Tenho de garantir o sustento da minha família, pois ela depende só de mim”, comenta.

A sua ocupação é apascentar gado bovino. E aufere 100 meticais diários, independentemente da quantidade de bois. Aliás, sublinhe-se, não são todos os dias que tem a sorte de apanhar esse biscate. “Na maioria das vezes, consegue-se esse trabalho apenas aos fins-de-semana”, adianta. Quando não está a pastorear, ajuda na matança e, em troca, recebe gorduras do animal e pequenos pedaços de carne, o que lhe permite obter, por dia, em média, 200 meticais após a venda. “Às vezes, levou para casa para o consumo”.

Mas nem sempre foi assim. Martins começou por ser servente num talho durante dois anos (tempo que durou o seu contrato de trabalho), porém, sem opção e, muito menos, uma fonte de rendimento, recorreu ao matadouro. É neste espaço no qual passa o dia “vendendo” a sua força de trabalho em troca de pequenos pedaços de pele, carne e gorduras.

O caso de Mildo

Martins é apenas mais um num universo onde existem mais de mil e uma histórias de vida dos que lutam freneticamente pela sobrevivência. Aqui, o trabalho não pára Ainda são 7h00 da manhã. Um aglomerado de pessoas sobressai aos olhos no recinto das instalações onde, desde os tempos idos, funciona o matadouro público de Nampula. À primeira vista, parece um edifício abandonado. Mas, quando nos aproximamos, a dúvida quase desaparece, não fosse a presença humana no seu interior, uma vez que não passa de uma ruína.

No interior, um cheiro pútrido – uma mistura de sangue e dejectos de animais – invade as narinas, perante a indiferença de pouco mais de 20 pessoas que lá se encontram sobre um soalho manchado de sangue. São as únicas pessoas que sorriem, apesar do odor forte e desagradável, de causar náuseas.

Neste matadouro, o trabalho começa cedo e não tem horas para terminar, a não ser quando cumprida a meta: abater 20 cabeças de bois. A equipa de inspecção e fiscalização do Conselho Municipal de Nampula faz visitas constantes para averiguar se o limite é respeitado. “Antigamente, matava-se mais de 30 num só dia e isso era desgastante para os trabalhadores”, diz o fiscal.

Aliás, as tarefas não acabam após o abate dos animais, pois também é preciso pesar e levar a carne até às carrinhas de caixa aberta dos proprietários do produto. “Este é a parte mais difícil e desgastante, pois, ao fim do dia, chegamos a carregar mais de 200 quilos nas costas”, desabafa João*, cuja idade se vai mostrando um obstáculo para continuar a exercer a actividade.

Nas primeiras horas do dia, o labor inicial é limpar o “campo de matança”. Ostentando uniformes, de cor amarela, encardidos de sangue, e com dizeres “Conselho Municipal de Nampula” nas costas e botas pretas (galochas), os funcionários do matadouro preparam-se para mais uma (pesada) jornada. Não dispõem de máscaras e tão-pouco de luvas. Os únicos instrumentos de trabalho são machados e facas pontiagudas.

Uma missão quase impossível

Quando um animal é retirado do curral para a área da matança, geralmente cinco minutos é o tempo que leva para ser abatido. Mas nem sempre tem sido assim, pois, em alguns casos, devido à resistência do bicho, é preciso meia hora.

Com uma corda no pescoço, os bois são arrastados por um grupo constituído por cinco pessoas e amarrados num dos quatros pilares. Com facas afiadas, cada indivíduo espera que o animal se distraia e vai desferindo violentos e cruéis golpes na parte superior da cabeça. Todo o cuidado é pouco. O bicho torna-se mais agitado com os ferimentos. Entre uma facada e a outra, o boi muge, esperneia e tenta dar coices a quem se aproxima. Grita de dor. A cena repete-se sucessivamente, até o animal cair ofegante e inconsciente.

VÍDEO IMPRESSIONANTE DO “ASSASSÍNIO” DE UM BOI

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O animal é morto de acordo com o ritual islâmico. Ahona, um idoso que não se lembra a data em que nasceu mas aparenta mais de 70 anos de idade, faz o abate “halal”. De corpo curvado e ombros descaídos, perfura com a uma catana aguçada a garganta do bicho. E, em troca, no fim do dia, amealha pelo menos dois quilogramas de carne. Há muito tempo que tem vindo a ganhar a vida dessa maneira.

Não há muito tempo a perder, até porque ainda restam muitos bois por sacrificar. Entretanto, segue-se o esfolamento do animal. Em pouco menos de meia hora, o soalho fica banhado de sangue. O trabalho é feito de forma manual e arcaica. Os trabalhadores do matadouro são insuficientes. Apenas sete estão em serviço e, por isso, têm de contar com a ajuda dos jovens que procuram o sustento naquele lugar.

Equipados à sua maneira, na sua maioria usando calças e calções duplicados e com bolsos enormes, não se fazem de rogados, aproximam-se e já estão prontos para o que der e vier. A indumentária não é escolhida ao acaso. É estratégica, aliás, permite esconder pedaços de carne que desviam, quando ninguém está a vigiá-los.

Os roubos de algumas partes de carne são frequentes durante o esfolamento. Mas nem sempre a sorte está do lado de quem desvia, sobretudo quando se é apenas ajudante – que o diga Nino, o rapaz de 17 anos de idade (10 dos quais ganhando a vida no matadouro) que viu uma faca raspar-lhe o braço quando tentava esconder um pedaço de pele nas peúgas.

Pele, tripas, fígados e pulmões são as partes que os jovens mais surripiam. Alguns, muitas vezes, chegam a esconder nos excrementos de bois.

Assassinos cruéis

À saída de um talho com um saco de plástico contendo dois quilos de carne de vaca, Alberto Marques não imagina a crueldade por que passa o gado. “Acho que essa preocupação deve partir dos defensores de animais”, diz. Os animais são colocados num curral, uma espécie de espera, onde ficam por algumas horas. Neste local, percebe-se o nervosismo dos animais que mugem frenética e constantemente, como quem já antecipa o fim que lhe espera. Quando chega a hora do abate propriamente dito, o animal é puxado, com uma corda amarrada no pescoço, e um jovem começa a chicoteá-lo.

Ao entrar no “campo de matança”, o animal entra em pânico, uma vez que pode cheirar o sangue e os pedaços de carne dos animais que o antecederam. Inultilmente, tenta fugir dando saltos. Preso a um pilar, o boi já não consegue oferecer resistência. De uma facada a outra, golpeiam a sua cabeça, quebrando-lhe o crânio.

Os magos do matadouro

De estatura baixa e corpo robusto, João rende-se ao cansaço e senta-se no chão emporcalhado, passa a sua mão suja sobre o nariz e olha fixamente para os colegas que esfolam o animal. Não quer ser identificado porque, afirma, “temos de ter autorização do chefe para falar à imprensa”. Mas, depois de alguma insistência, aceita trocar um dedo de conversa na condição de anonimato.

Trabalha no matadouro há 31 anos. Uma vida inteira dedicada a esta actividade. Graças a ela, sustenta a sua família. Nunca soube fazer mais nada senão abater, esfolar e carregar nas costas carne de vaca. “Não vejo a hora de reformar”, diz.

Mas, quando pensa em abandonar aquele local, um misto de tristeza e preocupação toma conta dele. “Há 31 anos que não sei o que é comprar carne, pois sempre retiro, sem que o proprietário se aperceba, um pedacinho aqui e ali para o consumo e, às vezes, para vender”, revela e acrescenta: “não há aqui quem não tenha roubado um naco sequer. É assim que todos vivemos”.

Francisco Tarrua coordena a matança na ausência do seu superior hierárquico. Recusa-se a falar sobre o seu trabalho. “Só com autorização do chefe”, sublinha. De figura esguia, manca da perna esquerda, aparenta pouco mais de 60 anos de idade e carrega vários anos de experiência na área de abate de gado. O rosto enrugado não disfarça o cansaço, afinal, são mais de oito horas de trabalho árduo.

No matadouro há dois grupos de trabalhadores: os funcionários do Conselho Municipal e os indivíduos que procuram uma alternativa de sobrevivência trabalhando como ajudantes. Os primeiros já contam com uma certa idade, rondando os 50 e 60 anos de idade, mas ainda exibem a força de jovens na faixa etária entre 20 e 35. Os outros são um bando de rapazes votados ao desemprego.

Porém, para estes grupos de trabalhadores, o matadouro é a única fonte de renda das suas famílias. “Este é o nosso local de trabalho, o nosso serviço”. O trabalho no matadouro já ultrapassou algumas gerações.

Um mercado incomum

Deitadas no chão, e outras encostadas na parede, com panelas, bacias e baldes de plásticos, várias mulheres aguardam no recinto do matadouro para adquirirem partes como cabeça, pele, pulmões, tripas e fígados para fazer petisco e vender nas barracas em alguns mercados da periferia da cidade.

São 15h30. Alima Murima, de 28 anos de idade, espera que a porta que dá acesso à área da matança seja aberta. Chegou às 8h00 da manhã com o objectivo de comprar uma cabeça de vaca, mas, não satisfeita com o tamanho, optou por adquirir as tripas. “Não posso pagar 600 meticais por essa cabeça. É pequena demais e não terei lucro”, afirma.

É dona de uma barraca no bairro de Namutequeliua, arredores de cidade de Nampula. Há seis anos e meio que se dedica à venda de bebidas alcoólicas e, como ninguém, sabe da importância de um bom petisco. “Os clientes gostam de cabeça de vaca e tripas, e outros preferem a dobrada, mas o mais importante é não faltar um petisco”, diz.

À semelhança de Alima, também outras senhoras são movidas pelo mesmo espírito: a sobrevivência. Margarida Amade, de 30 anos de idade, vende petisco de tripas de boi na porta da sua casa e, às vezes, circula pelas barracas de Karrupeia, seu bairro.

O preço duma cabeça de vaca, dependendo do tamanho, varia entre 500 e 600 meticais, as tripas rondam entre 250 e 300 e a pele custa de 400 a 600. Geralmente, a margem de lucro dessas mulheres situa-se entre 200 e 350 meticais.

José*, de 33 anos de idade, gozando da boa relação que tem com os proprietários da carne, obtém aquelas porções a um preço especial no interior do matadouro e revende-as na porta para aquele grupo de mulheres, o que lhes permite uma margem de lucro que varia entre 50 e 150 meticais.

Esta tem sido a sua ocupação todos os dias. “Faço esse negócio para sustentar a minha família. Por dia, amealho pelo menos 500 meticais. Não tenho 25 mil ou 30 mil meticais para adquirir uma cabeça de boi para vender a carne, mas esse é o grande objectivo”, conta.

Entretanto, o grande negócio é feito pelos proprietários de gado que é vendido aos principais talhos da cidade, restaurantes e hotéis. Refira-se que a carne de vaca consumida um pouco por toda a província de Nampula é abatida naquele espaço sob tutela do Conselho Municipal. O preço cobrado pela matança é de apenas dois meticais o quilo.

Do lado de fora do matadouro, carrinhas de caixa aberta perfiladas carregam a mercadoria. Não há preocupação com a higiene e tão-pouco com a qualidade do transporte. Exposta ao sol e às moscas, a carne é apenas protegida por lonas.

Mas, quando parece que o dia terminou, começa outro negócio: o de pedaços de carne surripiados. O preço é acessível e, por essa razão, as pessoas que moram próximo do matadouro aguardam sempre por esse momento.

*Nomes fictícios

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