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Pandza: Olhar Profundo

O olhar profundo da nossa mãe atravessou a panela de água, as labaredas, as cinzas e infinitou-se chão abaixo, como se visse algo por dentro da crosta terrestre. Nunca entendi aquele olhar melancólico, cabisbaixo, como se todas as suas lembranças fossem rasteiras.

 

Era final de tarde, daqueles dias em que não se cozinha cedo, para não haver almoço para poder haver jantar. Com uma faca cortava algumas folhas e conversava com a fervura da água, esperando o timing certo para lhe acrescentar os ingredientes, ao mesmo tempo que a visão periférica policiava as nossas matreirices.

 

De cabeça caída quase até ao ombro, remexendo, com uma colher de pau, uma muito esperada refeição, a nossa mãe cantarolava em quase silêncio, sacudindo-se levemente para acalentar o bebé nas costas, ao compasso mudo dos cânticos. O bebé era o mais novo de nós, que à boleia do colo também cantarolava com o choro uma música lânguida e monótona, interrompida apenas para fungar e tossir.

A capulana que vestia servia de pega e segurava a panela quente. As folhas de couve começaram a transformar-se em makhôfu quando lhes acrescentou amendoin. A panela escurecida pelas chamas equilibrava-se sobre três pedras. Submissa, a lenha ardia paciente. A chama que a chamuscava bailava e parecia líquida. Ardia cínica, tal e qual o tempo, que lentamente nos queima, e faz de nós cinzas.

Quando a chama esmorecesse a nossa mãe avivava-a, ajustando a lenha e soprando-a para que a refeição se aprontasse logo, mas em vez da panela era o vazio nos nossos estômagos que fervilhava aos roncos.

Já sem ânimo para brincadeiras, assistíamos à nossa mãe em silêncio, um silêncio típico de quem, para suportar a fome, não quer desperdiçar energias nem salivas. Ela remava a colher de pau com gestos circulares e destreza inigualáveis. As folhas espumavam. Ela pousou a colher de pau sobre a panela, deixou-a entreaberta e foi ocupar-se duma das inúmeras tarefas domésticas que fazia em simultâneo. Nós aproveitámos para soprar a fogueira, acelerando o processo.

Numa das vezes um gesto desajeitado balançou a panela, mas velozes, prontifi cámo-nos a equilibrá-la. Até o cão, lá no canto, assustou-se com o lapso, e ganiu desesperado. Olhámos e apercebemo-nos da presença dele. Os seus olhos esbugalhados e vermelhos não conseguiram conter a expressão de vergonha.

Pousou a cabeça e recolheu-se ao seu lugar. Cauda entre as pernas, enrolou-se à posição tímida de pangolim, protegendo o estômago da própria fome, adormeceu, consolando-se em sonhar. Sabia que em panela de verdura não havia ossos.

A panela parecia um barco, navegando no mar de labaredas. Acocorados à volta da panela, éramos a tripulação paciente de um barco que se rema com colher de pau. A panela era um barco que transportava um mar de alimentos dentro de si. A fome tornava longa a viagem. A saliva adensava-se-nos na boca, engolíamos a secura das goelas para acalentar a fome. Impacientávamo-nos. A chama era lenta, fraca.

Soprávamos com mais frequência para que ardesse mais rápido. Na verdade, a posição de sopro dava jeito a uma lambidela na espuma que transbordava. O metal da panela estava quente por isso sorvíamos sem tocá-lo. Queimávamos na mesma. Cada vez mais impacientes, já todos queríamos soprar, e lamber a espuma. Acotovelávamo-nos cada vez que a panela espumasse.

Precipitávamo-nos, tanta era a fome. Acotovelávamo-nos e com o desajeito a panela entornou-se. O barco, o grande barco que a panela era, naufragou! O chão arenoso bebeu o conteúdo que ainda fervilhava.

Num salto, o cão oportuno não esperou que arrefecesse. Aproveitou o desperdício. Foi a primeira vez que vi um cão a comer verduras. Os meus irmãos, igualmente desesperados, disputaram com o cão pedaços de chão mais substanciados.

Eu retirei-me, com a panela vazia na mão. Sentei-me no canto do cão e enrolei-me, como este, à posição penosa de pangolim. Ajeitei a panela ainda quente, para que do fundo escorressem os restos. Os lábios chiaram quando chupei o vazio. Alimentei-me de restos como se a panela, quente, fosse um seio a queimar-me os lábios e a ponta dos dedos.

Quando a nossa mãe se apercebeu do desastre, o olhar profundo avermelhou-se de desespero, e os nossos olhos avermelharam-se de lágrimas, pela tareia que levámos.

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