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Olá! Eu sou a esposa do seu marido!

Olá! Eu sou a esposa do seu marido!

Que fazer quando, em determinado dia, certa mulher lhe bate à porta e se apresenta como a segunda esposa do seu marido? A dona Rosta, esposa de Crespin Sixpense, viveu esta experiência. Será que estamos perante os já conhecidos, mas dificilmente assumidos, relacionamentos poligâmicos? Que construção social se faz sobre os mesmos? Na sua recente peça teatral, Nkatikuloni, o Teatro Girassol realiza uma abordagem especial sobre a poligamia e fez sucesso em Angola.

Quando uma mulher decide apresentar-se a outra, como a segunda ou esposa do marido daquela, teoricamente, acontece uma coisa muito similar à simplicidade do título da nossa matéria. De todos os modos, os precedentes dessa decisão são muito mais complexos como os eventos que decorrem depois de se proferir tal discurso perante uma mulher que se sente “proprietária do marido”.

Embora a poligamia seja uma prática secular, e talvez milenar, ocorrendo ininterruptamente, nas sociedades contemporâneas continua uma faca de dois gumes, constrangendo a primeira mulher, que não quer saber da existência da segunda, como a segunda que tem de ser conhecida e, quem sebe, também reconhecida.

Perplexa, experimentando um misto de alívio, tristeza, surpresa, confusão, incerteza e desconhecimento – em relação à posição da legítima esposa – é como a actriz moçambicana, Sheila Nhachengo, que interpreta Juventina, ou simplesmente Ju, invadiu a casa de Júlia Eduardo, a personagem Rosta.

Do outro lado, temos uma mulher fria, segura, determinada cujos olhos revela(ra)m, pelo menos à sua rival, o estado da sua alma. No entanto, embora ela soubesse tudo sobre a vida do casal Sixpense, segundo Rosta, Ju não tinha direito nenhum de invadir a sua privacidade espreitando pelas suas janelas.

Por isso, “se os meus olhos são as janelas da alma, como tu muito bem disseste, a tua boca é, de certeza, o esgoto da alma”. Desta forma, o azedume toma conta do diálogo entre as actrizes de uma obra teatral cheia de revelações e construções sociais.

É interessante perceber a forma como a actriz Sheila Nhachengo, Ju, criando uma situação constrangedora (além do facto de ela ser intrusa, invasora, amante no sentido de ser aquela que rouba o marido da outra) consegue revirar o rumo da história em seu benefício.De repente, ela faz-se passar por uma mulher carente de ternura e compaixão e solicita um abraço de Rosta, o que constitui um eixo para se discutir o problema central da peça, a poligamia.

A sociedade reprova

“Mana, eu e o meu marido estamos juntos há mais de dez anos. Dois filhos são o saldo dessa relação.É certo que somos felizes, mas a sociedade não aprova a nossa relação. E isso deixa-me muito mal”. Com esta sentença sem nenhum argumento, o que é importante para o curso de história, suavemente, a actriz Sheila Nhachengo introduz o tema.

Porque a sociedade não aprovaria uma relação amorosa? Independentemente das razões da sociedade, faz entender a actriz Júlia Eduardo, “não devemos permitir que a nossa vida dependa da opinião alheia. O que eu quis dizer é que a nossa vida depende apenas de nós. Se nós sabemos que não provocamos desgraça nenhuma nem ofendemos ninguém, porque é que não podemos ser felizes?”.

O drama é que Juventina é Nkatikuloni, encontrando-se numa daquelas situações problemáticas, porque “sabemos que o tipo é um patife, possui uma aliança a reluzir no dedo anelar. No entanto, ficamos ali, a olhar, a salivar como se estivéssemos a apreciar um osso”.

De uma forma mais direcionada, assim se elabora a pergunta: “Imagina se o seu marido estivesse envolvido com outra mulher e a mesma viesse bater-lhe à porta?” A situação prova que todas as respostas que se dão a uma pergunta que pressupõe inúmeras possibilidades nem sempre são correctas.

Embora Rosta lhe tenha dito que iria recebê-la amavelmente, fazendo um compasso de tempo para aquecer água e óleo a fim de atirá-los para o seu rosto, sem se importar com as consequências do referido acto, quando Ju lhe disse que era a sua Nkatikuloni, a esposa legítima simplesmente desmaiou, instalando-se uma cena espectacular e cómica no palco.

Como tudo começou?

Para tudo há sempre um começo e, no caso do envolvimento entre Crespin Sixpense e Juventina, importa salientar – e olhando como um caso de construção social – o problema dos transportes públicos em Maputo, sobretudo nos dias chuvosos, altura em que a disfunção do sistema de saneamento urbano, outro problema, se agrava. A peça não aborda esses assuntos, diga-se, mas compreendem-se nas entrelinhas.

“Eu estava na paragem à espera de ‘chapa’. Chovia a cântaros e ele passava por perto, fazendo-se transportar no seu carro azul. Parou e buzinou. Nessa altura fez um grande estrondo. Era uma trovoada. Buzinou e arreou o vidro. Olhei para ele e não dei importância, até que buzinou pela terceira vez e acenou. Eu continuei prostrada sobre mim mesma. Havia coberto uma capulana e a minha bolsa estava presa bem debaixo do meu braço. Eu já começava a tremer de frio.

De repente, ele desceu do carro. Uma outra trovoada atravessou o céu e iluminou aquele homem. Estremeci. Não sei se pela trovoada ou pelo vulto que vinha na minha direcção. O homem andava a passos bem largos. Sentou-se ao meu lado e eu não consegui mover nem um dedo para me afastar. A imagem daquele dia parece-me bem nítida como se fosse hoje”.

Esclareça-se que a peça é feita por apenas duas personagens femininas que, por vezes, se intercalam para introduzir, sempre que necessário, a figura de Crespin Sixpense (Six), cujo argumento para seduzir Juventina tem a ver com o facto de que “sou uma alma errante que sente a necessidade de salvar alguém. Está a chover a cântaros e troveja como se fosse a própria voz do trovão. A noite pode engolir-te e aí o meu coração ficará despedaçado e terei remorsos”.

Entre as dúvidas e receios de Ju em aceitar o apoio que lhe estava a ser prestado, Six disse mais: “A certeza não precede a tentativa. Tenta aceitar e terás a certeza de ter agido correctamente”. Sem outra opção, Juventina aceitou o convite.

Além do mais, “aquele homem consumia-me toda. Vontade não me faltou de me enterrar no seu corpo. Aquecer-me do frio e afagar a minha angústia pela espera do transporte. Até parece que ele escutou a vontade do meu coração”, assegurou conversando com a primeira esposa de Six a quem se apresentava.

Embora Rosta considere que “os homens pensam com o pénis”, o que faz com que homem nenhum deixe a mulher escapar-lhe, Juventina afirma que Six não se relacionou sexualmente com ela – e é isso o que mais a seduziu. “Uma mulher conhece perfeitamente o seu corpo e sabe quando ele é preenchido. Eu não precisava de espelho para ver, mas, estranhamente, não havia sido penetrada. O meu corpo não foi invadido. Não houve sexo”.

Algumas construções sociais

Se, por um lado, Rosta jurou amar o seu marido eternamente, diante do sucedido, por outro, começava a ver as suas ilusões e sonhos de um amor eterno corrompidos, o que para Ju não constitui nenhuma verdade porque o problema é que o amor, em si, embora seja um sentimento alegre, infelizmente, ainda não tem olhos para escolher quem o merece.

Alem do mais, para a segunda mulher, preocupar-se com os conceitos dos filhos em relação ao facto de o pai ter traído a sua mãe expressa algum tipo de egoísmo por parte de Rosta, uma vez que constitui a base para que eles odeiem a sua madrasta e os seus irmãos.

Uma das construções sociais muito interessante, aqui, projectada por Ju, e resultante da poligamia, tem a ver com o facto de que se milhares de pessoas, no mundo, clamam por uma mãe, tanto os filhos de Rosta como de Ju, deviam-se sentir felizes por terem duas mães.

Se uma ala não vê relevância no ódio e nos frutos da disputa que há em torno de um polígamo, o que faz com que “enquanto lutamos, a sociedade zomba de nós, fazendo-nos reféns dos seus princípios”, outra defende que se não existissem mulheres que se envolvem com homens casados, o mundo seria melhor. O argumento é simples: “Eu sou a legítima esposa, por ter sido casada e lobolada”.

Embora dura, para Ju, a verdade é que “tal como é legítimo ser dono de uma fortuna fruto do roubo e da extorsão, a legitimidade é apenas uma convenção. Estamos as duas de parabéns pelo homem que temos. Eu faço o teu casamento mais forte, da mesma forma que tu fazes o meu matrimónio com o Six”. A personagem defende aqui a existência de virtudes aliadas à poligamia.

Nkatikuloni é uma obra em que se intercalam trilhas sonoras de músicas de Alexandre Langa, Hortêncio Langa e Arão Litsure, Richard Suleimane, Matias Damásio, e Zeca Pagodinho.

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