A muito custo o tremor da minha mão acertou nos buracos tímidos dos cadeados e depois da fechadura. A porta cedeu, abrindo-se como uma portagem ligando o mundo ao interior da minha casa.
Entrei acelerado pelo excesso de cerveja que me maltratava a bexiga. Com os passos trocados, ora tropeçando nos próprios calcanhares, descalcei e apressei-me para a casa de banho, num excesso de velocidade caricato, pois pisava com a ponta dos pés, para conseguir chegar à cama sem acordar a minha mulher, não ser visto naquele estado e escapar ao bafómetro dela.
Circulando na contramão do corredor, com os sapatos na mão, eu já desapertava o cinto de segurança das calças e abria o zíper quando deparei com a surpresa: um roadblock! A minha mulher estava acordada e montou-me um roadblock em pleno corredor. Com um gesto decidido arranjou a capulana, pôs as mãos na cintura, marcando território, e fez aquela cara de poucos amigos que elas aprendem nos programas de TV sobre igualdade de género.
Surpreendido, os sapatos escorregaram-me das mãos. Segurando as calças e o zíper aberto, abrandei a marcha e sorri os músculos cozidos da face, contorcendo-me para conter o aperto na bexiga:
– Amor… Hmmm!
Estava numa reunião e… um colega fazia anos e estávamos a brindar… e… Estava com uma cara de insubornável, enquanto eu, afl ito, procurava espaço entre as ancas largas e a parede, para ir à casa de banho.
– A partir de hoje entra em vigor um Novo Código aqui em casa – advertiu-me, sem tirar as mãos da cintura.
– Hein?! – Senti os músculos da face contraírem e as pálpebras arregalarem.
– Vai ter de haver respeito pelos horários aqui em casa.
– O quê? – Quis impor-me. Lembrar-lhe que o homem ali era eu.
A lobolada era ela e eu não aceitava ordens de uma mulher. Mas era melhor ficar calado. – Vai haver maior rigor, e muitas penalizações, – prosseguiu – e o álcool vai ter de reduzir. Essa coisa de beber todos os dias não dá.
– Mas…
– Francamente. Hoje é segunda-feira e estás nesse estado!
– …
– Aqui para esta casa, se queres voltar não bebas, se beberes não voltes. E ai de ti se não voltares. Ntlha!!!
Arranjou desafiadoramente a capulana na cintura, fez inversão de marcha e arrastou o chinelo, abanando imponentemente a retaguarda. As minhas solas chiaram quando corri para a casa de banho. Depois de aliviar a bexiga, eu já só pensava na cama, mas ela obrigou-me a uma banho:
– Na minha cama não dormes com essa sujidade sei lá de onde – resmungou.
Falava com a mesma cara de insubornável de há pouco, enquanto se movimentava pela casa. Resmungando, preparou-me, mais por dever do que amor, um banho, roupa de dormir e uma refeição quente.
Manobrámos para o compartimento mais privado da casa, onde o que se passa a dois não se descreve nem se comenta. Eu já tinha os intermitentes ligados pela emergência do sono, mas senti que me devia esforçar, por dever, para fazer aquilo que mais arrefece a zanga das senhoras.
Os lençóis estavam macios. Ela estava zangada. Toquei-lhe. As hormonas esquentaram. As necessidades arrefeceram-lhe aquela cara de insubornável. O zelo do novo código derreteu- -se-lhe nas vontades. Todas as fomes estão acima de qualquer legislação.
– Essa rua tem sentido único – advertiu-me, num tom mais frágil e melado do que o de há pouco – Só se vem, não se volta.
Entrei devagar para a rua roncando os motores da respiração. Naquele instante reparei no semáforo aceso. Aquele semáforo que em períodos mensais regula o humor, o amor e a fertilidade das mulheres. Estava vermelho.
– Está vermelho, mas avança – ordenou, com autoridade de agente de trânsito.
Eu avancei, lentamente. Instantes depois parei.
– Acelera então. – Ordenou, mas eu não respondi.
– Estás sem gasolina? Se queres estacionar manobra e mete na garagem. – Abriu os portões da garagem. – Mete – continuei sem responder. Com os intermitentes a piscarem pela emergência do sono, eu já estava adormecido no meio da via, no embalo do asfalto aveludado do colo dela.
– Ntlha! – Irritou-se, e rebocou-me de cima dela para um lado da cama, rebolou para o outro lado e adormeceu.
No dia seguinte fui impiedosamente multado, por estacionar indevidamente e dirigir embriagado.