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Bitonga Blues: O mundo é tão pequeno, seremos amputados aqui mesmo

Em toda a minha vida nunca me tinha comovido tanto! Nunca havia transferido para mim, desta forma, a dor dos outros, e sobretudo o padecimento de um homem que a partir de agora vai sofrer para sempre. Ele tem os membros superiores e inferiores amputados e, por causa disso, os ombros, outrora largos, perderam a beleza, parecem asas de um B52 em repouso.

Os calções que ele usa tapam a extremidade das coxas, um pouco acima dos joelhos, por onde passou o maldito serrote eléctrico dos cirurgiões. Onde havia os braços já não há nada, senão aquela imagem das asas de um B52 em repouso. E eu digo assim: está aqui um homem, bonito, transformado em entulho.

Nunca mais se vai por de pé, muito menos caminhar para vestir a terra. Está aqui um homem feito fardo, sem os braços para aplaudir a vida e sem as mãos para acariciar a mulher que empurra a cadeira de rodas onde está sentado este personagem.

Eis-me aqui recostado num canto da esplanada do “Retiro”, em Tete, na zona onde está implantada a fábrica Leaf Tobacco, no sopé do Calowera e estou a beber água para espantar a canícula. E ele acaba de descer de um poderoso Hummer, conduzido por uma mulher muito linda, cheia de ouro em todo o corpo.

Mas é uma mulher que também foi feita para sofrer porque, depois de conduzir o seu espampanante Hummer, tem de descer para conduzir a cadeira de rodas do seu marido, que tem os braços e as pernas amputados.

Escolheram uma mesa ao pé da minha e sentaran-se, ou melhor, quem se sentou foi a mulher, porque o homem já estava sentado há muito tempo, na cadeira de rodas. Pediram whisky de rótulo preto, que os entendidos dizem ser o melhor e puseram-se a beber, conversando animadamente.

A mulher bebia e, a espaços, dava também ao marido, como se estivesse a alimentar a uma criança, num espectáculo que me comovia, dando-me vontade de sair dali para fechar as comportas das minhas lágrimas.

O homem olhou para mim de forma particularmente intensa, enquanto eu me levantava e disse, jovial: – desculpa, acho que nos conhecemos de algum lugar!

– Não sei, é muito provável, este mundo é tão pequeno!

– É! Este mundo é tão pequeno, que não precisamos de ir longe para ficarmos sem as pernas e os braços!

– É verdade!

Eu já estava completamente de pé, com a minha garrafa de água na mão, falando, de cima para baixo, com um homem que nunca mais se vai levantar. Pediu à mulher que lhe desse de beber e a mulher deu-lhe, em silêncio, olhando para mim de esguelha.

Era uma figura cheia de luz, cuidando de um homem que nunca mais se vai pôr de pé. Uma mulher que agora questiona: – eu também tenho a impressão de que já lhe vi em algum lugar…

– É provável, o mundo é tão pequeno, minha senhora!

– Ah! O senhor não esteve, no dia 25 de Dezembro de 1997, em Inharrime?

– Passei lá as festas, sim!

– Lembra-se de um Mercedes Benz que parou ali ao pé da ponte, o senhor estava a tocar uma guitarra e nós pedimos- lhe para que tocasse uma música para nós?

– Agora lembro-me, e quem estava a conduzir é este senhor!

– Sim, ele é meu marido.

– Oh! O mundo é tão pequeno!

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