Rios de suor percorriam-me a pele e molhavam a roupa da cama. Tudo me incomodava naquela noite de Verão. Parecia que a lua havia recebido, de empréstimo, os raios quentes do sol. Até os lençóis mais leves, que comprara para noites quentes como aquela, pareciam pesados como mantas de peles de crocodilos, que aqueceram guerreiros de resistência contra a ocupação colonial.
Saltei exausto da cama e lancei a mão para a minha montanha de livros. Pensava em conquistar o sono através da leitura. Daquele amontoado a mão saiu com o ‘No reino dos abutres’ do Ungulani Ba Ka Kosa. Consegui ler apenas as três primeiras frases do prefácio, seria a milésima leitura do mesmo livro. Os olhos pesaram-me de sono que, voltado à cama, durou alguns instantes. Veio mais um banho de suor.
– Ah, que incómodo! – disse eu para ninguém, chateado – isto deve ser febre.
Deixei a cama com uma precipitação tal que parecia ter descoberto a forma de estancar a quentura quando me veio a ideia de me divertir numa igreja estranha, de cultos noturnos às quartas-feiras. Meti-me em qualquer roupa, aquela que estava ao meu imediato alcance. Abandonei o quarto à maneira de fugir do Inferno.
O “xigubu”, batuque de ritos, ensurdecia-me como se fosse tocado na boca dos meus ouvidos. Parecia que bombas explodiam nos meus tímpanos. Os homens que dançavam ao meu redor violentavam o chão com os pés rijos, quase lenhas, punham mais tostões ao ruído que me era insuportável.
– Acho que tenho febre – disse eu ao dirigente do culto.
– Ajoelha aqui que nós curamos isso! – disse ele altivo e com um ar confiante.
Ajoelhei. Fechei os olhos e deixei-me rodear por aquela gente dançante, como me fora ordenado pelos crentes do templo. O mufundhissi, líder religioso, surgiu e entrou na roda. Trazia cordas grossas de linhas coloridas. Vestia muitas roupas e cobria tantos tecidos que seriam suficientes para o alfaiate produzir roupa para toda a gente que ali estava. Cobicei-lhe a capacidade de ignorar a quentura do Verão. Vestia toda a fábrica de tecidos Texlom, hoje Moztex.
De mãos postas na minha cabeça, o mufundhissi orou aos gritos, talvez para um Deus de tímpanos ensurdecidos com o alto som de xigubu. Orava aos berros aquele velho de longa barba branca e molhava-me a cara com gotas de saliva que não se continham às largas aberturas da boca cujo hálito me sufocava. Começou a sacudir-me suspeitando que, durante a oração, eu emitia movimentos de um endemoninhado quando procurei limpar a saliva na minha face com a mão.
O mufundhissi arrancou-me pelos braços e pôs-me de pé, orando com a sua face posta na minha. Soprava directo para as minhas narinas todo o seu hálito insuportável como se tivesse passado mil e uma refeições sem higiene bucal. Suportei por uns instantes e caí quase desmaiado de asfixia, o que o mufundhissi interpretou como força de demónios. Passou as cordas que trazia num balde de água cinzenta e poeirenta de incensos queimados e molhou-me a face.
O som rítmico que as palmas das mamanas e o xigubu produziam chegava-me aos ouvidos como se viesse do além. Ainda me recuperava do desmaio quando o mufundhissi convidou toda a gente a impor as suas mãos em mim. O meu pescoço sumia nos ombros com o peso de muitas mãos juntas. Parecia que carregava, na cabeça, aquele templo todo.
Deixei de me mexer, embora não suportasse as manobras do culto. O mufundhissi interpretou a minha calma como a fuga dos demónios.
– Agora sentes-te bem? – Perguntou o mufundhissi, orgulhoso.
– Sentia-me bem. Vocês provocaram-me dores.