Numa lindíssima canção de amor, o Chico Buarque dizia que, na desordem do armário embutido, o sapato do homem ainda pisava no da amada. Se com esta imagem, o poeta pretendia mostrar o amor que unia os dois amantes então tenho orgulho em dizer que o amor da minha mulher está para lá do infinito.
Os meus dois ou três pares de sapatos estão asfixiados por umas largas dezenas de botas, sandálias e outros adereços utilizados para adornar os belos pés da minha mulher. Como, julgo eu, ela não quer destruir a imagem dos seus sapatos a cercar por todos os lados, no tal armário, os meus, insiste em comprar mais.
Ela bem me tenta enganar dizendo que aqueles 6 pares de botas e as 20 sandálias que comprou há dois meses já não se usam, mas eu sei que é para espalhar mais amor pelas minhas gavetas de roupa, pelo meu espaço na casa de banho, pelo meu escritório, pela despensa.
Isto é a minha mulher claro está, as outras mulheres terão outras razões que são também com certeza poderosas face ao amor desmedido que mostram pelos ditos acessórios.
Chamo-lhes acessórios porque já percebi que o que elas usam nos pezinhos nunca são sapatos. Um sapato de homem é um utensílio, uma necessidade, um sapato de mulher não pode ser apelidado de forma tão rude. São uma espécie rara de arte.
É, aliás, por isso que nunca se ouve uma mulher a dizer que uns sapatos são confortáveis ou não. É indiferente. Se são lindos que importa se fazem calos, bolhas ou arruínam a coluna vertebral? Experimente perguntar a uma mulher que se passei pelo Bairro Alto em saltos agulha se está preocupada com a saúde dos seus ossos. Pff ff .
Um homem calça sapatos, a mulher decora os pés. A pedicura, o verniz das unhas serve para realçar as sandálias que andou a namorar durante um mês e que trouxe para casa com um sorriso de vitória.
É que os sapatos – peço, desde já, desculpa pela vulgaridade – não são simplesmente comprados, são conquistados. A mulher que os consegue adquirir sabe perfeitamente que havia vários milhões de outras desesperadas para ficar com coisa tão bonita. Era impossível não estarem.
Mais a mais, há todo um processo de selecção que extenua qualquer cidadã: ele é horas de braço dobrado a segurar no telemóvel para tentar perceber se a tirinha azul microscópica não estraga o conjunto; infindáveis conversas sobre quanto custarão umas botas nos saldos; jantares em que um homem percebe o que as mulheres passam quando três homens começam a discutir a capacidade do Ronaldo fazer efeitos na bola quando marca livres.
Os sapatos das mulheres são provavelmente o único objecto em que a opinião dum homem não conta rigorosamente para nada. Um rapaz, com uma cara de ligeiro desagrado, consegue que uma mulher mude uma qualquer peça de roupa – dizem . Já sapatos é outra história. Qualquer resposta que não saliente a evidente espectacularidade do sapatinho é olimpicamente desprezada e normalmente dá direito a um sonoro e claro: “és parvo”.
A Cinderela queria era o sapatinho, não era o tótó do príncipe.