A cruzada do ex-hacker Julian Assange, do WikiLeaks, traça um retrato extraordinário dos mais poderosos do mundo e abre um debate sobre os limites do poder estatal e da liberdade de expressão na era digital.
No ecrã do Twitter, o serviço de mensagens curtas na internet, a ordem para disparar vinha em inglês e com objectividade militar:
– Fire now!
Dado o comando, a cavalaria electrónica começava o ataque ao site escolhido. Jorrava uma quantidade enorme de informações até entupir completamente, derrubando, ainda que por apenas algumas horas, o site da Internet.Esta rotina de ataques teve início na semana passada, depois de o WikiLeaks ter feito estremecer a diplomacia mundial com a divulgação de 250 000 documentos confidenciais trocados entre Washington e 270 embaixadas e consulados americanos espalhados pelo mundo. Os amigos do WikiLeaks, revoltados com as empresas que interromperam os seus serviços ao site, decidiram atacá-las na Operation Payback (Operação Devolução).
– Fire now! E saiu do ar o site do MasterCard, a operadora de cartões de crédito de mais de 23 000 instituições financeiras, que deixou de processar as doações para o WikiLeaks.
– Fire now! E caiu o site do Visa, outra operadora de cartões de crédito cujos serviços estão em mais de 200 países, que também decidiu cortar o suporte às doações financeiras ao WikiLeaks.
– Fire now! E caiu o site do PostFinance, o braço financeiro dos correios da Suíça, que fechou a conta através da qual o WikiLeaks recebia contribuições financeiras.
Para muitos, estas batalhas constituem a primeira guerra cibernética relevante na era da rede mundial de computadores. Por trás de tudo está a figura de aparência melancólica, meio andrógina e enigmática do australiano Julian Paul Assange, de 39 anos, o ex-hacker que criou o WikiLeaks. Há duas semanas, quase ninguém o conhecia. Agora, com a divulgação dos telegramas de Washington, tornou-se uma celebridade e, desde terça-feira passada, está numa prisão na Inglaterra a pedido da Suécia, que o investiga pelo estupro de duas mulheres.
Na vertigem dos acontecimentos, as opiniões sobre ele dividem-se. Para uns, Assange é o mártir da liberdade na Internet que adoptou uma vida nómada, fugindo de perseguidores, para se dedicar à revelação dos segredos sujos de governos e corporações e inaugurar uma era de megatransparência. Para outros, é um anarquista que viola segredos com métodos espúrios e usa a rede mundial de computadores para sabotar as relações pacíficas entre países.
Assange talvez não seja o herói nem o vilão da alegoria medieval do bem e do mal. Mas certamente é, neste momento, o primeiro inimigo público do estado na era digital. Fundado há quatro anos, o WikiLeaks já divulgou segredos de empresas que despejavam lixo tóxico em África e de um banqueiro suíço que escondia dinheiro num paraíso fiscal. Este ano, fez o seu trabalho mais barulhento. Divulgou milhares de mensagens secretas sobre as guerras do Afeganistão e do Iraque e, agora, os 250 000 telegramas diplomáticos. A repercussão tem sido monumental.
Em conjunto com quatro jornais e uma revista da Europa e dos Estados Unidos, o WikiLeaks começou a divulgar a correspondência diplomática no domingo, dia 28. Até agora, veio a público o conteúdo de menos de 2 000 telegramas. Não se sabe se o mais importante já foi divulgado ou ainda está por vir. As revelações espalharam uma onda de constrangimento ao exporem em público um retrato cru – às vezes gentil e elogioso, outras vezes mordaz e devastador – dos homens e mulheres que ocupam os cargos mais poderosos do planeta.
Ao narrarem intrigas e conchavos, negociações e jogos sujos, os telegramas oferecem uma dimensão humana de presidentes, ministros, reis e ditadores, segundo a interpretação da diplomacia mais relevante do planeta. Talvez nenhum outro inimigo do Estado tenha causado tamanho estrago sem disparar um tiro.
Guerra informática
Assim que começaram a aparecer os telegramas, o WikiLeaks sofreu um ataque de hackers não identificados. Metade dos seus servidores ficou muda. Três dias depois, a situação estava normal, mas abriu-se outra fonte de problemas.
A Amazon, a maior livraria virtual do mundo e provedora de acesso à Internet, cortou os seus serviços ao WikiLeaks sob a alegação de que a revelação das mensagens punha em risco vidas humanas e os telegramas eram propriedade alheia. O site socorreu-se então do seu antigo servidor em Estocolmo, na Suécia, que fica num bunker construído nos tempos da Guerra Fria.
Depois de cinco horas, voltou ao ar, mas a EveryDNS, com alegações semelhantes às da Amazon, cancelou o domínio do site – o “org” que aparecia no final do endereço electrónico. Com isso, o “wikileaks.org” deixou de existir. O site então recorreu à estrutura online de um tal Partido Pirata Suíço, cujo domínio é “ch”. Voltou a ficar disponível na Internet sob o endereço “wikileaks.ch”. O pior, porém, estava por vir.
O PayPal, sistema de pagamentos online, suspendeu o seu serviço ao Wiki- Leaks dizendo que o site violava a sua política interna ao “encorajar, promover, facilitar ou instruir outros a envolverem- se em actividades ilegais”. Em seguida, o PostFinance, dos correios suíços, cortou a conta ao site, alegando que Assange fornecera um endereço falso ao abri-la – o que não deixa de ser verdade uma vez que ele não tem endereço fixo.
Depois, o MasterCard deixou de processar as doações financeiras do WikiLeaks dizendo que as suas regras internas proíbem os clientes de se envolverem em “actividades ilegais”. Também o Visa deixou de processar as contribuições. Revoltados com o que entenderam como violação da liberdade de expressão na Internet, hackers programaram a Operação Payback.
Por algumas horas, desactivaram os sites do PostFinance, MasterCard e Visa, mas não obtiveram o mesmo sucesso no que diz respeito ao Amazon e ao PayPal. Os ataques foram organizados por um grupo que se autodenomina “Anonymous”. Ninguém sabe exactamente quem são, de onde vieram nem o que querem. Aparentemente, são uns 1500 hackers activistas, o que inspirou a criação do neologismo “hacktivistas”.
Estima-se que a maioria tenha entre 18 e 24 anos, e um terço deles parece actuar a partir dos Estados Unidos. Usam sites de relacionamento, como o Facebook e o Twitter, para combinar as suas acções, e distribuem softwares que habilitam qualquer pessoa com um computador e uma conexão de Internet a participar nos ataques cibernéticos. Já se insurgiram contra instituições e personalidades, como a ex-governadora do Alasca Sarah Palin e a Igreja da Cientologia do actor Tom Cruise, mas nunca tiveram tanta repercussão como na semana passada, ao lado da causa do WikiLeaks.
Em manifestos, esses hackers dizem que a sua missão é zelar pela liberdade de expressão na Internet e atacar quem a ameace. São contra governos e corporações, que identificam como inimigos da liberdade na rede. Nas palavras de um porta-voz de 22 anos, entrevistado pelo inglês jornal britânico “The Guardian”, defendem o “bem caótico”, expressão que ninguém sabe bem o que significa, mas dá uma boa noção da clareza de ideias do grupo. Mas esta adesão dos hacktivistas do Anonymous foi um desastre para o WikiLeaks.
O grupo reúne jovens que promovem uma actividade ilegal. São vândalos da Internet. Dizem actuar em nome da liberdade e da transparência, e talvez até estejam mesmo cheios de boas intenções, mas os seus métodos são deploráveis. Além das empresas, o Anonymous atacou o site da procuradoria na Suécia que pede a extradição de Assange e até o site do advogado que defende as duas mulheres que o acusam de estupro – o que rendeu a jocosa sugestão de um novo slogan para o Anonymous: “Pela liberdade de expressão na Internet para todos… os amigos!”.
Julian Assange, dentro da prisão londrina, tratou imediatamente de se distanciar dos atacantes, mandando a sua advogada, Jennifer Robinson, dizer que o seu site não tinha nenhuma relação com o Anonymous. “O WikiLeaks não é uma organização de hackers. É uma editora e uma empresa jornalística”, disse a advogada.
Até agora, o WikiLeaks tem tido o cuidado de actuar de modo a evitar actividades ilegais, ou claramente ilegais. Ao que se sabe, não violou os computadores do Pentágono ou do Departamento de Estado. Recebeu os segredos do analista de inteligência do Exército, Bradley Manning, de 22 anos, já preso e que pode apanhar mais de cinquenta anos de prisão em tribunal militar.
A acção do WikiLeaks e de Julian Assange é tão inovadora que também não se sabe em que categoria enquadrá-la. O Presidente Barack Obama quer que o seu governo processe Assange por revelar segredos diplomáticos, mas os técnicos ainda não encontraram o instrumento legal correcto. O uso da lei de espionagem de 1917 foi descartado. O secretário americano Eric Holder, que ocupa cargo equivalente em Moçambique ao de procurador-geral e ministro da Justiça, anunciou que está a fazer uma profunda investigação para descobrir o que fazer com Assange.
Os americanos já estudam inclusive um pedido de extradição à Suécia, caso o ex-hacker seja transferido de Londres para Estocolmo. A busca de respostas é sinal de que a era digital trouxe desafios novos para o alcance dos poderes de Estado.