Num país onde os dados oficiais e discursos políticos do governo do dia indicam que o mesmo está a crescer, não é preciso fazer nenhum esforço para encontrar cidadãos que vivem abaixo do limiar da pobreza.
A triste história da Julieta Muzonde, de 37 anos de idade, natural da Beira, província de Sofala, pode ser usada como exemplo das demais que existem nesta bela Pérola do Índico, principalmente nas zonas mais recônditas.
Julieta passou a infância e uma parte da juventude nas “terras do Chiveve”, não foi à escola devido à falta de condições (diga-se, financeiras), facto que precipitou o seu casamento (foi para o lar com apenas 20 anos), fruto do qual nasceu um filho, em 1996.
“Tive uma cesariana, o meu bebé nasceu prematuro, daí que teve de ficar um tempo na incubadora de uma das unidades sanitárias da província de Sofala”.
Dois anos depois, isso em 1998, Julieta e o seu marido decidiram ter mais um filho, mas as coisas não correram como tinham sido planificadas.
O parto foi, mais uma vez, à cesariana, a criança nasceu prematura e perdeu a vida na incubadora. “Perdi aquela que seria a minha segunda sorte ainda no processo de incubação”.
A morte do segundo filho serviu de pretexto para que o marido, com o apoio da família, começasse a procurar motivos para se separar dela.
“Discutíamos sempre, ora ele dizia que eu tenho problemas que só iriam causar prejuízos, ora os pais e companhia diziam que eu não merecia casar com o filho deles porque o meu sistema reprodutor tem problemas, o que provocava partos prematuros”.
Um adágio popular reza que “não é com a morte de uma andorinha que acaba a Primavera” e, para fazer jus a ela, Julieta decidiu seguir em frente, aceitou a separação imposta pela família do marido, deixando para trás uma filha.
Aprender a desenrascar
Quando saiu do lar, onde não ficou mais de 4 anos, voltou à sua casa no bairro do Aeroporto, algures na cidade da Beira.
Lá, ela não podia ficar de braços cruzados, daí que tenha sido impelida pela vida a iniciar uma nova etapa.
“Comecei a desenrascar a vida, fazia pequenos trabalhos informais na vizinhança. No fim de cada jornada regressava à casa com algum dinheiro.
Isso foi por volta de 1999”, conta, para depois acrescentar que, dois anos depois, conseguiu um emprego numa das casas de pasto da segunda maior cidade do país. Era responsável pela limpeza.
“Como empregada doméstica trabalhei em muitos sítios. Mas em 2007 consegui emprego em casa de um senhor que tinha duas casas, uma na Beira e outra na cidade de Maputo.
Trabalhei dois anos na mesma residência e, depois, porque o meu patrão se sentiu satisfeito com o meu desempenho, adoptou um novo esquema de trabalho. Tinha de trabalhar um ano na Beira e um na cidade de Maputo. Fi-lo durante três anos”, revela.
A vida dura como empregada
A nossa entrevistada conta que no princípio as relações com a mulher do seu patrão eram saudáveis, talvez porque ela ainda fosse uma empregada recém-contratada.
Só em 2010 é que as coisas começaram a mudar (para o pior), atingindo contornos alarmantes. “Ela não queria que eu descansasse alegadamente porque eu vim a Maputo para trabalhar. Em casa dela eu fazia tudo mais alguma coisa.
De segunda a sexta-feira tinha de me levantar às cinco horas para preparar as crianças, que iam à escola de manhã, fazer limpeza, entre outras tarefas”.
O patrão, que a trouxera da Beira, fazia viagens constantemente. Quando ele estivesse na cidade de Maputo, a sua esposa fingia que havia boas relações entre ambas. Mas, o mesmo não se podia dizer quando ele viajasse.
“A dona de casa maltratava-me, talvez não lhe passasse pela cabeça que eu sou um ser humano como ela. Fazia tudo a seu belprazer alegando que o facto de eu estar a trabalhar vivendo em casa dela já era motivo para me submeter a humilhações e cumprir com tudo o que ela mandasse fazer. Por isso abandonei o emprego”.
“Decidi deixar de trabalhar naquela casa porque a mulher do meu patrão, neste caso a dona de casa, passou a obrigar-me a lavar a roupa interior dela e das três filhas.
Já trabalhei em muitos sítios e nunca me fizeram isso, não é o facto de eu ser pobre, trabalhar a viver em casa dela que eu ia aceitar fazer aquele tipo de coisas. A humildade não signifi ca aceitar ser humilhada”.
Mudar o destino
Para não se confinar e nem ser cúmplice do calvário que a vida impunha, Julieta envolveu-se numa relação amorosa, desta feita com Ricardo Fabião, de 42 anos de idade. Na verdade, a relação entre ambos iniciara pouco depois de ela ter chegado a Maputo.
Mas como trabalhava quase todo o dia e aquartelada, o namoro era feito de forma titubeante e aparentemente desinteressada.
“Eu também sou uma mulher como qualquer outra, preciso de ter alguém para me acarinhar, dar afecto.
Mas a minha patroa não dava espaço nem tempo para manobras, não queria saber disso”, conta ajuntando que só conseguia encontrar-se com o seu parceiro quando fosse ao mercado ou quando houvesse uma oportunidade para tal, mas sempre que ela não estivesse em casa.
Uma relação baptizada com um nado-morto
A sua desistência do trabalho foi um pretexto para intensificar ou fortificar a relação com o seu namorado (hoje marido). Se dantes ficavam dias a fio sem se ver, agora vêem-se todos os dias, sem interferências de quem quer que seja.
Esta proximidade fê-los traçar um plano: ter um filho, daí que no ano passado ela tenha carregado no seu útero e durante nove meses um bebé que viria a perder a vida durante o parto.
Como não podia deixar de ser, seguiram-se lágrimas. Foram nove meses de dor, alegria e esperança à mistura (típicos de uma gestação) para depois, na hora “H”, o sonho ruir. Que o digam elas (as mulheres) o quanto isso dói.
Infecção uterina
Depois de perder o segundo filho, Julieta procurou saber junto dos médicos o que se estaria a passar.
“Eles disseram-me que eu tinha alguma infecção no útero, o que resultava em partos prematuros e, por vezes, em nados-mortos”, comenta para de seguida referir que os agentes de saúde com os quais falou “disseram-me que o problema era de difícil cura na medicina moderna ou convencional. Assim sendo, tinha de recorrer à medicina tradicional para resolvê-lo”.
Entretanto, ela afirma que tentou procurar um médico tradicional para resolver o seu problema mas o mesmo disse que só podia fazê- -lo quando ela estivesse no período de gestação. “Mais, eu já estou com medo de engravidar porque sempre perco o bebé.
Receio que isso leve à minha expulsão do lar e eu não gostaria de viver novamente a experiência que tive com o meu primeiro marido”.
Apesar de terem perdido aquele que seria o primeiro filho, a relação deste casal goza de uma boa saúde. Diga-se que os problemas pelos quais têm passado só servem para fortificar ainda mais a união.
Viver do que a terra dá
Este casal é desempregado. A senhora faz da terra a sua fonte de alimentos, enquanto se socorre de biscates.
“Para além de lutarmos para garantir a nossa alimentação, temos de o fazer para arranjar mensalmente 400 meticais e pagar a renda da casa na qual vivemos (feita de caniço)”, conta.
A nossa reportagem encontrou Julieta numa das machambas algures no bairro da Machava-“J”, Posto Administrativo da Machava, município da Matola. Que o digamos em abono a verdade, encontrámo- -la por baixo de um intenso calor com a sua enxada em punho.
Eram 11 horas, mas ela disse que estava no local desde as cinco da manhã. “Estou a plantar folhas de abóbora e de batata-doce.
Esta terra não é minha propriedade, um senhor vizinho disponibilizou- me para plantar alguma coisa. Nos próximos tempos vou introduzir novas culturas”, diz.
Ela também tem uma machamba na Matola-Gare, onde algumas culturas já começavam a dar um bom sinal de evolução, mas as chuvas que se abateram um pouco por todo o país devastaram quase tudo, deixando para trás uma vaga de fome e sofrimento.
“O meu marido também me tem ajudado, sobretudo quando chega a época da sacha. Isto é sinal de que nós nos entendemos e temos a consciência do sofrimento e da pobreza por que passamos. Mas um dia vamos superar as barreiras e dificuldades que a vida impõe”, termina.