@Verdade foi falar com Danilo da Silva, da Associação Moçambicana para a Defesa das Minorias Sexuais (LAMBDA), sobre a visão da sua organização, as vitórias e frustrações. O problema, diz, “não é com as pessoas, mas com a resistência do Ministério da Justiça em autorizar o registo de um grupo de indivíduos que já tem tudo organizado há quatro anos”. Os órgãos de informação social passam, regra geral, ao lado da defesa das minorias sexuais. Um dos maiores temores “é passarem na revisão do Código Penal leis que criminalizem o homossexualismo”.
(@V) – O que é a LAMBDA?
(Danilo da Silva) – É Associação Moçambicana para a Defesa das Minorias Sexuais. Ou seja, é uma organização que defende e promove os direitos das minorias sexuais. Refiro-me aos gays, lésbicas, bissexuais e transexuais.
(@V) – Quando é que foi fundada?
(DS) – A LAMBDA foi fundada em 2006 por um grupo de indivíduos dos quais eu fazia parte com este propósito que é a defesa dos direitos das minorias sexuais. A partir de 2007 envolvemo-nos naquilo que era a mobilização das pessoas e na discussão do que seria a própria organização e para quê que ele existiria.
Mas o propósito de fundo sempre foi este: a promoção e a defesa das minorias sexuais, tendo em conta o contexto em que nós vivíamos e continuamos a viver como cidadãos homossexuais em Moçambique. Apesar de não termos na lei nada que, explicitamente, proíba a relação de pessoas do mesmo sexo neste país ainda não existe nenhum dispositivo legal que proteja as pessoas que são vítimas de discriminação por causa da sua orientação sexual. Claro que a nossa Constituição, de acordo com os que entendem da matéria, é abrangente, mas ela não é explicita no que diz respeito à orientação sexual.
À parte a questão relacionada com a lei, existem práticas e atitudes na sociedade moçambicana negativas em relação à questão da homossexualidade. Grande parte por desconhecimento do que é a orientação sexual e, por noutro, por sermos uma sociedade que não debate muito as questões do género. A homossexualidade é vista como um dado adquirido. As pessoas julgam que desde o momento que sejas do sexo masculino, a tua sexualidade, automaticamente, e o teu desejo incidem sobre a mulher.
(@V) – Ou seja, a compreensão da sexualidade dos moçambicanos é, no vosso entender, um entrave para o trabalho da LAMBDA?
(DS) – A resistência nem é na relação com a comunidade porque a LAMBDA tem as suas intervenções sobre a comunidade. Nós temos um programa de saúde no qual temos de trabalhar com as comunidades. Nós focalizamos a questão da orientação sexual. O maior entrave tem sido com os órgãos do Estado. Se nós olharmos para a questão do registo da LAMBDA, como exemplo, percebemos que não é um entrave de alguém da comunidade ou de um grupo da comunidade, mas sim um impedimento que está a ser causado por um órgão do Estado que é o próprio Ministério da Justiça.
(@V) – Com que bases assegura que é um problema do Estado?
(DS) – Desde 2006 temos feito trabalhos com a comunidade e com outras organizações da sociedade civil, entre essas organizações fazemos parte de fóruns de discussão de várias matérias que não sejam apenas relacionadas com a orientação sexual e que são igualmente do interesse dos associados da LAMBDA, como, por exemplo, o emprego, questões económicas e da juventude. Somos bem recebidos pelos outros nesse espaço.
Nunca fomos alvo de uma discriminação directa ou da recusa da nossa participação em espaços de discussão. O nosso problema tem sido efectivamente com os órgãos do Estado. Mais concretamente com o Ministério da Justiça.
(@V) – Falou em campanhas de sensibilização. Trabalham com o Ministério da Saúde (MISAU)?
(DS) – Com o MISAU, ao nível daquilo que é o nosso trabalho na área da prevenção e educação relativamente a questões de HIV para homossexuais, encontramos uma grande abertura, começando por aquilo que são as direcções de Saúde das cidades, distritais e também da província. Há uma grande abertura por parte do MISAU.
(@V) – Desenvolvem algum trabalho no interior do país?
(DS) – Nós estamos concentrados nas cidades porque é nelas onde nós encontramos aquilo que é a maior parte dos nossos constituintes. A maior parte dos nossos membros vive nas cidades e foi nelas onde decidimos iniciar a discussão sobre direitos e cidadania. Acreditamos que, partindo das cidades e mobilizando as pessoas, poderemos chegar ao campo.
(@V) – A que nível está o debate?
(DS) – Não sei se esteve a acompanhar, mas nós temos feito sempre debates ao longo do ano e estes debates são realizados nas universidades ou em parceria com outras organizações da sociedade civil. O nível do debate tem sido bom, tem sido um debate muito progressista, no sentido de inclusão como cidadãos. De participação na vida do país, inclusive organizações de confissões religiosas têm- nos convidado para participar em debates, ora para compreender melhor, ora para discutir questões de fundo relacionadas com a religião e a sexualidade versus direitos e cidadania.
(@V) – Com a Igreja Católica?
(DS) – A abertura tem sido das igrejas protestantes. Os presbiterianos e anglicanos são mais abertos na discussão do que a Igreja Católica que segue as directrizes do Vaticano no que diz respeito à questão da sexualidade.
(@V) – Disse que tem dificuldades de relacionamento com o Ministério da Justiça. De que forma é que isso condiciona o trabalho da LAMBDA?
(DS) – Como uma organização da sociedade civil, a LAMBDA procura recursos, mas é impossível ter acesso aos recursos se não somos uma entidade registada ou legal. A LAMBDA não é ilegal, mas ela não tem um estatuto legal. Outra coisa tem a ver com a expansão das nossas actividades. Se não podemos, uma coisa simples, realizar contratos ou alugar um espaço ou então contratar pessoal técnico para desempenhar certas actividades, torna-se difícil expandir aquilo que são as nossas causas.
Claro que contamos com o apoio dos nossos membros, simpatizantes , etc. Mesmo a questão do acesso aos espaços de discussão. Neste exacto momento nós estamos a discutir a questão da revisão do Código Penal que é um instrumento muito importante para o país e, de alguma forma, pode afectar-nos se alguém intentar inserir artigos que criminalizem a questão da homossexualidade. A LAMBDA não é convidada a esses espaços como organização. Claro que os colaboradores da LAMBDA participam como docentes, membros de outras plataformas ou pessoas influentes, mas não como instituição.
A discussão deixa de ser a nível institucional o que limita as nossas acções. Neste momento não conseguimos compreender e fazemos sempre essa pergunta: até que ponto nos limita o facto de não termos registo? Mas é preciso colocá-la de outra forma: o que limita o Estado quanto ao registo da LAMBDA? Porque é que muitas associações e organizações com diferentes objectivos e fins são registadas, mas a organização que defende os direitos das minorias sexuais não pode ser registada?
(@V) – Será um problema do Ministério da Justiça ou estamos diante da ponta do iceberg e a resistência é bem mais profunda ao nível do Governo?
(DS) – Temos a percepção de que é um problema de mentalidade dos governantes. Não é uma questão de ausência de cobertura legal. A LAMBDA preencheu todos requisitos requeridos pela legislação para o registo da associação. Desde os 10 membros, actas, estatutos e afins. Inclusive obteve o parecer favorável dos técnicos da conservatória. O processo encalhou mesmo no Ministério da Justiça.
Temos a impressão de que se criou um problema onde não deveria existir. Tendo consultado especialistas, nomeadamente advogados, constitucionalistas, a resposta que tivemos é que o Estado moçambicano, através do Ministério da Justiça, criou um problema que não existe. Para nós, como cidadãos que pretendem associar-se, ver os direitos constitucionais suprimidos simplesmente porque um ou dois líderes não simpatizam com os homossexuais é preocupante.
Porque hoje é o caso da LAMBDA e amanhã será com outra organização. Há muito poder discricionário sobre o assunto, se a lei diz uma coisa e é clara então que se cumpra a lei. Não se pode dizer que eu não simpatizo e coisas que tais, pelo menos num Estado de direito.
(@V) – Como pensam ultrapassar este entrave?
(DS) – Sempre pautamos pela via do diálogo e nestes anos temos estado a fazer trabalho de base com as comunidades. Tem sido uma surpresa saber que quando se trabalha nas comunidades, com os chefes dos quarteirões, chefes dos postos e falamos sobre questões da homossexualidade eles compreendem.
Claro que, no início, há alguma estranheza em relação ao assunto, mas depois as pessoas conseguem compreender do que se está a falar e são abertas quanto à questão. Espanta-nos, por isso, que técnicos superiores do Estado e mandatários do Estado tenham dificuldades em compreender questões relacionados com a sexualidade e com o direito. Não estamos a falar de direitos especiais, estamos a falar de direitos que estão plasmados na Constituição.
O que nós temos feito desde 2006 é tentar dialogar, seja com os funcionários do Ministério da Justiça, seja com a própria ministra, com o vice-ministro. Nós podíamos recorrer ao Tribunal Administrativo e ao Conselho Constitucional, mas o objectivo não é esse, é demonstrar que estão errados e devem entender e perceber que não estamos a pedir nada de especial.
Portanto, não é um esforço adicional que devem fazer. Continuaremos, portanto, nesta linha de diálogo e vamos tentar angariar mais apoios. Mas se for necessário seremos obrigados a partir para a via judicial.
(@V) – E m que patamar estaria a LAMBDA se tivesse sido registada?
(DS) – Pelo menos teria muito maior visibilidade, muito mais membros. Porque neste momento não podemos registar mais membros, nós temos membros fundadores. Não podemos realizar assembleias, não podemos mobilizar como gostaríamos de fazer porque as pessoas ficam sempre naquela indecisão. Hoje estamos sentados neste escritório e daqui fazemos o nosso trabalho, arranjamos formas de continuar a trabalhar, mas a gente não sabe o que vai acontecer.
Esta situação de incerteza cria transtornos para as pessoas que trabalham aqui. Cria instabilidade para os próprios membros. Porque há membros que ficam receosos em aproximar-se porque se o Governo que é o Governo de todos nós, se o Estado recusa o registo de esta associação o que eu vou lá fazer? As pessoas têm medo de contrariar as posições do Governo. Mas se tivéssemos o nosso registo teríamos alcançado mais pessoas.
(@V) – Sem registo como é que um doador pode ajudar a LAMBDA?
(DS) – Nós temos um fiscal sponsor. Para nós nos estabelecermos foi graças a esse parceiro que é a WILSA. Eles sempre estiveram abertos e disseram que embora não estivéssemos registados podiam receber os recursos em nosso nome para que pudéssemos implementar as nossas acções.
Isso cria constrangimentos em questões administrativas e mesmo nas políticas porque nós somos um apêndice de uma outra organização, o que certas vezes cria confusão, não que seja uma situação que queiramos, mas é claramente uma situação que nos é imposta.
(@V) – Falou da resistência ao nível do Ministério da Justiça. Que outras ameaças existem para o trabalho da LAMBDA?
(DS) – Uma das maiores ameaças é mesmo o Estado moçambicano. O Governo somente uma única vez se posicionou favoravelmente, que me recorde. Na altura da revisão periódica quando a ministra da Justiça disse que a homossexualidade não é crime e que todas organizações que trabalham com indivíduos que se desejam associar para defender essas minorias não esbarram em nenhum entrave na lei.
No entanto, desde 2010 até hoje a LAMBDA não tem o seu registo legal. Uma coisa são os discursos que são feitos no exterior, muito bem polidos e floreados para uma audiência externa, mas no país encontramos estas dificuldades de registar uma pequena associação que, acredito, se tivesse sido registada em 2008, na altura que foi feito o pedido, não estaríamos neste impasse.
(@V) – Estariam a trabalhar ao nível dos distritos?
(DS) – Creio que não, porque em toda organização a expansão não é uma coisa espontânea. Como instituição temos de ter cautela no sentido de estudar como fazer a expansão. Conhecendo o contexto em que vivemos não estaríamos a trabalhar no distrito, mas teríamos estabelecido a nossa presença nas cidades. Não quer dizer que não seja importante, mas por questões estratégicas estaríamos nas cidades.
(@V) – As pessoas ainda têm dificuldade em assumir a sua orientação sexual?
(DS) – Sim. Muito por causa destas atitudes negativas que surgem da comunidade e em casa. As atitudes negativas partem de casa, grande parte das pessoas preferem fechar-se em relação à sua orientação sexual, mas à medida que elas ganham autoconfiança e percebem que a comunidade começa a compreender que o carácter da pessoa não é determinado pela sua orientação sexual, elas começam a assumir.
Nós como organização orientamos as pessoas a serem abertas sobre a sua orientação sexual e a prepararem-se para futuras represálias que possam advir. As famílias são diferentes, as comunidades idem e o grau de instrução também. O grau de discussão e a abertura são diferentes nas famílias.
(@V) – Há quem tenha perdido o emprego por assumir a sua orientação sexual?
(DS) – Felizmente é uma daquelas coisas que nos causa espanto. A nossa lei de trabalho protege o trabalhador homossexual no sentido de que proíbe a discriminação da pessoa pela sua orientação sexual, mas essa lei nunca foi testada. Quando, por exemplo, as pessoas perdem o emprego existem sempre formas que o empregador arranja para não dizer que o despedimento resultou da orientação sexual.
Há casos de pessoas que perderam o emprego por causa disso, infelizmente a lei não tinha sido aprovada. Existem poucos casos reportados. Acredito que muitos não são reportados porque as pessoas não querem ser expostas por causa da família e da sociedade.
(@V) – A LAMBDA pode reivindicar alguma vitória na sua curta trajectória?
(DS) – As vitórias da LAMBDA foram muitas. De um grupo de dez indivíduos nós conseguimos mobilizar e galvanizar as pessoas – não a nível nacional ainda –a debaterem sobre questões relacionadas com a orientação sexual. Todos os anos temos recebido estagiários das faculdades que vêm para desenvolver as suas teses.
Conseguimos colocar as minorias no Plano Estratégico Nacional de Combate ao HIV (PEN III), conseguimos incluir em algumas propostas da revisão do Código Penal aquilo que são as nossas posições e, acima de tudo, conseguimos angariar parceiros e amigos que nos vão ajudar futuramente. Nestes anos estávamos a construir a base para podermos começar a trabalhar com muito mais afinco. “Os chefes de redacção poderiam ser mais sensíveis”
(@V) – Que relação tem com a Imprensa?
(DS) – A nossa Imprensa, comparada com a dos outros países, neste campo, tem sido neutra. Não apoia nem desaprova. Poderia fazer mais. Hoje, a nível do mundo inteiro, fala-se da questão da descriminalização e da violência. A Imprensa poderia ter esse papel de desmistificação da orientação sexual, mas não faz.
A influência dos valores culturais dos editores ou pessoas que produzem informação influi para que não tenham esta vontade de abertura para fazer coberturas e fazer matérias de coisas relacionadas com a orientação sexual. O que aparece nos media é do género de notícia de coisas que aconteceram nos outros países ou do posicionamento de líderes mundiais na questão da homossexualidade. Mas não tem sido algo que desperte interesse nos nossos jornalistas.
Em alguns casos têm aparecido um e outro jornalista interessados em fazer uma matéria, mas encontram dificuldade na altura da publicação da mesma. Os chefes de redacção deveriam ser um pouco mais sensível quanto à questão da discriminação por causa da orientação sexual.
(@V) – A LAMDA já se aproximou dos órgãos de informação nesse sentido?
(DS) – Nós temos pontos focais em alguns jornais, mas de uma forma institucional directa ainda não o fizemos. Tínhamos programado uma capacitação que, na verdade, seria um trabalho com os chefes de redacção de certos jornais e televisões. Nota-se que existe uma maior abertura das televisões privadas em passar matérias relacionadas com orientação sexual e até a promoção de debates relativos à questão da orientação sexual.
Para dar um exemplo de censura, várias vezes a LAMBDA já foi convidada para participar em debates e dois dias antes recebermos uma chamada a dizer que o mesmo não pode ser realizado por ordens superiores. De quem não sabemos.
“Podemos não estar, mas de alguma forma participamos indirectamente”
(@V) – Não temem que passem na revisão do Código Penal artigos que prejudiquem as minorias sexuais?
(DS) – Embora a LAMBDA não participe directamente no debate da reforma do Código Penal temos os nossos aliados lá, temos a rede de organizações de defesa dos direitos humanos que antes do início do debate público sobre o Código Penal já vinha trabalhando nisso.
A LAMBDA esteve envolvida e participou na elaboração de algumas propostas da sociedade civil. Podemos não estar, mas de alguma forma participamos indirectamente. Gostaríamos de estar, mas estamos seguros de que os nossos parceiros da sociedade civil não vão deixar que passem artigos que criminalizem a relação de pessoas do mesmo sexo.
(@V) – Que artigos poderiam prejudicar os direitos dos homossexuais?
(DS) – A revogação de dois artigos que em alguns contextos poderiam ser usados para criminalizar pessoas do mesmo sexo. Os artigos 70 e 71 aplicavam medidas de segurança para pessoas que se envolvessem em actos contra natura. Não estamos muito claros o que é um acto contra a natureza. Cortar uma árvore pode ser, mas um juiz mais conservador pode considerar a homossexualidade um acto contra a natureza. Foi um trabalho que fizemos com alguns parceiros e foram integrados.