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O capim tomou conta

O capim tomou conta

O capim nunca teve outro nome que não fosse este. Na melhor das hipóteses e por via da impressão que queremos criar, podemos dizer grande, muito grande, alto, impenetrável, ou palavras dessa família. Mas acaba por ficar só capim. Do capim que cresceu na Vila Algarve, nenhum burro quereria aproximar-se, apesar de ser o que mais preferem estes animais. E Vila Algarve é uma enorme e bem concebia obra de arquitectura plantada na esquina das avenidas Mártires da Machava e Ahmed Sekou Touré, entre o complexo Terminus, 3 de Fevereiro, supermercados de luxo e residências de elite. Na Polana Cimento “A”.

Quando se caminha pela Mártires da Machava, o que se pode ver com nitidez é o andar de cima, que em todo é imagem de ruínas. Num dos varandins, vê-se um  vaso vulgar que parece ter resistdo aos rigores do tempo e a dar sinal de que já ali houve presença humana. Bem na varandinha a seguir, está uma chávena plástica azul, daquelas que hoje já se não vendem, mas que outrora nos puseram nas bichas intermináveis nas lojas e cooperativas.  As melhores mesas do país conheceram chávenas e copos plásticos, que deram aroma carbonatado ao chá e um sabor por aí a cerveja e refrigerantes.
Este copo chama a atenção para uma presença humana actual, por isso não achei estranho ver um casal de jovens, pouco mais para cima de adolescentes, numa animada conversa de quem se ia separar para enfentar uma jornada em separado. Nem poderiam vir de outro sítio, na medida em a animada conversa decorria quase dentro dos dois contentores de lixo que se encontram do lado da Sekou Touré, exactamente a parte frontal do imponente edifício.

O andar de baixo, ou rés-do-chão, não pode ser visto por quem passa, pois são mais de três metros de altura  do amuralhado de chapas de zinco, do género desta moda das grandes vedações que caracterizam as obras de construção civil em andamento. Andou o tempo e obra nunca houve, de modo que algumas chapas de zinco, laterais e frontais, foram já retiradas. As pessoas mais próximas do local, aquelas que, por inerência da posição e actividades poderiam saber alguma coisa, foram-se tornando mais novas que o passado e ficaram na cegueira de elementos da paisagem, que já se vão apercebendo que sai ou deixa de sair.
Na primeira esquina que a configuração do muro faz, do lado da avenida Mártires da Machava, no sítio onde foram retiradas algumas chapas de zinco, há um urinol fresco, escorrendo líquido sobre um solo que se tornou argiloso com o uso. O cheiro fétido que ali se exala supera qualquer expectativa de compreensão, à vista da distância que pode alcançar. Ao entrarmos no que deveria ser o quintal da casa, apenas se podem ver estreitos caminhos que parecem becos de pequenos animais bravios e só as fezes humanas lateralmente plantadas dão a ideia desta propositada frequência do resguardado exterior do edifício.

Concluir que sejam marginais os autores de tanta porcaria é uma ilação cómoda, mas bem se pode ver que o tempo foi propiciando o lugar para que qualquer passante ali se aliviasse. Na concentração dos suspeitos, ainda podemos admitir que pessoas conhecidas dos guardas e de serviçais têm menos obstáculos à utilização do lugar.
No meio deste matagal, a escadaria frontal não perdeu o ar de grande edifício de mandarim, nem as guaridas deixaram de mostrar o bom gosto do lugar e a necessidade de se estar ali e ser um outro mundo. Só um corredor de sítio pisado indica que há pessoas que frequentam o lugar, vá chamar-se esconderijo ou abrigo, não importa a designação.

É esta a actual Vila Algarve, lugar com tudo para se chamar abandonado, mas que tem vivos sinais de não abandonado pela degradação e poder até, por isso, constituir algum perigo para a saúde e segurança públicas. Mas este lugar tem duas histórias, que contam a história deste país e uma história que conta as histórias de famílias que ali se fizeram. Vamos começar pela última. Durante anos, viveram numerosas famílias na Vila Algarve, tornando aquele espaço  um bairro dentro do Bairro da Polana. Aliás, poder-se-ia mesmo dizer que era  uma verdadeira vila ali plantada, mas uma vila bastante original pelo painel étnico. Primeiro povoado por jovens do Norte do rio Save acasalados com mulheres do Sul. Quando, pela lógica desta família alargada,  cada um foi trazendo os cunhados do cônjuge, o mozaico etnocultural tornou Moçambique aquele lugar.

A venda de carvão, bebidas alcoólicas, couve, tomate, arroz, açúcar e roupa das “calamidades”, foi apenas o certificado de uma  sociedade constituída. Adiante, tornar-se-ia centro ou reserva de mão-de-obra para serviço doméstico. Os  carpinteiros, canalizadores, electricistas e pedreiros completaram o quadro. Os ladrões e traficantes encontraram o espaço insuspeito para se acolitarem.

Ora, num repente, que é de vendavais que se faz a história da Humanidade, a Força de Intervenção Rápida cumpriu o seu papel para com a pátria, dar força aos mais fortes, para que durmam sossegados. Foi aquela comunidade evacuada em camiões para o Zimpeto, onde receberam talhões para se instalar e ter uma vida mais digna. Uma semana depois deste despejo, muitos moradores da Polana compraram talhões a preço de banana e os moradores da Vila foram engolidos pela miséria da cidade.
O edifício havia sido entregue à Ordem dos Advogados, para que dele melhor uso fizesse e em homenagem à história, que recordaremos adiante. O que a Ordem dos Advogados fez e faz do edifício, como digno utilizador vê-se.

Afinal o que é ou foi Vila Algarve? Pelo estilo arquitectónico só pode representar um época áurea de um  próspero colono, que transportou um pouco da sua terreola para Moçambique, Lourenço Marques. Construiu nesta cidade um palacete típico do Algarve, Portugal. E deu-lhe este nome, que a muitos de nós trazia a imagem do Infante de Sagres, patrono dos Descobrimentos que nos deram esta língua em que nos comunicamos.

Só que a polícia política do regime de Salazar e Marcelo Caetanto, a PIDE/DGS, quis tirar melhor proveito do recatado lugar para centro-mor de torturas de presos políticos. Tanto no andar térreo e anexos como nas caves existem cubículos onde um ser humano se não pode pôr em pé. Muitos jovens que fizeram a história de libertação desta Pátria foram torturados naquelas instalações. Muitos de nós tiveram relatos vivos disso, com instrumentos de tortura  visíveis, nas primeiras visitas após a independência de Moçambique.

Vila Algarve é um monumento da nossa história. É a dor por que passaram estes jovens que têm hoje 70 anos. A dor precisa deste monumento, as gerações vindouras precisam desta cicatriz que é Vila Algarve, para que o amor à Pátria não seja um estereótipo tão vazio como dançar rapp.

 

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