Qual é a história – e o segredo – do Califórnia, um bar que funciona 24 sobre 24 horas, e à moda dos filmes americanos (do Texas) em pleno coração da metrópole moçambica, Maputo? @Verdade procurou saber e constatou que, para além de drogas, sexo e álcool, há bufos, chulos e criminosos. Contudo, o bar é um posto de trânsito onde a lei fornica com o submundo do crime.
Passavam poucos minutos das 18 horas de uma sexta-feira qualquer quando enviámos uma mensagem para um colega, convidando-o a fazer-nos companhia na cobertura desta reportagem noctívaga. Para o nosso desespero – e sem papas na língua – o escriba ripostou: “O quê? Trabalhar nesse bar à noite? Não, felizmente não quero morrer contigo! ”. Pairou sobre nós a ideia de desistir do trabalho que propussemos à chefia editorial. Mas, como a decisão estava tomada e os meios disponibilizados, lá decidimos ir a muitos desses bares onde a vida fervilha à moda do que o moçambicano aprendeu dos filmes do “far-west” na superfície do Texas. Fomos a muitos, mas o Califórnia mereceu atenção redobrada.
Informal e modesto, o restaurante de que falamos é, definitivamente, a segunda casa da maioria dos noctívagos maputenses. A razão é simples mas histórica: o maior património da vida boémia da cidade das acácias está a passar por mudanças. A transformação veio com o surgimento dos bares estilo “Gigabyete” (popularizado em Maputo através da telenovela Malhação), o protótipo dos bares ocidentais, arrumadinhos e com decorações cuidadosas e, sobretudo, atendimento personalizado. Como se vê na Julius Nherere e na baixa da cidade, tudo isso é feito com simplicidade mas sem nunca descurar a alma do negócio.
Quis o destino que o bar Califórnia fosse aberto no endereço mais improvável para um local de extravagância: na esquina entre as avenidas Vladimir Lénine e Ho Chi Min. Mas deu tão certo. Inspirado na bem-sucedida experiência de bares norte-americanos do Texas, o Califórnia reúne todos os requisitos para o cliente menos exigente, libertino, aventureiro e de bolso magro: decoração simples, profissionalismo e preocupação com a quantidade dos produtos são itens que ditaram a sua sobrevivência.
A servir como uma vitrina para a cerveja sempre bem gelada e sopa sempre bem quente 24 horas, é assim que, nas horas geladas ou infernais do grande Maputo, o bar que nunca fecha ‘descongela’ as tripas e arrefere as goelas de todos os que ali frequentam: políticos, empresários, artistas, jornalistas, juristas e jogadores de futebol, entre tantos outros.
A vida no bar “far-west”
Cinco horas de sábado. As avenidas que levam os nomes de utópico russo e vietnamita – Vladimir Lénine e Ho Chi Min –, já começam a ser povoadas mas o jovem Chiquinho, velho aos 30 anos, continua em pé, tal como estava antes da meia-noite do dia anterior quando entrou para o bar. Vagueando de mesa em mesa, mendigando ora um copo de cerveja, ora de vinho ou sopa, o jovem que diz ser técnico de informática numa instituição renomada, prova que aquilo também funciona como posto avançado dos que fazem da noite a sua companheira predilecta. E isso não é um mero e natural acidente. Nesse caso, qual é o motivo?, questionámo-lo e a resposta veio com prontidão: “Ah, nem vocês jornalistas sabem? Este bar nunca abre as portas porque também nunca as fechou”.
Uma visita ao Calofórnia exige, por si só, atenção redobrada pois existe grande diferença em saber o que é a violência que grassa Maputo através de um (tele)jornal e outra, bem diferente, é ser Alfredo Comé que já experimentou o constrangimento de ser agredido por essa violência midiática. Alfredo que é “bar-man” no Califórnia há 22 anos mostra as cicatrizes que uma agressão com garrafas de cerveja deixaram no seu couro cabeludo. Não obstante a gravidade dos ferimentos, Alfredo recusa-se a atestar que fora agredido no seu local de trabalho (talvez por razões meramente comercias) reiterando que “foi lá fora, no percurso do bar à minha casa).”
Contudo, pancadaria, agressões, assaltos já não podem ser manchetes de notícias neste bairro, fazem parte do dia-a-dia.
O sítio das ‘garotonas’
Frequentado por anónimos e figuras públicas, todas as noites o Califórnia reúne também ‘garotas de programa’ que converteram o sítio numa espécie de seu posto de trânsito. “Antes de rumarem à rua de Araújo (baixa) ou na 24 de Julho é aqui onde podes engatá-las…. ainda frescas”, refere, em tom sarcástico, Délcio. Ele que, quando soube que somos do @VERDADE mudou-se para a nossa mesa e confessou-nos um data de histórias. Também revelou que, há muito tempo, ele frequenta o bar, entre copos e cavaqueiras, para servir de ‘guarda-costa’ de muitas delas em troca de alguma gorjeta.
Embalado numa bebida que recebeu depois de muita insitência, Délcio desembrulhou o ‘saco’ de segredos que carrega há anos: “ Estão a ver estas aqui? E aquelas ali… eu já andei com todas elas “, diz, apontando-as sem o mínimo de respeito para uma dúzia de mulheres que, incompreensivelmente, apenas se limitaram a rir e, em troca dizem apenas: “ paga me lá uma preta, pá!”
Obviamente, este fenómeno tem uma explicação: Os bares tradicionais da capital moçambicana que sempre sobreviveram à custa dos prazeres alheios, tais como o “Chouriço Assado”, que funcionava das 18 às 15 horas do dia seguinte, observando um intervalo de duas horas, estão actualmente encerrados. E o “Ribatejo” transformou-se em Igreja do Exército de Salvação. Apenas para citar alguns porque outros certamente nos escaparão à memória- Essa onda de encerramentos levou os frequentadores para o Califórnia, o bar ‘nostra’”, como, na circunstância, alguém gritou bem alto, em lembrança da telenovela brasileira ‘TERRA NOSTRA’. É assim que, mesmo numa altura em que se anuncia que está cada vez mais difícil “arranjar grana” – e a cerveja está em alta – o bar Califórnia continua a receber clientes e a jorrar o que fez Judas vender Jesus:dinheiro!
… e de ‘chuis’ e fumaça
Porém, dentre os centenas de comensais e tantos, aquele sítio tem uma particularidade: uma parte dos seus clientes é constiuída por membros da Polícia da República de Moçambique (PRM). “Aquele ali, vocês conhecem? É meu tio, é um ‘chui’ ”, diz o jovem noctívago Chiquinho. E o tio do Chiquinho não é um ‘chui’ qualquer: “É superintende, portanto, chefe!”.
Pelas conversas que o oficial subalterno trava com os outros, dá para percebermos que ele está entre outros membros da corporação, pois à medida que a cerveja vai fazendo efeitos, e a luz do astro-rei se infiltra cada vez mais entre as acácias da esquina entre Vladimir Lenine e Ho-Chi-Min, os descursos revelam as rotinas e expõem as já relatadas mágoas de quem tem a responsabilidade de trabalhar justamente na hora em que a grande parte da antiga Lourenço Marques dorme.
Entre bebidas e sopas, conversas fiadas e próprias de gente que perdeu a noção e rumo da vida, o interior do bar está infestado de fumaça: as quatro, oito talvez mais mulheres que aindam sobram são prostitutas assumidas e alcóolatras incorrigíveis. Sempre com cigarros entre a mão e a boca. Bastou, então, que alguém reclamasse do fumo e relembrasse a lei que restringe o seu consumo em recintos fechados, para, mais uma vez, se revelar que aquele é o reino onde só a lei da selva tem espaço: “O quê? Você quem é aqui para falar de fumo? Você vai ver, essa sua mania de civilizado vai acabar hoje!”. O jovem a quem se dirigiram as trabalhadoras de sexo, apressou-se a acabar a sua cerveja e a dispedir-se, em voz baixa: “ mano, já vou partir.”
Os “segredos” do bar que nunca fecha
O sol já vai alto e os telemóveis marcam 9 horas e pico. Desde ontem que estamos aqui a apreciar o bar que continua aberto e os clientes no vaivém de sempre: enquanto uns saem – mais ébrios ou menos ébrios – outros estão a chegar, lúcidos e prontos para recomeçar com a festa do álcool.
Foi precisamente nesse instante que nos lembrámos da mensagem do colega :” O quê? Trabalhar nos bares à moda texana à noite? Não, felizmente não quero morrer contigo”. Foi também nesse instante que desejávamos sumir dali, estar longe do fumo, dos insultos das garotas sem destino e de constantes pedidos de “ dá mais uma preta pá” e dos streep tease das moças insaciáiveis e sem mercado.
Mas não: como a profissão de jornalista impõe, aproximámo-nos do tio Gilberto, o dono do Califórnia, para sabermos de si e da história do bar que herdeu dos seus pais. Sempre sorridente, talvez por isso ‘amado’ pelo povão que frequenta o seu bar-restaurante, Gilberto – o tio Betinho – como é carinhosamente tratado pelos assíduos clientes –, recusa-se a segredar-nos como tudo começou. “Essa história tenho-a aqui no meu coração…é história revolucionária”. Foi a última coisa que conseguimos ouvir dele, ao mesmo tempo que batia com muita força o lado esquerdo do seu peito.