Há dias e dias. Uns menos maus que os outros. Há dias em que me sinto um cão. Há cães e cães. Eu sinto-me um daqueles cães reles, magros, sem estética, sem raça, de rabo encolhido entre as patas, olhar covarde, a ganir mais do que ladra, e a viver acorrentado no fundo inglório dum quintal. Um nkenhu.
Dói sentir-me cão, sem sequer conseguir ladrar. Estas crises ocorrem-me diariamente, mas agravam-se nos dias em que recebo o salário.
Antes de receber sinto-me ansioso, como se não soubesse que em folha de salários não há surpresas, para além dos cortes inesperados e dos impostos agravados. Quando olho para os números, vem-me um enjoo moral, um desânimo que aos poucos me afoga num remorso inexplicável, como se eu fosse responsável por todos os males que ocorrem, a mim, à minha família, aos que me rodeiam, ao mundo.
Dei por mim a salivar, de boca aberta, arfando como um autênti co cão. A língua, comprida de polir os calçados dos chefes, pendurada para fora, e a forca da gravata a acorrentar-me à secretária, submisso e fiel. Tinha a folha do salário na mão, era aquela hora em que o sol pára de amolecer os relógios e começa a despedir-se.
O burburinho da hora de ponta trepava até ao piso da minha reparti ção. Nem mesmo aquele impulso de energia que ocorre nos funcionários à hora de saída me conseguia animar. Engavetei a língua na boca e a papelada nas pastas. Levantei-me com ansiedade desisti da de um nkenhu, ombros descaídos, sem pressa nos movimentos.
O meu corpo movia-me com gestos mecânicos, como se eu funcionasse em piloto automático. Sabe de cor todos os meus movimentos e destinos. Eu sou um fulano previsível, tal é a roti na dos meus dias. A rotina é um lugar onde me acomodo porque me transmite segurança.
Os mesmos actos, mesmos itinerários, mesma vida, dá-me a ilusão de que tudo vai ter o mesmo desfecho, que um dia vai ser tal como o outro. É uma quase garanti a de que as coisas, mesmo não melhorando, não vão piorar, vão ficar como estão. Para quem vive na pior, se as coisas não pioram já estão muito bem.
Certifiquei-me de que o chão estava firme sobre os meus pés e que o céu, pendurado sobre as nossas cabeças, ainda era aquela construção segura. Levantei-me e desci, no meio da avalanche de colegas, as escadas mofadas da reparti ção, dobrei as esquinas labirínti cas da cidade circulando pelas sombras, como um nkenhu. Não parei na primeira lata de lixo que encontrei, mas parei na primeira barraca.
Aos poucos, a minha cumplicidade com os copos foi remediando o meu ânimo. Aquela timidez de vira-latas aos poucos transmutou-se para latidos ferozes de um falador que debati a com autoridade de tudo um pouco. Falava de política e dos políticos, do futebol e da bola, da sociedade e do mundo, e ti nha opinião sábia para tudo.
Mergulhei na solidão da noite, fui revirando as barracas da cidade e focinhando o cio na traseira das cadelas que se vendiam à beira da estrada. Com o álcool, o vira-latas que sou senti a-se um lobo, na selva enluarada e deserta, soltando aquele longo e imponente uivo.
Quando cheguei a casa endireitei o cambalear para preservar o que restava da pose de chefe de família. A minha mulher, ao ver-me bêbado, fez aquela carranca de descontente que as esposas fazem. Ela não entende que o meu mal é crónico e que beber é-me o único remédio. Melhorou o humor quando lhe entreguei o cheque do salário.
Preparou-me a refeição, a meu gosto, azeda e picante. Sujei o prato fingindo que comia para não fazer desfeita. Mais tarde, na cama, falando na linguagem dos seminários sobre empoderamento da mulher, exigiu que cumprisse com o débito conjugal. Rebusquei forças, espremendo o que me restava de virilidade e fi-lo formalmente.
Depois do acto, desfalecemos naquele cansaço pós-amor. Separámos os corpos sem juventude, distanciados pela vida rotineira. Adormecemos de costas um para o outro, presos pelo destino, como dois cães que, depois de fazerem, se querem desfazer um do outro mas não conseguem porque estão presos pelos sexos.