Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

“Nenhum actor da sociedade foi excluído: eis a minha herança”

“Nenhum actor da sociedade foi excluído: eis a minha herança”

O verbo foi a sua primeira arma política. “Se eu cobrasse pelos meus discursos, há muito que era milionário”, disse um dia o Presidente brasileiro. Ao longo da sua carreira, este brilhante orador pronunciou milhares de alocuções públicas, muitas vezes improvisadas, e concedeu centenas de entrevistas aos media. Eis um florilégio, sob a forma de abecedário, de alguns dos seus temas predilectos, principalmente nas suas intervenções desde a sua chegada ao poder, no dia 1 de Janeiro de 2003.

África – Se decidi fazer de África uma das prioridades da nossa política externa, não foi só por um sentimento de solidariedade ou porque temos uma dívida histórica com o continente irmão. Para nós, estreitar os laços com África é sobretudo renovar a nossa própria identidade nacional, compreender o nosso presente e construir o nosso futuro.

Brasil – No século XXI, o Brasil não viverá mais à margem como aconteceu no século XX. O Brasil vive já uma idade de ouro, um momento mágico, tendo reencontrado a auto-estima. Já se libertou do seu complexo de degenerado. O país encontrará brevemente o seu lugar no G. O Brasil aprendeu a ser sério.

Já não se ouvem mais os discursos dos anos ´80, que diziam que se Lula chegasse ao poder, o país iria afundar-se, que seria o fim do mundo e os empresários iriam encontrar refúgio em Miami. O Brasil é conhecido pelo futebol, o carnaval e as crianças de rua. Mas hoje é também conhecido pelo seu rigor financeiro. Gostaria de passar à posteridade como o primeiro presidente que deu dinheiro ao FMI.

Corrupção – A corrupção é uma das desgraças da América Latina. É frequente responsabilizar-se o imperialismo pela pobreza que grassa nos nossos países. Eu digo: em parte é verdade. Mas uma realidade inegável é que os dirigentes do nosso continente muitas vezes não fazem aquilo que deviam fazer com os dinheiros públicos.

No Brasil, a corrupção está instalada em toda a parte. Na política, na justiça, nas empresas. Em todos os sectores da sociedade. Temos a obrigação de separar o trigo do joio. No Brasil, a corrupção é uma coisa antiga. Mas estamos a combatê-la como se ela não tivesse existido antes de nós.

Deus – Deus é brasileiro. E se não é, passou muito tempo no Brasil. Quando Ele pôs aqui os pés disse: Vou dar tudo a este país. Jesus Cristo foi crucificado para salvar a humanidade. Porque é que cada um de nós não se sacrifica um pouco para salvar este imenso Brasil que tanto precisa de nós? Não sou Presidente para fazer milagres; só Deus os pode fazer. Mas não é todos os dias que Deus elege um metalúrgico para a presidência de um país.”

Dilma Rousseff – A sua competência, a sua capacidade de trabalho, o seu passado político e a sua acção presente fazem de Dilma uma candidata excepcional. Ela está muito bem preparada para me suceder. Quero que ela governe melhor do que eu. E que ela se apresente em 2014, como, pela Constituição, tem direito.

Eu e a Dilma pertencemos à mesma geração, mas seguimos caminhos diferentes. Desde que ela começou a trabalhar comigo, em 2005, temos tido reuniões diárias. Nelas apercebi-me de que esta mulher, que foi toda a vida preparada para ser uma alta funcionária técnica, era também um animal político. Tem uma personalidade muito forte.

Educação – Sou o primeiro da minha família a ter um diploma profissional. E, graças a esse diploma, fui o primeiro a poder comprar uma casa, um carro e uma televisão. O nosso governo está proibido de falar em ‘despesas’ quando se refere à Educação.

A Educação é um investimento. A despesa é quando se deixa de investir na Educação. Pela primeira vez na história do Brasil, nem eu nem o meu vice-presidente possuímos um título académico. Lamento profundamente não o possuir.

Eu gostaria de ter sido economista, não nunca consegui. Mas os diplomas académicos não são indispensáveis para se fazer política, não são indispensáveis para se conhecer as necessidades do povo. Este país pode ser melhor governado por um antigo operário do que por certos ‘doutores’ que o geriram durante anos.

Infância – Não tive infância. No Nordeste morre-se muito antes dos cinco anos. Se se sobrevive é porque se possui muita resistência. Aos domingos, ia com o meu pai e os meus irmãos cortar madeira para os pântanos. Tinha 10 anos. O meu pai era um poço de ignorância e gostava mais dos cães do que dos filhos. Mais tarde fui engraxador de rua. Vendi também laranjas, tapioca e castanha de caju.

Ambiente – Hoje, o governo e a sociedade estão conscientes da necessidade de proteger o nosso ambiente, de não poluir, de preservar a floresta, têm a noção de que a natureza não pode ser sacrificada em nome do desenvolvimento. Os trabalhos de perfuração de um túnel na estrada de Porto Alegre foram suspensos durante seis meses por causa de uma pequena raineta que foi encontrada! Seis meses! Porque se pensava que esta espécie estava em vias de extinção. Parou-se tudo, e o Brasil colocou-se ao serviço desta rã.

Fome – Quando era adolescente passei fome. Estava bem longe de comer tudo o que queria. Em São Paulo, nunca se comia carne, só a mortadela que o meu irmão trazia da padaria onde trabalhava. Só os que passaram fome sabem do que falo.

Uma coisa é ler texto sobre a fome, outra é ser vítima dela. Como a mãe de família que, ao fim do dia, diante da panela ao lume não tem mais nada para lá meter dentro do que meia dúzia de feijões, nem arroz, nem leite, nem pão. E isto durante dias, meses, anos.

Futebol – Utilizo muitas vezes imagens relacionadas com o futebol, porque o futebol, neste país, é uma coisa que toda a gente compreende, faz parte da nossa vida. O futebol é a coisa mais democrática que existe.

Graças a ele, um miúdo da favela pode tornar-se um grande jogador e ganhar muito dinheiro. Infelizmente, o Brasil já não tem o melhor futebol do mundo. É preciso que os nossos jogadores corram mais atrás da bola e não esperar que ela lhes venha ter aos pés.

Governar – Quer seja muito à esquerda ou muito à direita, não se pode governar fora da realidade política. Entre o que se pretende e o que se pode fazer, há uma distância tão grande como o oceano Atlântico. No Brasil, para governar, é preciso formar alianças e coligações.

Se Jesus Cristo viesse ao Brasil e se Judas votasse neste ou naquele partido, Jesus tinha de negociar com Judas para fazer uma coligação. Pode-se fazer discursos políticos brilhantes, mas na hora de governar o pão é o pão e o queijo é o queijo. A política é como a cachaça: bebe-se o primeiro golo e depois não paramos até ter a garrafa vazia.

Lula – Sou uma metamorfose ambulante: mudo à medida que as coisas mudam. Sou multi-ideológico. Não sou proprietário da verdade. Mudo para melhorar. Posso chorar de emoção em público mas nunca à mesa das negociações. Sou de pequena estatura, mas os meus sonhos são grandes.

São os sonhos do povo brasileiro. Sou um optimista inveterado. Sou popular mas não populista. A chave de tudo é o trabalho e não se esquecer de onde se vem. Eu sou um operário que sempre trabalhou para sustentar os seus.

Media – Recomendaria a todos os líderes que se mantenham afastados da política e dos media durante os fins-de-semana. É uma terapia. Desde há algum tempo que não tenho o hábito de ler jornais. Isto dá-me dores de estômago.

Com tantas coisas boas que sucedem todos os dias ao povo brasileiro, não compreendo a propensão dos media pela desgraça. Quando ligamos a televisão, quando abrimos um jornal, só vemos calamidades. Isto não ajuda nada à resolução dos problemas.

Mãe – A minha mãe era analfabeta: ela não sabia sequer escrever a letra “O”. Quando saímos da Nordeste, para pagar a viagem, ela teve de vender tudo: a égua, o relógio de parede e as imagens dos santos. Eu pergunto- me como é que uma mulher tão pobre, abandonada pelo marido, pôde sustentar sozinha oito filhos sem que nenhum deles se tenha tornado bandido ou alcoólico.

Que teria sido de mim se ela não tivesse saído daquela miséria? Um bom bebedor de cachaça há muito tempo que estaria morto de cirrose. Nunca vi a minha mãe chorar, nem se queixar, o que só posso concluir que todos os obstáculos podem ser ultrapassados.

Obama – A eleição de Obama foi uma coisa extraordinária. Eu disse-lhe: eleger um negro presidente dos Estados Unidos é o apogeu da democracia. É um símbolo, como o Brasil elegeu um torneiro mecânico, a Bolívia um índio (Evo Morales), o Paraguai um bispo (Fernando Lugo). Obama é uma boa cabeça.

A minha mãe dizia: “Se queres conhecer alguém, olha-o nos olhos.” É muito inteligente. É um fenómeno político. Espero que faça coisas audaciosas. O ano passado Obama disse que eu era o seu homem. Se ele estivesse aqui eu dir-lhe-ia: Não sou o teu homem. Eu sou o Lula. O vosso homem é o povo trabalhador do seu país, que fez com que eu chegasse onde cheguei.

Pobreza – Não posso deixar os pobres camponeses do Nordeste morrer de fome e de sede. Conheço bem os seus sacrifícios. Aos sete anos transportava vasilhas de água à cabeça. Neste país, os pobres foram sempre utilizados como moeda eleitoral. Só no dia das eleições os políticos tratavam os pobres tão bem como os ricos. Durante muito tempo defendi uma reforma agrária radical.

Entretanto, perdi três eleições. Compreendi que o povo desejava uma reforma agrária tranquila e pacífi ca. Se o Brasil atravessou a crise mundial sem grande sofrimento, é graças aos pobres que continuaram a consumir. Eu, que durante 30 anos denunciei a sociedade de consumo disse aos pobres: comprem, comprem, senão as fábricas vão fechar.

O povo ouviume. Pela primeira vez, os pobres compraram mais do que a classe média, porque eles adquiriram poder de compra. Quero tirar o povo da merda em se encontra. Fomos eleitos com o objectivo de os mais pobres deixarem de o ser. Quero aumentar o número de ricos. Estou frustrado por ver que os ricos não votaram em mim, apesar de terem ganho mais dinheiro durante o meu governo do que em qualquer outro.

Sarkozy – Fiquei agradavelmente surpreendido quando percebi que o Presidente Sarkozy desejava, desde o primeiro dia do seu mandato, prosseguir a parceira franco-brasileira iniciada pelo Presidente Chirac. Sarkozy defende o Brasil em todos os fóruns internacionais, defende inclusive a entrada do Brasil no Conselho de Segurança.

Temos uma grande relação de confi ança e concordamos em quase tudo. Disse ao meu amigo Sarkozy que a França, em relação ao Brasil, tem uma vantagem sobre os outros países da Europa porque é o único que possui uma fronteira comum com o Brasil (Guina Francesa).

Socialismo – O capitalismo sem dinheiro não funciona. O socialismo também já não funciona! Eu não mantenho mais o rótulo de esquerda. Sou militante político de um partido, o Partido dos Trabalhadores, por isso o meu empenhamento total é na construção de uma sociedade mais justa.

A primeira vez que um jornalista me perguntou se eu era comunista, respondi-lhe: “Sou torneiro mecânico.” Com o tempo, quem estava posicionado politicamente mais à direita está a vir para o centro. Quem estava mais à esquerda, tem tendência para se tornar social-democrata. É a evolução da espécie humana. Se conhecer alguém de idade avançada ainda à esquerda é porque tem um problema de fundo. Os 60 anos é a idade do equilíbrio: não se é de direita nem de esquerda.

Sociedade – O mais importante é a relação que se estabelece com a sociedade. É uma relação de confi ança. Como eu não sei grande coisa, tenho uma grande capacidade de escutar. Todos os políticos que nós elegemos resultaram da participação de milhares de pessoas tanto nos municípios como nos órgãos centrais. Esta é a herança que vos vou deixar e que nenhum presidente terá coragem de alterar.

O palácio do governo não se destina só a receber príncipes e presidentes. Os sem-abrigo entraram e choraram. Os cegos entraram. Votámos a reforma para os leprosos que estiveram mais de 30 anos isolados nos lazaretos. Abracei-os um por um, porque nenhum presidente se havia nunca aproximado deles. Nenhum sector da sociedade foi excluído. Eis a minha herança.

2011 – Quando eu deixar o poder, vou a um notário registar tudo o que fi z. Para que aquele ou aquela que vier depois de mim, e vocês sabem qual é a minha preferência, faça melhor do que eu. O antigo primeiroministro espanhol, Felipe Gonzalez, compara os expresidentes a vasos chineses que se guardam em local seguro porque possuem valor mas ninguém ousa tocá-los porque se podem partir.

Não pretendo interferir no mandato de Dilma. […] O melhor serviço que um antigo presidente pode prestar ao seu sucessor é deixálo trabalhar. Mas eu sou um homem político e irei continuar a fazer política. Bater-me-ei como um leão a favor de um reforma que moralize a política e que reforce os partidos.

Pretendo também popularizar em África e na América Latina as políticas sociais bem sucedidas no Brasil. Já recebi muitos convites dos países africanos. Trabalhar numa organização internacional? Recusar-me-ei. Nas Nações Unidas? É uma instituição que deve ser dirigida por um burocrata.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

error: Content is protected !!