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“Não se pode falar de ‘Cinco séculos de colonização’ portuguesa em África. Isso seria uma burla!”

“Não se pode falar de ‘Cinco séculos de colonização’ portuguesa em África. Isso seria uma burla!”

É um dos mais importantes especialistas estrangeiros sobre a colonização portuguesa. Estudou a conquista militar de Angola, Moçambique, Guiné e Timor. A viver perto de Paris, tem uma biblioteca de 12 mil volumes e gostaria de escrever uma bibliografia crítica de tudo quanto foi publicado.

O seu livro “a solo” chama-se “Timor em Guerra”. A Conquista Portuguesa. 

René Pélissier (RP) – Os portugueses têm uma história romanceada da colonização de Timor. Teriam sido, no essencial, a Igreja e os missionários os únicos a contribuir para a implantação da colonização portuguesa.

O que não é verdade!

(RP) – Pois não. Foi uma conquista brutal, efectuada pela maior parte dos governadores e sobretudo pelo célebre José Celestino da Silva, que foi um homem excepcional.

Foi uma excepção em todo o império?

(RP) – Creio que sim. Foi o homem que esteve no poder em Díli mais tempo (14 anos). Tinha a protecção do rei D. Carlos, mas depois da sucessão foi afastado por D. Manuel. Tinha demasiados inimigos. Era um homem que tinha como principal objectivo entrar na História como o primeiro governador de Timor a ser dono de todo o território. Conseguiu-o por meios extraordinariamente brutais.

Sanguinários?

(RP) – Sim. Tinha poucos soldados moçambicanos mas reuniu em 24 campanhas 60 mil timorenses e mandou cortar muitas…

Cabeças?

(RP) – Exacto. Mas não foi mais sanguinário do que outros governadores, mas para conseguir a adesão dos “arraiais” – as tropas supletivas timorenses – tinha de lhes dar qualquer coisa. Como não tinha dinheiro, deu-lhe uma compensação material – o direito a se apoderarem dos cavalos, porcos, vacas, etc. –, mas também mística, digamos…Isto é: cabeças cortadas, que para os guerreiros eram uma espécie de defesa sobrenatural da sua própria aldeia. Eles cortavam as cabeças e encastravam-nas nas tranqueiras, o que constituía uma defesa mágica contra os maus espíritos e contra os inimigos, que, por sua vez, também queriam cortar as cabeças dos habitantes das aldeias.

Onde descobriu essas histórias?

(RP) – Não foi uma verdadeira descoberta. Os raros especialistas de Timor já a conheciam. Encontrei isso nos testemunhos publicados pelos próprios governadores. Em 1896, o primeiro relatório sobre uma campanha em Timor conta como mataram cerca de 700 pessoas em 1895 – cortando-lhes as cabeças. É um livro trágico, que não esconde a verdade, publicado para contrabalançar o prestígio mediático de Mouzinho de Albuquerque, que era o grande herói do Moçambique. A conquista continuou ainda em 1900, contra o maior regulado que era o de Manufai, onde estava a alma ou o coração da resistência à colonização. Foi uma guerra atroz. Oficialmente houve 3424 mortos. Não é verdade: calculo que tenham sido 15 a 25 mil timorenses mortos, seja em combate, seja à sede, seja sobretudo pela cólera. A conquista acabou em 1913, pelo esmagamento de todas as chefias. A colonização de Timor não tem nada a ver com a mitologia do Estado Novo nem com a de agora. É preciso olhar a História com os olhos bem abertos.

Timor foi a última colónia que estudou?

(RP) – Sim. Fui o primeiro investigador francês a estudar a colonização portuguesa moderna, posterior aos Descobrimentos, à Índia, ao Brasil…

Porque escolheu Portugal?

(RP) – Porque gosto das descobertas pessoais. Tenho uma alma de descobridor, de explorador. Cheguei um pouco tarde: tudo já fora descoberto geograficamente. Mas descobri um mundo que estava completamente fechado aos não-lusófonos pela propaganda que exaltava os cinco séculos de colonização portuguesa.

O que está longe de ser verdade.

(RP) – Justamente. Mas era preciso prová-lo. Eu tinha de encontrar uma chave para destruir o mito. E a única chave que estava em meu poder era fazer a história militar da conquista.

Veio a Lisboa?

(RP) – Sim. O Arquivo Histórico-Ultramarino não estava aberto aos que queriam estudar a época mais recente. Mas os militares deram-me acesso aos arquivos. Encontrei coisas que ninguém tinha encontrado antes de mim, como o fim da conquista dos Dembos.

Teve de aprender português?

(RP) – Nunca aprendi propriamente. Comecei por ler e conversar. E, conversando, apanhei um pouco a língua. Os militares da época da conquista do Terceiro Império escreviam e publicavam muito. Foi a minha salvação.

Literatura de memórias e das campanhas?

(RP) – Exactamente. Não apenas Mouzinho de Albuquerque, mas António Enes e muitos outros. A conquista não foi propriamente um caminho que levasse à santidade…Em 1904, até mesmo em 1907, a Angola realmente portuguesa representava no máximo um décimo do território actual. E isso não era confidencial. Estava escrito em “Angola – Dois Anos de Governo”, de Paiva Couceiro. João de Almeida, que foi seu braço direito, contou as suas próprias campanhas. Se ele empreendeu, a partir de 1845, 180 operações militares, isso significa que a colónia não estava pacificada. Esta foi a chave que demonstrou a falsidade do slogan “Cinco séculos de colonização portuguesa em Angola”.

Visitou Angola?

Não sou um historiador militante ou partidário de uma causa – de nenhuma. Nada disso. Não sou um adversário da colonização; sou, isso sim, um adversário do mito da colonização, o que é diferente. Obtive licença para visitar Angola em 1966. Vi a situação que era favorável a Portugal do ponto de vista económico. É incontestável: Angola nunca foi tão próspera e rica como na véspera da morte da colonização portuguesa.

Creio que é uma verdade indiscutível.

Indiscutível. Na minha opinião, a situação era instável mas provisoriamente favorável aos portugueses, fiz a minha tese de doutoramento em dois volumes sobre Angola. O primeiro é sobre a conquista e foi traduzido para português pela editora Estampa, “História das Campanhas de Angola”. O segundo volume ainda não foi traduzido, chama-se “La Colonie du Minotaure”. E o Minotauro é a colonização portuguesa, que devora as suas vítimas africanas. Como sou um homem que ama a descoberta, com alma de explorador, passei a Moçambique. A conquista de Moçambique são essencialmente 150 campanhas nos séculos XIX e XX – o que significa que não se pode falar de “Cinco séculos de colonização”. Seria uma burla!

A mesma tese de Angola…

É preciso ser verdadeiramente cego, ou não querer olhar a verdade de frente. Terminei Moçambique em 1983e continuei pela Guiné. Mais pequena mas um país relativamente difícil de conquistar, em razão da geografia, do clima e da resistência dos guineenses, gente que não estava disposta a submeter-se sem ser vencida.

O grande herói da colonização de Angola foi Paiva Couceiro?

Não há verdadeiramente um herói. O melhor organizador da conquista durante a monarquia foi Paiva Couceiro e o seu braço direito, João de Almeida.

E em Moçambique?

Não partilho do entusiasmo por Mouzinho. Em Angola, não havia a premência de Moçambique, a braços com as ambições de Cecil Rhodes, dos britânicos e até dos alemães, que olhavam para o que podiam apanhar dos portugueses.

Em Angola não havia esse tipo de problemas.

Havia o problema dos alemães e o seu domínio do Sudoeste africano. Mas a pressão alemã era inferior à de Cecil Rhodes, que queria conquistar a Rodésia e aceder ao mar através da Beira. Quem teve a visão mais clara foi António Enes. Enes era um civil, não tinha poder militar, mas encontrou entre os seus oficiais intermédios gente corajosa e soube ampliar exageradamente a ameaça do Gungunhana. O Gungunhana era um imperialista africano, não há que ter vergonha em dizê-lo. Agora é um herói em Moçambique – cada país encontra os heróis onde pode. Mouzinho conseguiu o feito apreciável de se apoderar da pessoa de Gungunhana, sem resistência, em Manjacaze. Isso deu confiança aos oficiais portugueses, que se batiam com poucos meios e homens e com pouco espírito de organização. Perceberam que, uma vez vencido o Gungunhana, podiam apoderar-se de Moçambique todo.

Seguiu-se o estudo da Guiné…

Exacto. Fiz assim, o conjunto das três colónias continentais que nunca tiveram cinco séculos de colonização, que existiu unicamente em Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Goa e territórios adjacentes. Só me faltava a última colónia onde houve grandes combates: Timor, que acabei em 1996. Estabeleci, depois, em termos cronológicos, uma síntese de quatro histórias separadas. Demonstrei que, no princípio do século XX, Portugal esteve em guerra permanente e simultânea em vastos territórios. O que impressiona, uma vez que o país era pobre – o Portugal do fim da monarquia não se podia comparar à Bélgica do rei Leopoldo. Portugal é o país que mais se bateu, e mais tardiamente, para obter o seu Terceiro Império. O que foi trágico é que, à conquista, não se seguiu uma administração estável. Faltou dinheiro, homens e espírito de continuidade. E isso custou muito caro: era preciso reconstruir perpetuamente.

Quem financiou as suas pesquisas?

Em 1966, a Junta de Investigações do Ultramar, dirigida por um homem notável, Carlos Cruz Abecassis. Foi honesto comigo e eu com ele. Escrevi um livro que se chama “Explorar. Voyages en Angola et Autres Lieux Incertains”, em que descrevo a visita à prisão de S. Paulo, em Luanda, com São José Lopes, o director da PIDE em Angola.

Conheceu-o?

Fez-me visitar de noite a prisão, que estava vazia.

Vazia?

Não sou ingénuo. Se há historiador ingénuo, não sou eu. Estava quase vazia. Fui depois ao campo de concentração de Missongo; os portugueses tinham sido astutos e hábeis, tinham misturado os prisioneiros da FNLA com os do MPLA para terem ‘bufos’ dos dois lados…Não se deve desprezar a astúcia dos portugueses. Há autores estrangeiros que o fazem. Eu não. É preciso reconhecer qualidades aos portugueses. Ninguém consegue aguentar três guerras durante 14 anos, em dois milhões de quilómetros quadrados insalubres, sem ter uma resistência fora do comum. É preciso tirar-se-lhes o chapéu – e eu tiro-o. Mas eles estavam militarmente num beco sem saída.

Todos os seus livros estão traduzidos para português?

Não, o que é uma pena. Sou provavelmente o único historiador estrangeiro a ter cinco livros traduzidos em português. E escrevi, juntamente com Douglas Wheeler, “História de Angola”.

Quantos livros leu sobre as colónias portuguesas?

Sobre Moçambique, mais ou menos mil livros e artigos, uns 1100 sobre Angola, pelo menos 400 sobre a Guiné e mais 300 sobre Timor.

Fez recensões sobre todos esses livros?

Não, li-os e utilizei-os para compor os meus próprios livros. Além disso, publico recensões de livros recentes sobre a colonização portuguesa moderna (os cinco PALOP e Timor) e um pouco sobre Goa e Macau. Publiquei mais de três mil recensões desde 1964.

Colaborou na “Análise Social”. Porque acabou?

Não fui eu que interrompi a minha colaboração. Gostaria bem de a manter, tenho recensões sobre livros publicados em 52 países.

Ouvi-o falar sobre Angola. O que contou foi uma autêntica reportagem…

Sim. Vocês fazem o mesmo trabalho que eu, mas com uma faca na garganta: o tempo, e, por vezes, o chefe de redacção. Eu tenho mais tempo e menos constrangimentos.

Quantos livros tem na sua biblioteca?

Uns 12 mil. Incluindo sobre Índia e Macau e territórios espanhóis de África. Unicamente para o período de 1840-2010. Gostaria de fazer uma coisa útil para as gerações futuras: uma bibliografia crítica de tudo quanto foi publicado em livro sobre Angola e Moçambique, etc., a partir de 1840. Mas isso custa uma fortuna. Qual foi o melhor livro que leu sobre as colónias portuguesas? É uma escolha difícil. Talvez o do americano John Marcum, sobre Angola, e alguns do grande Charles Boxer até 1825. De autores portugueses? Há muitos. Enquanto historiador, destaco o livro de António Monteiro Cardoso, “Timor na Segunda Guerra Mundial – O Diário do Tenente Pires”. Gosto também de um precursor que escreveu a primeira História séria de Angola, chamado Ralph Delgado. O que é, para si, um bom livro? Se um livro me traz coisas novas, considero-o bom; se me traz muitas coisas novas, é excelente, qualquer que seja a tendência política do autor. Não tem nenhuma importância que seja de esquerda ou de direita.

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