A epidemia do ébola não dá tréguas e já causou a morte de 5.459 pessoas, entre os 15.351 casos identificados em oito países, até 18 de Novembro, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Na linha da frente da luta contra esta epidemia, na pequena cidade de Greenville, na Libéria, encontramos um moçambicano Jeremias Naiene.
“Tinha terminado o meu mestrado e tive três convites de trabalho da OMS, um era para trabalhar na Guiné-Equatorial no controlo da poliomielite, outro para Angola também relacionado com doenças preveníveis com vacina e outra para trabalhar num dos países afectados pelo ébola. Não pensei duas vezes, resolvi vir para a Libéria devido ao desafio de estar a trabalhar numa doença nova”, disse o Doutor Jeremias, em entrevista telefónica.
Especializado em medicina tropical, na Holanda, Jeremias Naiene está na Libéria desde meados de Outubro deste ano. Devido à suspensão de voos de várias companhias aéreas para os países mais afectados pelo ébola, o moçambicano teve de voar primeiro de Maputo para Lisboa (Portugal), depois para Casablanca (Marrocos), em seguida foi para Freetown (Serra Leoa) e daí chegou a Monróvia.
“É a cidade capital onde existe o único aeroporto, que se assemelha ao aeroporto de Tete”. Depois de duas semanas na capital, Jeremias foi colocado na cidade de Greenville, a capital da província do Sinoe, que dista cerca de 240 quilómetros. “Foram mais 14 horas de carro devido às precárias vias de acesso”, afirma. A Libéria é o país mais atingido pela Doença do Vírus do Ébola (DVE), que eclodiu primeiro na Guiné-Conacri em Março deste ano, e que se acredita que tenha origem em morcegos da floresta, onde já causou a morte de 2.964 pessoas, segundo o último balanço da OMS.
“Continuamos a combater o vírus do ébola e esforçamo-nos para alcançar o nosso objectivo nacional de zero casos novos até o Natal”, afirmou a Presidente do país, Ellen Johnson Sirleaf, num discurso que também anunciou uma remodelação do seu Executivo, em mais um sinal de que as autoridades acreditam que estão a vencer o vírus.
A missão da ONU para combater o ébola, em que está integrado o médico Jeremias, estabeleceu uma meta de ter 70 porcento dos pacientes em tratamento até 1 de Dezembro e 70 porcento dos corpos enterrados em segurança até a mesma data. “É um cenário muito optimista. Dos últimos seis doentes que tratámos cá (em Greenville) cinco sobreviveram (…) agora está a decrescer mas ainda é muito cedo para se cantar vitória”, disse-nos o médico moçambicano de 33 anos de idade que também nos explicou que enquanto não houver cura o tratamento que se faz é “similar ao da cólera”.
Segundo o especialista, os primeiros sintomas da infecção são similares aos de uma gripe, “depois o paciente passa a ter diarreias, vómitos e desidratação mas depois o vírus ataca qualquer parte do corpo e o doente pode ter até sangramentos em vários órgãos”. Atingido este estágio, o paciente acaba por perder a vida em menos de uma semana. Mas a maioria dos pacientes morre devido ao choque provocado pela pressão arterial baixa.
Os tratamentos possíveis são de suporte e passam pela hidratação do doente, pela manutenção dos níveis de oxigénio, pelo controlo da pressão arterial e por tratar as complicações da infecção. Esta resulta do contacto directo com fluidos corporais dos doentes (saliva, transpiração, sangue, urina, fezes, vómito e sémen). Tocar em materiais usados para tratá-los (como luvas de látex ou agulhas) ou nas suas roupas também implica risco de contágio. Se uma pessoa estiver infectada mas não desenvolver os sintomas, não representa perigo de transmissão. Está também excluída a propagação pelo ar, pela comida ou pela água.
A doença tem um período de incubação que varia entre dois e 21 dias. A transmissão por via sexual pode ocorrer até sete semanas após a recuperação clínica. Existem medicamentos experimentais, que ainda não foram sujeitos a ensaios clínicos protocolares, pelo que a sua utilização levanta reticências. Mas a gravidade do actual surto levou a OMS a considerar ético o recurso a esses tratamentos. Questionado se o seu trabalho não seria mais importante a tratar doentes em Moçambique, o médico Jeremias tem a convicção que “travando a ébola aqui no terreno é uma forma indirecta de prevenir que o ébola chegue aí a Moçambique”.
“É a minha vocação, tenho de ir lá!”
Jeremias Naiene é o terceiro filho do casal Helena e Domingos Naiene, e nasceu na cidade da Beira, a 12 Outubro de 1981. Segundo Helena, uma enfermeira reformada, um dia passou pela parte frontal da Faculdade de Medicina com o Jeremias e ele disse-lhe: “A minha faculdade é esta aqui”! Depois de fazer o exame de admissão, começou a estudar medicina, embora a mãe tivesse em mente outros planos para ele. Já formado, em 2009, foi um dos primeiros médicos afectos ao distrito de Tsangano, na província de Tete, onde esteve até Julho de 2010, chegando a exercer o cargo de chefe distrital.
Durante esse período, entre as várias doenças que teve de tratar, Jeremias recorda-se de haver ajudado a conter o último surto de cólera registado naquela província do centro de Moçambique e também um de febre tifóide que, segundo ele, foi controlado “mesmo sem recursos no distrito de Tsangano”. Recordando-se desse trabalho de contenção da febre tifóide, a sua mãe Helena, assim que começou a ter notícias do agravamento do surto do ébola na África Ocidental, suspeitou de que o seu filho havia de manifestar interesse em se deslocar para aquela região.
“Eu comentei com um padre holandês que nos tinha vindo visitar que o Jeremias se mostraria disposto a ir tratar do ébola”. No final de 2011 pediu licença ilimitada ao Serviço Nacional de Saúde, na altura ocupava a posição de chefe do departamento de planificação e cooperação internacional na Direcção Provincial de Saúde de Tete e era também docente na faculdade de ciências de Saúde da Universidade Zambeze (Unizambeze), e foi trabalhar na erradicação da poliomielite em Angola, a convite da Organização Mundial da Saúde.
“Desde de que saí de lá, Angola nunca mais registou casos de pólio” confidenciou-nos. Em 2013 Jeremias Naiene deixou o nosso país para se especializar em medicina tropical, na Holanda, onde esteve até Setembro de 2014. Terminada a formação, veio ao nosso país para rever a família e nessa altura surgiu a oportunidade de entrar no “batalhão” que enfrenta a maior epidemia do ébola de sempre. Entretanto, o padre encontrou Jeremias na Holanda e comentou os receios da sua progenitora ao que ele retorquiu: “É a minha vocação, tenho de ir lá!”.
O drama na Libéria
Como coordenador de campo da OMS, na cidade de Greenville, o médico moçambicano tem entre as suas atribuições diárias, que começam normalmente às sete horas e não tem hora para terminar, verificar os casos que vão surgindo na comunidade e diagnosticá-los entre “suspeitos prováveis ou casos confirmados”. Apesar dos riscos sempre presentes, vários médicos já foram infectados e outros acabaram mesmo por perder a vida.
Este trabalho não confere nenhuma remuneração financeira extraordinária, pois “é uma remuneração normal, não há diferença nenhuma entre aquilo que a OMS paga cá aos que combatem o ébola e àqueles que trabalham em programas da organização, por exemplo, na Guiné-Equatorial ou em Angola”.
A Doença do Vírus do Ébola afecta também a vida social na Libéria, onde os serviços de saúde básicos deixaram de ser prestados. Nos hospitais públicos só se realizam cirurgias de emergência tendo sido interrompidas todas as consultas externas, campanhas de vacinação, tratamento de doenças crónicas como o VIH e até mesmo um simples teste de malária. Devido ao ébola, os habitantes de Greenville, e não só, estão a ver a sua cultura ancestral alterada.
“Nós não nos apertamos as mãos, porque também é uma forma de transmitir a doença”, afirmam. As vítimas da febre hemorrágica têm que ser cremadas e “isso mexe com a cultura das pessoas”, relatou o médico moçambicano que acrescentou que até os jogos de futebol foram abolidos. “Até as 19 horas os locais de convívio e lazer devem ser encerrados, e as escolas e universidades estão fechadas por tempo indeterminado, até a situação estar controlada”. Antes da actual crise, a economia da Libéria experimentou um crescimento impressionante, de até 8,7% em 2013.
Para este ano projectava-se uma queda do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para 5,9%, já que a produção mineira estabilizou temporariamente, com a queda dos preços internacionais da borracha e do minério de ferro. O PIB cresceria 6,8% em 2015 e 7,2% em 2016, segundo essa projecção. Por outro lado, os preços dos alimentos cultivados no país e dos importados sobem porque o estado de emergência, os bloqueios militares nas estradas e as restrições de viagens reduzem o comércio, o que, sem dúvidas, vai afectar os prognósticos de crescimento da economia e reflectir-se na qualidade de vida dos liberianos.
Apesar desde cenário, quase dantesco, e dos receios da mãe do médico moçambicano, este pretende continuar na linha da frente do combate ao vírus do ébola. “Vou ficar pelo menos até Junho de 2015”, pois, segundo ele, controlada a epidemia será preciso reconstruir o sistema de saúde da Libéria, após a morte de vários médicos e professores de medicina liberianos.
Aos seus compatriotas em Moçambique, Jeremeias Naiene recomenda que continuem vigilantes, tomando medidas para “controlarem toda a gente que vem dos países afectados, e estarem atentos aos quadros febris”.
O tratamento do ébola é o mesmo que o da década de 1970
Em Setembro de 1976, uma misteriosa doença atacou o norte do Zaire, hoje República Democrática do Congo. As vítimas tinham febre, diarreias, vómitos seguidos de sangramento e, irremediavelmente, morriam. Desesperado com essa situação, um médico que tentava combater a enfermidade enviou numa garrafa térmica amostras de sangue para o Instituto de Medicina Tropical em Antuérpia, na Bélgica. Ela chegou ao cientista belga Peter Piot que, analisando o sangue num microscópio, encontrou um vírus desconhecido.
Ele tinha uma estrutura gigantesca para os padrões virais e lembrava um vírus chamado Marburg, descoberto em 1967. Na Alemanha, este patógeno contaminou 31 pessoas que trabalhavam em laboratórios com macacos infectados no Uganda. Sete pessoas morreram de febre hemorrágica. Sem ter ideia de como a contaminação do novo vírus acontecia, Piot viajou até a aldeia africana, onde centenas de mortes estavam a ser registadas. Analisou as novas amostras sanguíneas e decidiu baptizar a nova doença de ébola, nome do rio que passava pela região.
Aos poucos, a equipa de cientistas descobriu que a transmissão acontecia, principalmente, pelas injecções que as mulheres grávidas recebiam com agulhas não esterilizadas. Os médicos também perceberam que muitas pessoas adoeciam depois de irem a funerais: o contacto directo com os corpos repletos de vírus, para a lavagem ou preparação dos mortos era uma via importante de contaminação. A primeira medida ? até hoje a mais eficaz de combate ao vírus ? foi o isolamento dos pacientes para se interromper a transmissão. Deste modo, a epidemia, que infectou 318 pessoas e matou 280, foi debelada.
Vírus “burro”
A par do surto da República Democrática do Congo, outro foco de ébola apareceu ao mesmo tempo, no Sudão, com 284 casos e 151 mortes. A partir das primeiras descrições do vírus e das constantes pesquisas acerca das suas características, os cientistas descobriram que o ébola é dividido em cinco géneros, de acordo com cada região onde ele se desenvolve. Assim, o agente do surto inicial e da epidemia que hoje está a causar preocupação em todo o mundo é o Zaire ebolavirus.
Há também o género Sudan, que causou as mortes no Sudão; o Tai Forest, encontrado na Costa do Marfim; Bundibugyo, no Uganda, e Reston, descoberto nas Filipinas. Todos eles pertencem à família Filoviridae, que inclui outros dois géneros além do ébola: Marburgvirus (que causou a doença na Alemanha) e Cuevavirus (descoberto em 2011 em infecções em morcegos). Os cientistas acreditam que todos os géneros e espécies do ébola se desenvolveram em morcegos que comem frutas e insectos. Esses animais seriam o seu hospedeiro natural, ou seja, os seres vivos em que o vírus melhor se desenvolve.
“Durante séculos o ébola deve ter ficado apenas entre os morcegos, infectando-os sem que eles desenvolvam a doença. Esse é o melhor cenário para os vírus, que conseguem sobreviver com o seu hospedeiro. Quando ele chega a outros animais, como o homem, ele mata rapidamente, porque não está adaptado. Por isso, pode-se dizer que é um vírus ‘burro’: não consegue sobreviver por muito tempo no ser humano”, diz Alexandre Barbosa, professor de infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Botucatu) citado pela Revista Veja.
Acredita-se que o vírus chegou até o homem por meio da ingestão da carne de macaco ou morcego que faz parte dos hábitos culturais de algumas regiões africanas ou pela mordedura de bichos infectados. É um mecanismo semelhante ao vírus da raiva, temido em todo o mundo até o século XIX, quando o infectologista francês Louis Pasteur (1822-1895) criou a vacina contra a doença.
“Assim como o ébola, o vírus da raiva também infecta morcegos e é transmitido ao homem. E, quando chega até nós, costuma ser altamente letal: sem tratamento, mata em dias”, acrescentou o professor de infectologia. Até hoje, o tratamento do ébola é o mesmo que o da década de 1970: isolamento, hidratação rigorosa e manutenção dos níveis de sais como potássio e sódio do organismo.
Há tratamentos experimentais, como o soro ZMapp, desenvolvido por pesquisadores americanos e canadianos, que consiste em injectar anticorpos nos pacientes. A prevenção também ainda está em fase de testes ? a OMS tem a previsão de que duas vacinas estarão no mercado até o início de 2015.