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EDITORIAL: Não é ficção

Um filme lançado recentemente, num espaço cinematográfico de referência mundial, retrata o dia-a-dia de uma família humilde num país distante do nosso. O enredo gira em volta da morte e da impotência das pessoas diante dela.

Não se trata, contudo, do percurso natural que leva o ser humano até ao último suspiro. É, diga-se, uma ficção em torno de mortes que poderiam ser perfeitamente evitadas. Ou seja, os cidadãos desse país morrem de malária, cólera e de outras doenças perfeitamente curáveis.

Num dia qualquer, um casal jovem acordou sobressaltado: os dois filhos menores estavam febris. O hospital local distava pouco mais de 20 quilómetros e, por ironia, o transporte público não circulava depois das 19h. Triste sina de quem morava num bairro periférico sem nenhum tipo de infra-estrutura.

Resignado, impotente e defraudado, embora inconscientemente, com a natureza do local que lhe coube para erguer um tecto – num país sem nenhuma política clara de urbanização e habitação – o casal carregou os dois filhos no colo até chegar a uma paragem.

Pelo caminho ficaram sem os telemóveis e o dinheiro para a consulta. Foram vítimas de marginais que, acobertados pela escuridão daquele país sem postes de iluminação, lucravam principescamente com o sacrifício do próximo.

Na estrada principal ficaram duas horas à espera de um transporte que nunca mais veio. Porém, como o azar também se dá ao luxo de gozar os seus intervalos lá veio uma alma caridosa que, indo na mesma direcção, não se fez de rogado socorrendo o casal.

Foi essa mesma alma caridosa que deixou o dinheiro para pagar a consulta de quem já não tinha nada, de quem seguia em direcção ao hospital não porque pudesse pagar os serviços de saúde, mas porque ele (o hospital) se afigurava como o reduto da cura e também porque nenhum pai vive para enterrar os filhos. Portanto, aquele mal-estar tinha de ser passageiro.

No hospital o casal teve de suportar uma fila enorme e uma longa espera até saber dos resultados. O filho mais velho tinha contraído malária, uma doença típica do país. O mais novo, embora com os mesmos sintomas, não acusou nada e os médicos disseram que estava bem. Depois disso o casal regressou aos seus afazeres com a convicção de que, mais dia, menos dia, tudo voltaria ao normal.

No dia seguinte, o filho mais novo começou a espumar pela boca e a mãe estava só, com a criança nos braços. Fez o mesmo percurso. Andou seis quilómetros a pé. Depois apanhou três chapas devido ao encurtamento de rotas.

Levou duas horas até chegar ao hospital por causa do engarrafamento que, naquele país, desconhece hora de ponta. Porém, aquela mãe chegou ao hospital para entregar uma criança já cadáver ao médico que, um dia antes, lhe dissera que o seu filho não tinha nada.

O que passa pela cabeça de uma mãe nessa hora? Certamente, que o desejo da mesma é esganar o profissional de saúde. Mas será que o problema é apenas dele? O que devem pensar as pessoas que vivem tão distante do centro da cidade daquele país?

Os encurtamentos de rotas naquela urbe são responsáveis por quantas mortes? A natureza dos bairros periféricos contribui de que maneira? O facto de os centros de saúde não funcionarem de noite mata quantos cidadãos daquele país? Obviamente que estes não são os maiores criminosos.

O maior criminoso é a situação que torna fértil a emergência de tais cenários. E isto só seria um filme se a ficção imitasse a vida, mas para tal teria de imitar fielmente Moçambique, um país onde todos os dias acontecem coisas do género no hospital de maior referência do país.

Na terça-feira, desta semana, uma criança morreu pela conjugação desses factores. Não é difícil fingirmos que não é connosco, mas somos todos cúmplices. É a nossa apatia que permite que nos governem como gado, é o nosso egoísmo e a nossa crise de valores que matam pessoas sem necessidade.

Somos nós quem passa a frente na fila, somos nós quem não cede o lugar a deficientes e mendigos, somos nós quem se preocupa com a saúde da nossa dispensa. Em suma: somos 22 milhões de assassinos.

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