Praça de Touros
Localizada no bairro da Malhangalene, a Praça de Touros, um grande anfiteatro construído no período colonial, está hoje, à semelhança de tantos outros edifícios sociais, em avançadíssimo estado de degradação. Há vários anos que a Autarquia promete reconversão do espaço num Centro Cultural Municipal, mas até hoje não se verifica o mais leve sinal dessa vontade.
Longe vão os tempos em que Ricardo Chibanga, o primeiro matador negro da história da tauromaquia, deliciava com as suas faenas uma affición constituída sobretudo por portugueses e sul-africanos naquelas tardes domingueiras de sombra- sol da Monumental Laurentina. Muitos anos depois, já bem entrada a independência, e até 2002, a Monumental ainda acolheu muitos espectáculos musicais e outros eventos culturais e religiosos. De então para cá, a degradação do edifício avança a uma velocidade considerável, albergando hoje marginais, um talho e inúmeras oficinas de reparação de veículos automóveis. O interior, à semelhança do exterior, encontra-se completamente irreconhecível. O lixo acumulase, florescendo como o capim daninho que já passa do metro de altura. A água mistura-se com o matope e com óleo proveniente dos veículos que ali são reparados, e toma uma cor azul-escura luzídia. O ar fede a esgoto. Enfim um autêntico caos.
“O cenário interior, semelhança do exterior, é lúgubre, encontrando-se completamente irreconhecível. O lixo acumula-se, os ratos bundam, um cheiro nauseabundo faz prender a respiração. ”
Inaugurada à pressa num dia do já longínquo ano de 1956, a Monumental acolheu durante anos não só os melhores toureiros de Portugal a pé e a cavalo (Manuel dos Santos, Diamantino Viseu, Mário Coelho, João Núncio, José Mestre Baptista) como também internacionais do México, Venezuela e alguns de Espanha. Rara era a tarde domingueira em que a Monumental não enchia com um público entusiasta constituído sobretudo por metropolitanos mas também por muitos sul-africanos desejosos de conhecer as célebres bullfights e contactar com celebridades e a garra latinas.
Chibanga nasceu pobre nos primeiros anos da década de 40. O pai trabalhava na conhecida pastelaria “Princesa”, lugar de referência da capital, e a mãe acompanhava-o na luta e sacrifício para criar os filhos. O sonho de toureiro – que o levaria ao velho continente permanecendo lá até hoje – contraiu- o, tal como uma doença, por volta de 1962, trocando definitivamente os pontapés na bola de trapos com Eusébio, Hilário, Coluna, Vicente pela muleta e capote encarnado.
Na Páscoa, no Ano Novo ou nas festas da cidade, Chibanga juntava-se a um amigo para negociar com o porteiro da praça a participação na festa brava. Em dias de espectáculo, Ricardo dedicava a manhã a alisar a arena e a capinar em redor, recebendo em troca o bilhete para as corridas. Fazia também, com toscos paus de madeira, bandarilhas que vendia aos turistas. E assim foi conseguindo ver mais e melhor, ao mesmo tempo que o desejo de confronto com o touro germinava. Anos mais tarde, já famoso, numa entrevista à revista “Tempo” de Julho de 1973, confessou que trabalhou sob as ordens de um tal Pinheiro que tinha a seu cargo a preparação dos animais para a lide. Fascinado pela valentia do toureio, explorava toda e qualquer possibilidade de treinar o instinto para fintar com habilidade o novilho. No centro das suas atenções, estavam os toureiros portugueses, espanhóis e mexicanos que, por aquela altura, desfilaram em Moçambique. De todos, o favorito era Manuel dos Santos, o maior matador de touros aos olhos de Chibanga.
Certa tarde, porém, Manuel dos Santos, já então um renomado matador, passeou a sua classe pela Monumental acompanhado pelo não menos sonante Diamantino Vizeu. Na faena impressionaram tanto Chibanga que este não teve pejo em pedir ao empresário Alfredo Ovelha que o levasse para Lisboa a fim de formá-lo como toureiro. E foi assim que, em 1962, Chibanga, à boleia das Forças Armadas Portuguesas, desembarcou em Lisboa.
Depois de cumprido o serviço militar no exército português, e pela mão de Manuel do Santos, o jovem Ricardo fixou residência na vila ribatejana da Golegã, onde até hoje vive. Aí, supervisionado pelo grande Manuel dos Santos e por José Tinoca, Chibanga inicia-se afincadamente na aprendizagem das lides da tauromaquia, começando pelas garraiadas e vacadas e pelos espectáculos de variedades taurinas.
Finalmente, em 1965, com a praça do Campo Pequeno em Lisboa repleta, Chibanga estreia- se em traje de luces, envergando um fato emprestado por José Trincheira. Nessa mesma tarde, sai em ombros da praça, iniciando uma imparável carreira de consecutivos sucessos que o levaria a pisar arenas de todo o Portugal, Espanha, França, México, Inglaterra, Venezuela, Canadá, EUA, Indonésia, China, Moçambique e Angola. O perigo da vida na arena levou-o muitas vezes para camas de hospital. “Uma vez, em Sevilha, um toiro deixou- me 16 dias em coma, foi difícil recuperar psicologicamente”, confessou. Acrescentando que “o nervosismo é o factor que mais preocupa os profissionais. Em corridas importantes, passava as semanas anteriores sem dormir. O povo exige muito de nós, muita arte, imaginação e coragem.”
Numa tarde no sul de França, ao brindar ao celebérrimo pintor espanhol Pablo Picasso o segundo touro dessa tarde, foi convidado para um copo depois da corrida em casa do pintor, acabando por sair de lá com quadro cujo valor desconhecia por completo.
Actualmente, com um quadro mais de 65 anos, Chibanga, apesar de reformado do capote encarnado, continua ligado à actividade taurina, percorrendo Portugal com duas praças desmontáveis.
“O negro apaixonado ela festa brava confessou sempre que queria regressar a Moçambique para tourear na Monumental, mas o sonho de Chibanga é hoje impossível de concretizar. ”
O negro apaixonado pela festa brava confessou sempre que queria regressar a Moçambique para tourear na Monumental, mas o sonho de Chibanga é hoje impossível de concretizar. Tudo porque a Monumental mudou de ramo: os touros deram lugar a retiro de marginais, a um mercado, uma igreja evangélica, um vasto circuito de oficinas de reparação de automóveis, um talho, um armazém com o curioso nome de PRM e mais dois estabelecimentos que se dedicam a venda de peças de automóveis em 2ª mão.
Efectivamente, o local pode perfeitamente ser designado por praça dos mecânicos, pois do raiar ao pôr-do-sol são diversas as viaturas que se fazem ao local, com maior destaque para os transportadores semicolectivos. Mário é motorista num chapa que faz a rota Museu/ Benfica. Um problema nos travões vê-lo recorrer aos serviços de uma destas oficinas. “Os mecânicos são bons e é mais barato”, referiu.
Com um fato-macaco completamente esfarrapado, Nelson Amisse, mecânico ambulante de 29 anos, refere não ser verdade que o interior da praça sirva actualmente de poiso a marginais. Para ele, a sujidade que se apossou do local foi a grande responsável pela ideia geral de degradação da praça. Amisse encolhe os ombros quando lhe perguntamos quantas oficinas laboram por aqui. “É difícil quantificar”, dado que são muitos os mestres que trabalham naquele local e cada mestre, no seu entender, “é uma oficina ambulante”. O mesmo serve, segundo Amisse, para as oficinas que têm um espaço físico no edifício da praça de touros. “Aqui há sempre trabalho e saio com mil meticais por dia”, refere Amisse, mas acrescenta que o único problema “são os agentes camarários que aparecem para extorquir o pouco que a gente ganha.”
O cenário interior, à semelhança do exterior, é lúgubre, encontrando-se completamente irreconhecível. O lixo acumula-se, os ratos abundam, um cheiro nauseabundo faz prender a respiração. Subimos uma escada e no cimo encontramos um átrio que dá acesso aos camarotes, hoje utilizado para vazamento de dejectos. Tudo isto inviabilizou, em definitivo, os espectáculos que ali se realizavam, sendo a Praça de Touros, hoje, mais uma das muitas ruínas que proliferam na capital moçambicana.
O último grande acontecimento aqui realizado teve lugar em 2002, quando uma operadora de telefonia móvel local convocou a população de Maputo para observar o eclipse total do sol, escutar uma música e tomar um copo.
Foi a festa de despedida da Monumental.
Caminhamos por entre pedaços de madeira, latas enferrujadas e garrafas plásticas até encontrarmos alguns rapazes que fazem da praça o seu local de lazer. Habitam nas cercanias do edifício num punhado de casas desordenadas que ali floresceram. Clarêncio, de 15 anos, aprendiz de mecânico, é um deles. As palavras, no início, saem-lhe tremidas, mas depois, com o decorrer da conversa, vai-se libertando. “Vivem aqui muitos marginais. E também muitas prostitutas.” Clarêncio assegura que muitos adolescentes passam parte do dia na praça de touros a aprenderem mecânica. “Quero ter muito dinheiro a reparar carros como o mestre Amisse”, refere. No entanto, Clarêncio esquece-se que a maior parte dos marginais que habitam o interior da praça hipotecaram o seu futuro aprendendo mecânica. Mas isso não serve de alarme, porque, de acordo com o seu amigo João, “há muitos que vão à escola, mas não sabem fazer dinheiro.”
Promessas para a reabilitação do espaço não faltam, mas todas elas não têm passado do papel. O manifesto eleitoral do partido Frelimo para as últimas eleições autárquicas de 2003 prometia “transformar a Praça de Touros num Centro Cultural Municipal”. Naquele local iriam realizar-se “vários eventos culturais tais como peças de teatro, danças, cantos tradicionais e espectáculos musicais.” Até agora, a mês e meio do novo acto eleitoral, nada de tangível foi sequer iniciado no que diz respeito à transformação da “Praça de Touros” em centro cultural.