Hoje, Moçambique pode ser um exemplo no que ao crescimento económico diz respeito. A dúvida, porém, é até que ponto os moçambicanos se podem orgulhar de tal facto. Numa altura em que o país assinala a passagem dos 20 anos da paz, que foram celebrados ontem, 4 de Outubro, podemos vangloriar-nos de ter um projecto elogiado no mundo: a Transformação de Armas em Enxadas. O povo desta nação, amante da paz, foi quem o criou…
Quase todos os moçambicanos – mormente os que directa ou indirectamente participaram na guerra dos 16 anos – têm e tiveram inúmeros motivos para que, ontem, quatro de Outubro de 2012, altura em que o país comemorou o 20º aniversário dos Acordos Gerais de Paz, celebrassem.
A guerra, os moçambicanos sabem, é um fenómeno social e humano que não possui nenhuma regra, justiça, senão desestabilização e luto. Não é obra do acaso que – num contexto de muito cepticismo e dúvidas – quando os líderes dos grupos beligerantes, o Governo e a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo) entraram em acordo para o advento da paz, a festa instalou-se no país.
Se considerarmos que naquele contexto nenhum moçambicano se podia alegrar com a contínua tendência de morticínios, torturas físicas e mentais, violação dos direitos do homem, prevalência de bolsas de fome, insegurança social e económica, que se haviam tornado práticas intoleráveis, o fim do conflito armado configurava-se como um evento singular.
Por isso, digno de celebração. No entanto, por outro lado, diante dos danos que se haviam registado no país (a todos os níveis), os moçambicanos estavam diante de um novo conflito: “como reconstruir um país totalmente arruinado?”
O martírio no qual os moçambicanos viviam dominou o coração das pessoas. O amor ao próximo fraquejou. Por isso, a guerra havia deixado cicatrizes no ego do povo.
Naqueles tempos, difíceis de suportar muitas iniciativas filantrópicas notabilizaram-se para acelerar o processo da recuperação da grande depressão que abalara os moçambicanos. Surgiu então, a Transformação de Armas em Enxadas (TAE), uma iniciativa dirigida pelo Conselho Cristão de Moçambique.
A experiência do TAE é digna de louvor. Se não tivesse sido por sua acção, acredita-se que além de um milhão de mortais que sucumbiram durante os 16 anos do conflito, muitas outras pessoas teriam encontrado a morte ao longo dos anos da reconstrução do país.
Além disso, os sectores da economia, da saúde, da educação, da indústria e da agricultura teriam sido condenadas à estagnação em face das minas e granadas de destruição maciça que se encontravam perdidas algures no país.
Sabe-se, no entanto, que muitos moçambicanos que participaram no conflito apoderaram-se do armamento. Algumas, ainda que ameaçando a vida dos seus familiares e vizinhos – nas comunidades e distritos – por possuírem uma mentalidade corrompida pela guerra e os seus efeitos acreditavam que só a posse de armamento lhes podia assegurar algum conforto e segurança.
De acordo com o Conselho Cristão de Moçambique “havia uma necessidade de se dar um passo adicional ao esforço já realizado – os acordos entre os beligerantes – que se traduziria no longo processo do desarmamento das mentes, dos corações, uma vez que o que se tinha feito era a desarmação das mãos dos militares”.
Ao longo dos 17 anos da sua existência, o projecto TAE conseguiu recolher cerca de 800 mil armas em várias partes do país. O grande anseio pela paz efectiva por parte do povo continuou a alimentar o espírito dos moçambicanos, sendo por essas razões que ao longo dos anos muitos projectos socioculturais de transformação de armamento em objectos de arte e utilitários, incluindo uma produção artística, continuaram a surgir.
A TAE, a acção dos artistas, a participação dos moçambicanos na construção da paz – como um rol de acções combinadas – conseguiram conduzir a nação ao longo dos anos promovendo a solidariedade e a reconciliação entre os homens. No entanto, nos dias que correm, o bem-estar social em Moçambique é amargo.
É por essa razão que ainda que não possamos deixar de celebrar o tempo que passou, fazemo-lo com um sentido de luta, de conflito, em que somos impelidos a combater os males da corrupção, da mendicidade, da criminalidade, da desigualdade social, da falta de oportunidades de trabalho para a maioria do povo.
Nos nossos tempos, 20 anos depois da conquista da paz, no país que se cataloga como um exemplo internacional no que toca ao desenvolvimento económico, a população é confrontada com uma dura realidade – a existência de bolsas de mendicidade, prostituição, criminalidade, loucura, marginalização, assaltos – que fecundada por práticas corruptas, escassez de oportunidades de emprego e trabalho, enormes desigualdades sociais, colocam uma série de incertezas no coração dos moçambicanos em relação ao Governo que orienta os seus destinos.
Ganhos da TAE pertencem ao povo
Em diversas localidades do país que haviam sido palcos do conflito, a circulação das pessoas era uma prática tímida, desestimulada pelos perigos que a existência de engenhos explosivos podia acarretar.
Tratando-se de zonas com um forte potencial agrícola – devido à existência de terras aráveis – estava-se diante de um problema preocupante porque não se podia produzir comida. O distrito de Moamba, na província de Maputo, onde um determinado camponês descobriu uma granada de 250 quilogramas que foi removido no âmbito da TAE, é um exemplo.
Depois da remoção do explosivo do referido lugar, instalou-se o projecto de plantio de cana-de-açúcar. Isso significa que além da agricultura, outros projectos de desenvolvimento económico e social – como a instalação de fábricas e postos de trabalho entre outras infra-estruturas – haviam sido condenados a não se estabelecer devido à existência de armamento escondido.
De qualquer modo, o impacto do aludido projecto é sublime, traduzindo-se na reconciliação dos moçambicanos. “Sabemos que havia zonas em Moçambique que eram tão-somente habitadas por pessoas que participaram de forma activa no conflito.
Tais regiões eram impenetráveis, mas nós, o Conselho Cristão de Moçambique, conseguimos remover o demónio segundo o qual a referida localidade só podia ser habitada por beligerantes. O impacto disso é que as pessoas regressaram às suas origens, retomando a sua vida normal”, refere o Reverendo Marcos Macamo, secretário-geral do Conselho Cristão de Moçambique.
Para o referido líder religioso, “ao longo dos 20 anos, a TAE foi uma demonstração de que é possível transformar as armas em algo positivo e de (re)construção social. Uma forma de cultivar a paz, a comida, a vida. Para nós, a enxada possui vários significados”.
Mas, como é que se procede para a remoção de armas perdidas e como é que as pessoas podem participar no trabalho da TAE?
A verdade é que se trata de uma actividade que pode ser feita pela comunidade ou por pessoas singulares. “Em princípio, as pessoas manifestavam-se e traziam as suas armas, recebendo, por esse gesto, estímulos em forma de materiais de construção, máquinas de costura, entre outros bens. A prática continuou até que, numa ocasião, as dificuldades em termos de financiamento evoluíram. Nesse contexto, os parceiros da TAE sugeriram uma nova modalidade de estímulo, desta vez, não por pessoa mas por comunidade”.
Ora, “na impossibilidade de se ofertar bens por pessoa, o Conselho Cristão de Moçambique – agindo no âmbito do referido projecto – tem instalado nas comunidades beneficiárias infra-estruturas sociais como escolas e furos de água. Por exemplo, presentemente, temos um projecto que se chama Armas Por Água, em que as pessoas da comunidade se empenham na actividade de pesquisa e identificação de locais que servem de esconderijo dos armamentos. A província de Inhambane foi pioneira nesse aspecto”.
Uma nota positiva
É em resultado desse impacto que a TAE, uma iniciativa totalmente original de Moçambique, mas acima de tudo porque nela se encontra a ideia de demandar rendimentos a partir da terra – num contexto de uma nação com sérios problemas de alimentação – que o académico Nataniel Ngomane dá uma nota positiva ao projecto.
“Está-se a libertar a terra dos engenhos militares que na haviam ocupado (privando-a desse modo da sua função de produzir alimentos) e transformá-los em enxadas de modo que as pessoas que habitam nos referidos territórios possam beneficiar dos alimentos que ai serão produzidos. É uma iniciativa absolutamente louvável”, considera Ngomane, acrescentado que “infelizmente não é possível usar todas as armas, transformando-as em obras de arte, mas a TAE é uma forma de condenar a guerra e apelar à paz que é bastante agradável e digna de ser vivida sobretudo quando há comida”.
Entretanto, o artista plástico moçambicano, Gonçalo Mabunda, que desde o início do projecto TAE se empenha na construção de objectos artísticos, expressando desse modo a sua revolta em relação à guerra, considera que “nós, os moçambicanos, somos o único povo até agora que foi capaz de destruir armas, gerando objectos de arte e utilitários. O nosso país é o único mentor dessa iniciativa, porque o que acontece depois nos demais países é uma cópia, pois a génese desta iniciativa é de Moçambique”.
As doenças de que a sociedade moçambicana padece
Buscando-se a sensibilidade dos cidadãos em relação à paz no país, conclui-se que as pessoas repudiam a proliferação da criminalidade, os raptos de pessoas para fins inconfessos, o índice cada vez mais crescente de mendigos, a abundância de pessoas desesperadas com problemas e distúrbios mentais, a corrupção galopante, a marginalização social de cidadãos nacionais como resultado das desigualdades sociais, a disfunção de algumas políticas públicas – como, por exemplo, as de habitação para os jovens, saúde pública, entre outras – que se revelam um verdadeiro fracasso são os argumentos que movem muitos moçambicanos a assumirem a paz que temos como uma miragem.
Ninguém pode estar em paz quando na sua cidade há problemas de transporte, as pessoas passam fome, outras vendem os próprios corpos – não somente porque têm prazer nisso – para garantir o pão de cada dia. O mais grave, em tudo isso, é pensar que o cidadão que se esforça para viver honestamente é impelido a lidar viver com larápios e ladrões que, a cada dia que passa, desesperados, se esmeram nas suas práticas de criminalidade. É diante de todos esses problemas que Gonçalo Mabunda desvaloriza a riqueza que algumas pessoas ostentam no país.
Para si, o problema começa a partir do momento em que “colocamos a doença do “ter” em nós. Pensarmos que viver bem é possuir muito dinheiro, o que não é verdade. Para mim, as pessoas que vivem na rua – que não são poucas – é que são universitárias, sábias, elas não roubam, pedem esmola e conseguem sobreviver. Eu, no seu lugar, já estaria morto”.
Com uma visão não muito diferente, o Reverendo Marcos Macamo parte do princípio de que “é preciso ter em mente que durante a guerra muitas crianças (usadas como soldados) sofreram muito. Hoje, são homens adultos. Têm filhos. Como não tivemos o cuidado de eliminar as lacunas sociais que herdámos do conflito, as mesmas foram transmitidas para os filhos, em resultado de um défice de vivência sociocultural”.
Por essa razão, “eu acho que o problema da prostituição que – nos dias actuais chega a ser infantil – está ligada aos aspectos económicos, à mudança do sistema político, ao fenómeno da globalização, aliado à guerra que tivemos, formando um tapete deficiente cuja reparação precisa da comparticipação de todos os sectores (económico, social, cultural e religioso) para repor a moral nas pessoas”.
Caso não se promova uma actuação multissectorial, sinérgica, entre todas as instituições sociais do país para resgatar a moral das pessoas, no entender do Revendendo Macamo, “irão surgir comunidades sem terra, famílias sem coesão social, o que é um problema não só para as cidades (onde o cenário é mais notório). Há famílias anónimas que circulam no quotidiano dentro da cidade. Um estudo atento pode detectar uma comunidade – prostituta, de criminosos, e de mendigos – que se edifica nas urbes”.
O académico Nataniel Ngomane, antes de expor um pensamento mais elaborado, indaga: “Há pessoas que se procriam na rua, mas como é que uma pessoa consegue ter comida para cozinhar morando na rua? E qual é a participação das diversas instituições do Estado nesta realidade? Como é que os laços de solidariedade humana estão a funcionar para impedir que estas calamidades aconteçam e qual é a comparticipação do Estado?”
Será em resultado desta compreensão que Nataniel Ngomane esclarece: “creio que o futuro que se pretende para o povo moçambicano é risonho. Mas a abundância de fábricas de bebidas destiladas com alto teor alcoólico que são vendidas a um preço bastante acessível, quando se associa à ideia da construção do futuro do país chega-se à conclusão de que se está diante de um problema que carece de políticas públicas.
E não se trata de uma situação isolada, há várias esferas sociais que precisam de políticas públicas claras e pessoas responsáveis e responsabilizadas para garantir a sua implementação”.
O mais preocupante, em tudo isso, é que no entender do director da Escola de Comunicação Nataniel e Arte, Nataniel Ngomane, “não me parece que o problema das bebidas alcoólicas – que se proliferam de qualquer maneira, perigando o futuro do país – seja uma questão difícil para um Estado independente como Moçambique.
É necessário que o Governo defina quais sãos os índices de álcool que devem circular no país, seja a nível de bebidas mais leves como a cerveja ou nas mais pesadas como a aguardente. Nada impede, por exemplo, o Ministério das Finanças de estabelecer preços mínimos aos produtos para desestimular o seu consumo por parte das camadas sociais mais vulneráveis”.
A par dos demais aspectos, Nataniel Ngomane terminou a sua exposição com uma constatação. “É certo que o futuro que se pretende para o país é risonho, mas não sei o que será de Moçambique quando chegar a hora de o seu destino ser dirigido por esta geração que se está a alcoolizar”.
“Em Moçambique criou-se um sistema de governação que (pela sua essência) não é acolhedor, marginaliza as pessoas. Com as lacunas que herdámos da guerra – crianças geradas de qualquer maneira que não tiveram a sorte de ter um ambiente familiar coeso – é natural que, nos dias que correm, colhamos esta instabilidade…”, Reverendo Marcos Macamo.
“Os índices de loucura social estão a avançar no país, sobretudo nas cidades. Há um conflito entre as normas sociais da família – o direito à saúde, à alimentação, à educação, à circulação, à segurança, à habitação (…) – e o quotidiano das pessoas na sociedade. Todos os direitos chocam-se com o impacto da industrialização, da urbanização e tudo o que se chama desenvolvimento económico”, Nataniel Ngomane.
“Eu sou a favor de uma prostituta do que de um político. A primeira vende o seu corpo, o que está errado, mas os políticos são “Yes Man”. Eles vendem o seu povo. Já não estão preocupados com a nação. Eles são ambiciosos. E nós vemos isso. É verdade! Porque é que estão preocupados em ter tanto dinheiro?”, Escultor Gonçalo Mabunda.