O relatório do UNICEF, referente ao ano 2012, que espelha a pobreza na qual a criança urbana vive não foi obra do acaso. O documento refere que em 2008 existiam, em todo o mundo, 215 milhões de crianças entre os 5 e 17 anos envolvidos no trabalho infantil. É o caso de Mercido.
Mercido não sabe ao certo quando é que nasceu, mas supõe-se que tenha 14 anos de idade. O destino foi tão cruel (como tem sido com muitos) a ponto de lhe roubar todos os direitos, inclusive o de estudar.
Muito cedo percebeu que devia agir para fazer face aos desafios da vida e teve de deixar para trás todas as oportunidades universalmente consagradas à criança.
No ano passado, quando se encontrava a frequentar a quarta classe, viu-se impelido a abandonar os estudos devido à distância que separa a sua casa da escola.
“Há uma escola a menos de 100 metros da minha casa mas os meus pais não conseguiram vaga. A solução foi matricular-me na Escola Primária Completa 10 de Janeiro e para lá chegar tinha de recorrer aos transportes semicolectivos porque era longe”, conta.
Foi na tentativa de resolver este problema que começou a vender água no Cemitério de Lhanguene para poder ter dinheiro para o transporte. Embora vontade de estudar não lhe faltasse, ele teve de se render aos obstáculos que a distância representava.
“Era-me difícil ter de acordar às quatro da manhã, preparar-me para depois caminhar até a escola, onde entrava às seis”. Pior que isso eram os dias em que dormia sem comer e ia à escola de estômago vazio. Mais, o pai está sempre a beber e não se preocupa com os filhos. A única pessoa com quem eles podem contar é a mãe.
Trocar a escola pela venda de água no cemitério
Tudo começou como se de uma brincadeira se tratasse. Na companhia de alguns amigos, Mercido ia ao cemitério vender água aos fins- -de-semana.
”Era só para ter algum dinheiro no bolso. Nessa altura não sabia o que era passar necessidades. Os meus pais conseguiam sustentar-nos. O meu pai sabia que tinha uma família por cuidar”.
As coisas mudaram quando foi matriculado numa escola distante. As necessidades aumentaram e teve de “levar a sério” a tarefa para poder ter dinheiro para o transporte. “Comecei a dedicar-me mais à venda de água, mas só o fazia nos dias de maior afl uência (Sábado e Domingo)”.
Até esse período os problemas de transporte estavam resolvidos, mas como os desígnios da vida são insondáveis, o menino sentiu que devia passar a ser mais responsável por si mesmo. Ao invés de ir ao cemitério só aos fins-de-semana, passou a fazê-lo todos os dias, o que o obrigou a deixar de estudar.
O outro motivo que o levou a abdicar dos estudos foi a vontade de estar em pé de igualdade com os amigos, “que se vestiam bem. Sempre que eles tivessem dinheiro iam ao mercado do Xipamanine comprar roupa usada. Eu sentia-me excluído. Eles tinham mais dinheiro porque vendiam água de Segunda a Sexta e eu só aos fins-de-semana”.
“Tenho medo do cemitério e saudades da escola”
Embora seja uma prática que vem desde o ano de 2010, o menino conta que não se apega ao ambiente do cemitério.
“Não suporto ver pessoas mais velhas a chorar, caixões a serem transportados de um lado para o outro. Mas não tenho opção, sou obrigado a estar naquele lugar porque é através daquele trabalho que consigo garantir que haja pão na mesa.
Já tentei várias vezes parar de vender água no cemitério, mas sempre volto devido às necessidades e obrigações que tenho em casa.
Vontade de largar esta actividade não me falta, mas para tal tenho de arranjar uma alternativa. Enquanto isso não acontece, tenho de criar condições para que os meus pais e irmãos vivam condignamente”, justifica.
Mercido garante que se aparecesse alguém a oferecer um emprego à mãe e se esta pudesse custear todas as despesas ele deixaria de vender água no cemitério e regressaria à escola, da qual diz ter saudades. “Estou dividido entre seguir o meu sonho de estudar e lutar para sustentar os meus irmãos mais novos”.
Onde andam os pais?
Ciente de que é tarefa exclusiva dos pais cuidar dos seus filhos, a pergunta que se faz quando se encontra uma criança nesta situação é uma e única: onde estão os pais? A resposta mais óbvia e comum tem sido a morte dos progenitores, mas este não é o caso de Mercido.
Ambos estão vivos e, diga- -se, com muita saúde. Porém, as difi culdades da vida não permitem que eles tenham condições para criar os filhos que têm.
A mãe, Admira, é uma mulher batalhadora, faz de tudo para suprir as necessidades da família, um espírito que falta ao seu marido, que só passa a vida a consumir bebidas alcoólicas. Durante a entrevista, Mercido chegou a afirmar que não gosta do comportamento e do modo de vida do pai.
“Não gosto de ver o meu pai bêbado. Ele não ajuda nas despesas de casa, está sempre embriagado. Há dias em que nos expulsa de casa sem motivos”.
Embora o veja sempre sob o efeito do álcool, Mercido não sabe dizer o que o pai faz no seu dia-a-dia para ganhar dinheiro. “Não sei se ele tem uma profissão ou se trabalha. Vejo-o a fazer biscates, mas nunca por muito tempo. Está sempre na companhia dos amigos a beber”.
A única referência que Mercido tem é a mãe, que se dedica à venda de lenha e a alguns trabalhos eventuais, tais como lavrar os terrenos dos agricultores do Vale do Infulene em troca de dinheiro, do qual retira uma parte para adquirir produtos alimentares e outra para comprar sementes.
“Tenho uma machamba em Kumbeza, distrito de Marracuene, e o meu filho tem sido o meu companheiro. Tenho contado com a ajuda dele”.
O desejo da mãe
A mãe de Mercido, triste por ver o filho sem ir à escola e sem perspectivas para o futuro, diz que se pudesse não permitiria que ele vendesse água, muito menos no cemitério.
“Não gosto de ver o meu filho fora da escola, nem a vender água no cemitério. Sei que ele não faz aquilo por vontade própria, é a vida que o obriga a isso.
É muito triste vê-lo daquele jeito, sem roupa para trocar, sem cobertores. Quando chega a hora de dormir, estende uma capulana e cobre-se com uma minúscula manta.
O meu desejo é que ele retorne ao banco da escola. O ideal era que ele conseguisse uma vaga no estabelecimento ao lado”, conclui.