Uma histórica entrevista do papa Francisco obrigará católicos conservadores a recalibrar a forma como lidam com a homossexualidade, o aborto e a contracepção, mas não deve prenunciar mudanças doutrinárias sísmicas, segundo especialistas em religião.
Em entrevista na quinta-feira à revista jesuíta italiana Civiltà Cattolica, o papa disse que a Igreja precisa abandonar a sua obsessão com estruturas, regras e regulamentos, e deixar de colocar as pessoas em guetos.
Mas, nesta sexta-feira, Francisco discretamente reafirmou a oposição da Igreja ao aborto, em um discurso a médicos católicos, falando daqueles “injustamente condenados ao aborto”.
No entanto, a entrevista do pontífice argentino, primeiro papa não-europeu em 1.300 anos, forçará a uma mudança de tom por parte de párocos habituados a recriminar homossexuais e mulheres que abortam.
O papa alertou, por exemplo, que o confessionário “não é uma câmara de tortura” e que sem misericórdia “mesmo o edifício moral da Igreja tende a cair como um castelo de cartas”.
Um prelado graduado no Vaticano disse que esse ponto de vista será “muito desafiador para todos os que estiveram tão forte e minuciosamente investidos na antiga perspectiva”. “Todos, especialmente bispos e conferências episcopais, vão sentir a necessidade de recalibrar suas prioridades, seu estilo, seu tom”, acrescentou o religioso.
“Nós costumamos colocar as questões morais à frente da fé, e não ao contrário”, admitiu outro prelado, subdiretor de um importante departamento do Vaticano. “O que o papa está a dizer é que as regras são uma consequência da fé. A fé não é uma consequência das regras. Não se pode substituir a fé por moralismo.”
Em outras palavras, disse outra figura do Vaticano, os católicos devem continuar ouvindo sermões contra o aborto, mas não mais sermões espezinhando mulheres que podem ter abreviado uma gravidez por causa de uma situação econômica ou social.
Francisco, que tem feito da misericórdia pelos pobres e sofredores uma marca do seu pontificado, iniciado há cinco meses, disse que a Igreja precisará encontrar um “novo equilíbrio” entre a preservação das suas regras e a prática da misericórdia.
Isso poderá desorientar católicos conservadores, especialmente em países mais ricos, onde a Igreja se tornou muito polarizada a respeito de questões como o aborto, ao mesmo tempo em que foi assolada por escândalos sexuais e polêmicas envolvendo o celibato clerical e a ordenação de mulheres.
Até agora, Francisco oferece um forte contraste em relação ao seu austero antecessor, Bento 16, um teólogo alemão conservador que renunciou em fevereiro.
“Até seis meses atrás, o lado conservador se sentia invulnerável, completamente seguro”, disse o teólogo Massimo Faggioli, radicado nos Estados Unidos. “Agora, eles entendem que todo o quadro mudou. Há um grande processo de ajuste pela frente.”